Gal Monteiro
Jornalista, coralista,
doida pelas artes, poeta de botequim, mãe com mais erros que acertos, tia &
noveleira, amiga do peito
No início, a confusão se estabeleceu. Ou apenas se
cristalizou em mim, criatura nada linear. Pareceu que eu vivia minha própria
Terra do Nunca e convivia com os 24 fusos horários, simultaneamente. Pra onde
iria na manhã seguinte, se nada havia na agenda, se nem tinha para onde ir?
Aí veio a catatonia se insinuando, querendo ditar ordens.
Como ente passivo – prisioneira da dúvida crônica que consome jornalistas e
piscianos clássicos – fui me deixando possuir, sem resistência. Quem dera fosse
dúvida cartesiana, a que me futuca. Pelo menos teria propósito e método,
apontaria caminhos reais, até que não restassem fantasias sobre eles. Mas essa
autodesconfiança cativa – que aproveitou o confinamento para se espalhar, criar
vínculos – está mais pra existencial, chatice tediosa de não saber o que se
quer, concretamente. E, apesar de insegura e inconsistente, é arrogante,
niilista. Quando penso que cheguei a um acordo com a decisão que tomaria,
qualquer que seja, ela se intromete.
Lá estou eu, na batalha inglória com meus botões. Digo em voz
alta: “vou acordar amanhã às seis; tomar 15 minutos regulamentares de sol, pra
que os ossos não se derretam (fujo dessa imagem como cristão da fogueira);
fazer tapioca com sementes de chia e girassol, garantindo o teor de fibras;
chorar litros diante do noticiário que me inteira sobre contaminados e mortos;
assistir a uma comédia de quinta, pra desinfetar os neurônios; e, finalmente,
começar a frenética rotina de limpeza da casa. Por via das dúvidas, com água
sanitária e álcool a 70%.
Aí, chega ela: “e se você dormisse até as 11h, aproveitando o
efeito do sonífero, postergando as tarefas para a tarde; e se você começasse a
organizar os papéis amontoados sob a escrivaninha; e se conseguisse caixas para
os livros que serão doados às bibliotecas comunitárias? Por que não tirar a
manhã pra lavar e hidratar os cabelos e estrear a máscara de argila? Que tal
ler um dos livros que estão na fila? Hum… você bem que poderia, finalmente,
plantar as mudinhas que comprou antes da pandemia…”.
O que parece texto de ficção é tentativa de registrar o novo
surreal. O velho a gente conhecia das telas e da literatura. Este ainda me
deixa atônita, aos 119 dias de reclusão. Não reclamo: a cada vez que sou
obrigada a sair da toca, me vejo em uma aventura dantesca, sem saber direito o
que fazer com o que tive de adiar: consultas médicas; exames; convite da amiga
para cantar pros idosos; reencontrar meus filhos; consolar a amiga que perdeu o
marido; seguir com o Vida de Artista, que produzo e apresento na rádio
Educativa; tomar café e bolo com os queridos; conhecer Luísa, minha sobrinha
que nasceu feito um raio de luz.
Uma das filhas está comigo – artista inquieta pela distância
dos palcos. Duas outras já moravam fora daqui, no Rio de Janeiro e na Itália,
ambas trabalhando. Meu filho estava na casa da avó, do pai e da tia. Lá ficou,
por questão de segurança e, mesmo separados, intervi no processo de teleaulas
que estavam sendo ministradas sem intérprete de Libras. Tudo resolvido com a
Universidade. Meu irmão, esposa e filhos estão repartidos, isolados nos núcleos
familiares. Parte deles adoeceu e se curou, felizmente sem complicações.
