Pandemia rima com distopia –
mas também com sinergia
Ildney
Cavalcanti
Professora
e pesquisadora, Coordenadora
do Grupo de Pesquisa Literatura & Utopia Fale/Ufal
Meia
década atrás, ao arredondar meio século de vida, inaugurei um mini-livro, para
registrar pelo menos 50 experiências inesperadas, marcantes, desafiadoras que a
vida me apresentaria dali em diante. Era uma forma de me motivar a manter acesos
o encantamento pelo mundo e a vontade de nunca desaprender o desejo. Jamais imaginaria
que uma das entradas do meu livreto seria dedicada a essa experiência inédita e
completamente imprevisível: o distanciamento social motivado pela pandemia do covid-19.
Uma novidade assim tão ubíqua, invisível, potencialmente letal… enfim, tão
radical, nos impõe, inevitavelmente, uma reavaliação em todas as esferas da experiência,
pondo-nos cara a cara, se não com o inimigo, que é invisível, mas com as nossas
próprias limitações e as dos outros seres – humanos e não humanos – com quem
dividimos o planeta; e, certamente, também com a inexorabilidade da morte. Com
sua onipresente destruição, o vírus potencialmente invade nossos corpos e indubitavelmente
nos leva à autorreflexão.
Crise.
Esta é uma das palavras que mais ecoam nestes tempos – juntamente ao já
assimilado “jargão virótico”, que inclui epidemia, pandemia, quarentena, grupos
de risco, contaminação, sintomas, testes… e também o eufemístico “isolamento
social” (que torna o confinamento
mais palatável). Sim, vivemos um momento de crise, mas não esqueçamos que esta
que agora nos assombra é apenas mais uma: temos vivido, de fato, uma série de
crises em sequência há décadas. Num brevíssimo apanhado, e considerando uma
linha temporal que parte da segunda metade do século XX, muito rapidamente listo
as crises ecológica, petrolífera, dos direitos dos animais humanos e não
humanos, do patriarcado, do capitalismo, do neoliberalismo… Nenhuma delas, porém, havia chegado ao ponto
de paralizar o mundo. A contaminação pelo Corona vírus e as mortes dela
decorrentes nos impeliram à permanência em nossos lares, muito literalmente
trancafiando-nos em casa, fazendo-nos parar para pensar.
Para
alguém que estuda as utopias e distopias da cultura, essa epidemia é uma
distopia concreta, pois invade a história com seu poder aterrador, destruindo
vidas e abalando “estabilidades” sociais. Apesar de não enxergarmos seu
causador imediato, seu poder devastador se materializa diante de nossos olhos
sob formas terríveis: jamais esqueceremos imagens como o cortejo de caminhões
transportando corpos de vítimas na Itália; as valas abertas no cemitério Vila
Formosa, em São Paulo; ou os cadáveres nas ruas de Guayaquil, no Equador. Enquanto
escrevo, a mídia incessantemente expõe as – (in)críveis? – estatísticas de
contaminações e mortes, que sobem exponencialmente no passo do girar dos
ponteiros. Quanta dor. Quantas perdas de vidas, com suas ricas histórias, seus tantos
afetos. Sim, pandemia rima com distopia, e o que se configura no limbo do
presente evoca as mais sombrias ficções de mundos devastados, como o Ensaio sobre a cegueira, de José
Saramago; ou a trilogia MaddAddam, de
Margaret Atwood, dentre tantas outras. A vida imita a arte e exibe uma face
mortífera.
Nesses
tempos sombrios e de acumulação de crises, lembro-me do chamado feito pela
fabulosa escritora Virginia Woolf: “Think we must!” (Pensar é preciso.) Seres entocados que nos tornamos tão
abruptamente, busquemos então pensar formas de resistir ao atual cenário de
múltiplas violências. Temos visto acentuarem-se, nesta crise, distopias que já
nos rondam não é de hoje: o descaso com a saúde pública, o espectro da eugenia,
o colapso econômico, o preconceito trajado em suas múltiplas vestes – de
gênero, de classe, de raça, de idade… E também assistimos aos “efeitos
colaterais” sociais específicos desta pandemia: o desemprego, o aumento do
feminicídio (e da violência doméstica de modo geral), as agressões sofridas pel@s
profissionais de saúde, as violações dos rituais de morte, o nosso próprio
desespero e impotência diante do monstro que hoje assume a nossa presidência (e
de sua equipe). Em vez de sucumbirmos ao ambiente tóxico e, literal e
metaforicamente, virulento que nos circunda, sejamos capazes de pensar rotas de
sobrevivência e saídas possíveis, mesmo que pequenas, localizadas.
Pandemia
também rima com sinergia, que me parece ser uma palavra importante neste
momento histórico. Dos aprendizados como estudiosa feminista, destaco duas
ideias bem básicas, mas frequentemente esquecidas: o pessoal é político e
“sisterhood is powerful” (a irmandade é poderosa). Pensemos junt@s formas pelas
quais este momento de “meta-crise” poderá nos tornar seres em coalizão, em
relação com os outros seres como espécies companheiras, pela recuperação do
nosso planeta doente, pela construção de uma pós-humanidade tolerante, harmoniosa
e respeitosa do outro: o homo Sapiens já mostrou a que veio e não aceitaremos a
repetição infernal das opressões. Façamos com que sinergias aconteçam:
comecemos em nossas “cavernas” e, como pede Ítalo Calvino no comovente final d’As Cidades Invisíveis, abramos espaço para
o que não é inferno.
Os coordenadores do Projeto Memória da Pandemia nas Alagoas agradecem a Joelle Malta pela ajuda que nos dá, realizando os contatos e organizando os textos em que aparecem nosso muito obrigado. Carlos José da Silva Lima e Luiz Sávio de Almeida se responsabilizam pelo Projeto mencionado. O blog pode discordar no todo ou em parte das matérias por ele publicadas.