No tempo da morte
A. Sérgio Barroso
Médico, doutor em Desenvolvimento Econômico pela Universidade de Campinas
(Unicamp), membro do Comitê Central do PCdoB e diretor da Fundação Maurício
Grabois (FMG)
a construção do novo cemitério na velocidade necessária e [o vice-presidente da
Província] determina, então, a construção de um provisório. (...) É como se a morte
estivesse rondando para assumir o tempo e comandar a vida” (Alagoas, nos
tempos do cólera, L. Sávio de Almeida, 1996) [1]
As imensas interrogações que assomam hoje se remetem ao quadro dramático
aberto com a nova pandemia, num misto de perplexidade não só quanto as
dimensões do fenômeno em si; mais ainda quanto ao que nos reserva o day
after dessa inaudita combinação das múltiplas causas envoltas na tormenta.
Como se não as tivesse havido antes, ainda que prospecções futurísticas sobre
grandes tragédias sejam rotineiramente abertas ao fazer humano.
É do historiador britânico Eric Hobsbawm [2] a ideia de que toda a previsão
sobre o mundo real se assenta, em grande medida, em algum tipo de
inferência sobre o futuro a partir daquilo que aconteceu no passado, ou seja, a
partir da história concreta. E – definitivamente - não para os axiomas
silogísticos de Aristóteles, para quem um escravo era um escravo por ter alma
de escravo, e por isso mesmo não possuiria a parte dela elaborativa da ciência
e da filosofia – ou do sentido e da finalidade das coisas. [3]
História e epidemias
Conclui Jared Diamond, em seu deveras elogiado “Armas, germes e aço. Os
destinos das sociedades humanas” [4] que são similares as dificuldades
encontradas por climatologistas, biólogos da evolução, astrônomos geólogos e
paleontólogos, daquelas dos historiadores, para captarem as “relações de
causa e efeito” verificadas (ou não) nas sociedades humanas. Em suas vastas
pesquisas, as razões histórico-naturais mais profundas da condição humana e
das determinações sócio-antropológicas.
A exemplo, no capítulo 3 apresentam-se os sucessivos confrontos entre os
povos de diferentes continentes, identificando os elos estruturais que
levaram as conquistas europeias de sociedades nativas americanas. Entre os
fatores causais (e casuais) encontraram-se germes de origem espanhola,
cavalos, cultura, organização política e tecnologia, notadamente navios e
armas. Diamond vasculha uma sequência onde as epidemias são
indissociáveis de transformações históricas originárias, digamos. Ou
determinações categoriais.
Noutra angular, animais domesticados [5] transmitiram germes aos humanos,
simultaneamente produzindo vacinas naturais contra o contágio neles. E
disseminaram, perseguindo novos territórios, carregando seus germes, como
aconteceu com Cortés, em 1519, em que nada sabia então levar a varíola para
os astecas. De modo semelhante o mesmo ocorre com Pizarro, em 1531,
levando-a aos Incas e, então, contribuindo para dizimá-los. (Diamond, idem,
pp.75-78).
Geografia, botânica, a zoologia, a arqueologia e epidemiologia, levam Diamond
a ver a diversidade humana como resultado de processo histórico,
argumentando que a história seguiu rumos diferentes para os diferentes povos,
especialmente devido às diferenças entre ambientes e não às diferenças
biológicas. Ele conclui que a dominação de determinada população sobre outra
tem fundamentos militares (armas), tecnológicos (aço) ou nas doenças
epidêmicas (germes), que dizimaram sociedades de caçadores e coletores,
assegurando conquistas.
A propagação do sofrimento
Conta o turco Orhan Pamuk, [6] que “Um Diário do Ano da Peste”, de Daniel
Defoe, seria a mais esclarecedora obra literária já escrita sobre contágio e
comportamento humano. Reproduz Pamuk: em 1664, as autoridades locais em
alguns bairros de Londres camuflaram o número de mortes para reduzir o
tamanho da praga, trocando-as por outras doenças, assim inventadas como
causa da morte. Além, o romance de Defoe desvela haver por trás de imensa
“existe também uma raiva contra o destino”, contra uma divindade testemunha
“e [que] talvez até tolere toda essa morte e sofrimento humano”.
Noutro romance, “I Promessi Sposi” (“Os noivos”, 1827), Alessandro Manzoni -
“talvez”, continua o escritor turco, o romance mais realista escrito sobre um
surto de peste – denuncia que esta se espalhara rapidamente porque as
insuficientes restrições ao alastramento da epidemia e a aplicação frouxa das
medidas não convenceram os cidadãos de Milão, a partir de seu governador. A
população se revoltara contra a comemoração de um aniversário dum príncipe,
apesar das evidências da ameaça da praga. Manzoni declarara apoio ao povo.
No universo das comunidades mulçumanos – relata Pamuk -, só partir da
década de 1850, quando viagens de barco a vapor ficaram mais baratas, os
peregrinos indo às terras santas de Meca e Medina “tornaram-se os mais
prolíficos transportadores e propagadores de doenças infecciosas do mundo”. [7]
“Vá p’ra casa da peste! ” – E a ilusão de Pamuk
Em 1855, casualidade ou não, Alagoas, no Nordeste brasileiro recebera uma
epidemia do Cólera, via por Sergipe, mas saído da Bahia. A Junta de Higiene
Pública da Bahia, já experimentada no combate enviou à Província quais as
providências a serem tomadas, no começo do dezembro do ano aludido. Todo
o estado então contava com 22 médicos, 14 acadêmicos, 3 cirurgiões e 4
farmacêuticos.