Mas parece que a pandemia esticou os espaços: às vezes, vejo
meus filhos, familiares e amigos pequeninos, inacessíveis ao abraço. Então,
choro sozinha, sem noção de quando devo secar as lágrimas e vestir a armadura,
sem paciência com o desrespeito. Paro quando reconheço que meu dilema é tão
menor, se comparado à hecatombe em que todas as “civilizações” foram
mergulhadas. Ficou claro, quando participei de duas transmissões ao vivo: uma
com Vinícius Palmeira – pra lançar a campanha Arte que te quero viva! que
auxilia centenas de artistas, agora, sem renda; outra organizada pela singular
artista visual Solange Arruda, quando pudemos nos expressar como cidadãs
olhando além do umbigo. Gravar com o Coretfal e a camerata do IFAL foi uma
ponte. Engraçado: eu mesma não me animei a fazer lives, nem com o Vida de
Artista. Senti que trairia o espírito do programa, pautado no abraço, na casa
cheia, na gargalhada. Depois repensei, mas já havia passado o momento. Sigo
conectada com artistas, de alguma forma.
Os fatos desfilam como fotogramas de uma película de
suspense. Até tinha perdido os dias de vista, mas voltei a chamá-los pelo nome,
com resiliência. Sigo cultivando a fé de que os queridos se curem, mesmo sem
meu toque mágico – a gente se acha superpoderoso, às vezes.
Pintou desejo estranho de fazer bolos e pães sem receita.
Só consegui ler um livro e isso incomoda.
Não sou otimista, nem pessimista sobre o que virá: só
apostadora, espreitando e me revolvendo pra ser parte de alguma possível
mudança. Fusos horários padronizam o cálculo do tempo no planeta, mas parece
que cada um adotou o seu, ninguém conta o tempo da mesma forma.
Quem é
Gal Monteiro é jornalista, coralista, doida pelas artes,
poeta de botequim, mãe com mais erros que acertos, tia & noveleira, amiga
do peito, em autodefinição. Também é assistente social, escritora e artista
militante desde os anos 80, quando integrou o Teatro Universitário de Alagoas
(TUA) e os grupos musicais Caçoa Mas Num Manga e Trupo Acorda a Voz. Integra o
Coretfal, apresenta o programa Vida de Artista, na Rádio Educativa FM e é editora de texto na TV Educativa.
Memória da Pandemia nas Alagoas
Elen Oliveira
Quando eu ingressei na Ufal, em 1991, o professor Luiz Savio
de Almeida já era uma lenda. Nos corredores do antigo CHLA, hoje ICHCA
(Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Arte), ele se postava a dar
conversa a quem se aproximasse com a mesma atenção que dedicava a palestras,
mesas de discussão e entrevistas. Entre 2008 e 2009, trabalhamos junto no
antigo O Jornal, onde ele propôs a abertura de um espaço dialógico da
universidade com a sociedade, por meio da publicação de artigos acadêmicos.
Entusiastas do debate e da pluralidade, o então diretor, Gabriel Mousinho,
e o então editor-geral, Roberto Tavares, cederam espaço ao Espaço,
nome dado ao suplemento quinzenal publicado entre setembro de 2008 e 2012,
quando o veículo foi extinto. À época editora-executiva e de Suplementos,
eu editei a publicação até 2009 com Alexsandra Vieira, que era editora do
caderno de Cultura, o Dois. Reformulado, tornou-se posteriormente Contexto,
no jornal Tribuna Independente, até materializar-se em Campus, o
suplemento semanal que é veiculado no jornal O Dia e reproduzido n’o Campus do Savio, o blog de múltiplas
falas com o qual colaboro esporadicamente.
O longo parágrafo de introdução foi escrito para contar como
chegamos a Jornalistas e a Pandemia, proposto pelo professor Savio
como parte do projeto Memória da Pandemia nas Alagoas, que ele está
a construir desde abril e que reúne relatos vindos de representantes dos povos
indígenas, artistas, intelectuais e integrantes de áreas diversas sobre o atual
momento. Ele propôs, e eu aceitei, que organizássemos uma seção para compor
essa construção feita a muitas mãos. “Quero deixar um imenso painel para um
pesquisador no futuro”, informa o pesquisador, que há tempos constrói
fundamental acervo da memória sobre Alagoas.
O blog pode discordar no todo ou em parte do material que publica