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sexta-feira, 17 de julho de 2020

Gal Monteiro.Já chamo os dias pelo nome





Já chamo os dias pelo nome


Gal Monteiro

Jornalista, coralista, doida pelas artes, poeta de botequim, mãe com mais erros que acertos, tia & noveleira, amiga do peito

No início, a confusão se estabeleceu. Ou apenas se cristalizou em mim, criatura nada linear. Pareceu que eu vivia minha própria Terra do Nunca e convivia com os 24 fusos horários, simultaneamente. Pra onde iria na manhã seguinte, se nada havia na agenda, se nem tinha para onde ir?
Aí veio a catatonia se insinuando, querendo ditar ordens. Como ente passivo – prisioneira da dúvida crônica que consome jornalistas e piscianos clássicos – fui me deixando possuir, sem resistência. Quem dera fosse dúvida cartesiana, a que me futuca. Pelo menos teria propósito e método, apontaria caminhos reais, até que não restassem fantasias sobre eles. Mas essa autodesconfiança cativa – que aproveitou o confinamento para se espalhar, criar vínculos – está mais pra existencial, chatice tediosa de não saber o que se quer, concretamente. E, apesar de insegura e inconsistente, é arrogante, niilista. Quando penso que cheguei a um acordo com a decisão que tomaria, qualquer que seja, ela se intromete.

Lá estou eu, na batalha inglória com meus botões. Digo em voz alta: “vou acordar amanhã às seis; tomar 15 minutos regulamentares de sol, pra que os ossos não se derretam (fujo dessa imagem como cristão da fogueira); fazer tapioca com sementes de chia e girassol, garantindo o teor de fibras; chorar litros diante do noticiário que me inteira sobre contaminados e mortos; assistir a uma comédia de quinta, pra desinfetar os neurônios; e, finalmente, começar a frenética rotina de limpeza da casa. Por via das dúvidas, com água sanitária e álcool a 70%. 

Aí, chega ela: “e se você dormisse até as 11h, aproveitando o efeito do sonífero, postergando as tarefas para a tarde; e se você começasse a organizar os papéis amontoados sob a escrivaninha; e se conseguisse caixas para os livros que serão doados às bibliotecas comunitárias? Por que não tirar a manhã pra lavar e hidratar os cabelos e estrear a máscara de argila? Que tal ler um dos livros que estão na fila? Hum… você bem que poderia, finalmente, plantar as mudinhas que comprou antes da pandemia…”.

O que parece texto de ficção é tentativa de registrar o novo surreal. O velho a gente conhecia das telas e da literatura. Este ainda me deixa atônita, aos 119 dias de reclusão. Não reclamo: a cada vez que sou obrigada a sair da toca, me vejo em uma aventura dantesca, sem saber direito o que fazer com o que tive de adiar: consultas médicas; exames; convite da amiga para cantar pros idosos; reencontrar meus filhos; consolar a amiga que perdeu o marido; seguir com o Vida de Artista, que produzo e apresento na rádio Educativa; tomar café e bolo com os queridos; conhecer Luísa, minha sobrinha que nasceu feito um raio de luz.

Uma das filhas está comigo – artista inquieta pela distância dos palcos. Duas outras já moravam fora daqui, no Rio de Janeiro e na Itália, ambas trabalhando. Meu filho estava na casa da avó, do pai e da tia. Lá ficou, por questão de segurança e, mesmo separados, intervi no processo de teleaulas que estavam sendo ministradas sem intérprete de Libras. Tudo resolvido com a Universidade. Meu irmão, esposa e filhos estão repartidos, isolados nos núcleos familiares. Parte deles adoeceu e se curou, felizmente sem complicações. 