Naquele ano, o Presidente da Província Antônio Coelho de Sá e Albuquerque
lamentava à Corte:
“Não tenho ainda médicos para enviar a muitas localidades, não tenho
padres(...), não tenho medicamentos em quantidade que possam
satisfazer... (Apud: Almeida, idem p.29).
O fatídico é que entre 1855 e 1862 a Cólera matou milhares de alagoanos,
numa população de pouco mais de duzentas mil pessoas. E a presença dos
surtos epidêmicos não altera o drama sócio-político perscrutado por Almeida,
bem depois, na década de 1990. [8] Epidemias marcadas pelos registros
culturais definitivos encontrados na sociabilidade regional: a dor da morte, o
sofrimento, o horror.
“A tradição nos diz que todas as epidemias e todas as suas dores estão
no prosaico xingamento, no ato trivial das pragas e das maldições nos
pequenos discursos em que se manda a vida para a maldição: ‘Vá p'rá
casa da peste!’ E que identificamos a casa da peste como o lugar do
horror social e este é um endereço alagoanamente conhecido". (Almeida,
idem, p. 79).
Assim, nessa aparentemente interminável jornada de atemporalidade da morte,
o literata turco Orhan Pamuk, cujo descortino, vendo hoje seu país, crê num
mundo melhor a surgir após esta pandemia; e, encerrando seu artigo: portanto,
todos “devemos abraçar e nutrir os sentimentos de humildade e solidariedade
gerados pelo momento atual”.
Pamuk, também um crítico das tragédias desse capitalismo contemporâneo,
abatido, transpira aqui ilusionismo. Na Turquia, no Brasil e em qualquer que
seja outro lugar da periferia subdesenvolvida fervilharão desgraças, fome e
mais desigualdades após a destruição pandêmica por sobre nova crise
sistêmica. Ou basta Pamuk mirar o que ocorre – e ocorrerá - nos EUA!
Mais certeira é a metáfora de Almeida, ao grafar no ‘oferecimento’ e abertura
de seu livro: “(...) somos uma sociedade que sabe onde é a casa da peste, o
grande lugar dos horrores cívicos” (p. 29). Ou bem porque “A doença de um
indivíduo rico nunca poderá ser considerada idêntica como a de um pobre” (p.
85).
Ora, não há como desencarcerar os “horrores cívicos” de sociedades da
história dum tempo de morte. E esquecer que essa história pode se repetir:
uma vez como tragédia, outra como farsa (Marx).
NOTAS
[1] Ver: “Alagoas nos tempos de cólera”, Luiz Sávio de Almeida, Maceió, CBA,
2018, pp, 32-3, 2ª edição. Estudo percuciente e meticuloso de história,
socióloga e antropologia, as 395 notas albergam pesquisas de inúmeras fontes
primárias e regionais, além de bibliografia clássica (Marx, Ladurie, Le Goff,
Heller). O elogioso Prefácio (1ª edição) é de Manuel Correa de Andrade.
[2] Ver: “A história e a previsão do futuro”, E. Hobsbawm, em: “Sobre História”,
São Paulo, Companhia das Bolso, 2014, pp. 62-66.
[3] Ver: “Aristóteles”, São Paulo, Nova Cutural, 199, p. 17-20.
[4] Rio de Janeiro, Record, 2010, 12ª edição; Prêmio Pulitzer.
[5] Sabe-se que atual pandemia do Coronavírus 19 teve origem na cidade de
Wuhan, na China cujo governo, até agora, não refuta a possibilidade da
transmissão da virose através de animais selvagens (morcegos etc.).
Comunicado do Ministério da Agricultura da China, em maio de 2020: “No que
diz respeito aos cães, tanto o progresso da civilização humana como a
preocupação pública, além do amor pela proteção dos animais, eles passaram
a ser tratados de forma especial para se tornarem animais companheiros. Além
disso, internacionalmente não são considerados animais para consumo, e não
serão regulamentados como animais para consumo na China. Aqui:
https://extra.globo.com/noticias/mundo/governo-chines-proibe-consumo-de-
caes-gatos-em-todo-pais-24362374.html
[6] Artigo publicado no “The New York Times”; aqui:
https://www.nytimes.com/2020/04/23/opinion/sunday/coronavirus-orhan-
pamuk.html?auth=login-google1tap&login=google1tap (“O que os grandes
romances pandêmicos nos ensinam”). Pamuk foi prêmio Nobel de Literatura
(2006), após “O castelo branco”, “Meu nome é vermelho”, “O Livro negro” etc.,
esses traduzidos no Brasil pela Companhia das Letras.
[7] Pamuk lembra ainda o registro do quando da propagação da praga em
Atenas, Tucídides começou por notar que o surto tinha começado muito longe,
na Etiópia e no Egito.
[8] Ver aqui o registro no jornal Folha de S. Paulo (“Exército ajudará a conter a
cólera em Alagoas”):
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/4/03/cotidiano/51.html#:~:text=Uma%20
pessoa%20morreu%20contaminada%20com,casos%20da%20doen%C3%A7a
%20mo%20Estado.