Mas parece que a pandemia esticou os espaços: às vezes, vejo meus filhos, familiares e amigos pequeninos, inacessíveis ao abraço. Então, choro sozinha, sem noção de quando devo secar as lágrimas e vestir a armadura, sem paciência com o desrespeito. Paro quando reconheço que meu dilema é tão menor, se comparado à hecatombe em que todas as “civilizações” foram mergulhadas. Ficou claro, quando participei de duas transmissões ao vivo: uma com Vinícius Palmeira – pra lançar a campanha Arte que te quero viva! que auxilia centenas de artistas, agora, sem renda; outra organizada pela singular artista visual Solange Arruda, quando pudemos nos expressar como cidadãs olhando além do umbigo. Gravar com o Coretfal e a camerata do IFAL foi uma ponte. Engraçado: eu mesma não me animei a fazer lives, nem com o Vida de Artista. Senti que trairia o espírito do programa, pautado no abraço, na casa cheia, na gargalhada. Depois repensei, mas já havia passado o momento. Sigo conectada com artistas, de alguma forma.

Os fatos desfilam como fotogramas de uma película de suspense. Até tinha perdido os dias de vista, mas voltei a chamá-los pelo nome, com resiliência. Sigo cultivando a fé de que os queridos se curem, mesmo sem meu toque mágico – a gente se acha superpoderoso, às vezes.

Pintou desejo estranho de fazer bolos e pães sem receita. 

Só consegui ler um livro e isso incomoda. 

Não sou otimista, nem pessimista sobre o que virá: só apostadora, espreitando e me revolvendo pra ser parte de alguma possível mudança. Fusos horários padronizam o cálculo do tempo no planeta, mas parece que cada um adotou o seu, ninguém conta o tempo da mesma forma.

Quem é



Gal Monteiro é jornalista, coralista, doida pelas artes, poeta de botequim, mãe com mais erros que acertos, tia & noveleira, amiga do peito, em autodefinição. Também é assistente social, escritora e artista militante desde os anos 80, quando integrou o Teatro Universitário de Alagoas (TUA) e os grupos musicais Caçoa Mas Num Manga e Trupo Acorda a Voz. Integra o Coretfal, apresenta o programa Vida de Artista, na Rádio Educativa FM e é  editora de texto na TV Educativa.

 

Memória da Pandemia nas Alagoas

Elen Oliveira 


Quando eu ingressei na Ufal, em 1991, o professor Luiz Savio de Almeida já era uma lenda. Nos corredores do antigo CHLA, hoje ICHCA (Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Arte), ele se postava a dar conversa a quem se aproximasse com a mesma atenção que dedicava a palestras, mesas de discussão e entrevistas. Entre 2008 e 2009, trabalhamos junto no antigo O Jornal, onde ele propôs a abertura de um espaço dialógico da universidade com a sociedade, por meio da publicação de artigos acadêmicos. Entusiastas do debate e da pluralidade, o então diretor, Gabriel Mousinho, e o então editor-geral, Roberto Tavares,  cederam espaço ao Espaço, nome dado ao suplemento quinzenal publicado entre setembro de 2008 e 2012, quando o veículo foi extinto. À época editora-executiva e de Suplementos, eu editei a publicação até 2009 com Alexsandra Vieira, que era editora do caderno de Cultura, o Dois. Reformulado, tornou-se posteriormente Contexto, no jornal Tribuna Independente, até materializar-se em Campus, o suplemento semanal que é veiculado no jornal O Dia e reproduzido n’o Campus do Savio, o blog de múltiplas falas com o qual colaboro esporadicamente. 


O longo parágrafo de introdução foi escrito para contar como chegamos a Jornalistas e a Pandemia, proposto pelo professor Savio como parte do projeto Memória da Pandemia nas Alagoas, que ele está a construir desde abril e que reúne relatos vindos de representantes dos povos indígenas, artistas, intelectuais e integrantes de áreas diversas sobre o atual momento. Ele propôs, e eu aceitei, que organizássemos uma seção para compor essa construção feita a muitas mãos. “Quero deixar um imenso painel para um pesquisador no futuro”, informa o pesquisador, que há tempos constrói fundamental acervo da memória sobre Alagoas.
 
O blog pode discordar no todo ou em parte do material que publica



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