Diário
de um juremeiro enfurnado numa
pandemia
Parmênides Justino Pereira
Juremeiro, Axogum de Oxossi, professor de Sociologia na UFAL/ Palmeira dos Índios
jurema: Brazilian cult and corona virus / jurema: culto brasileño y virus corona
jurema: culte brésilien et virus corona /
Fui provocado por um grande amigo, professor Sávio, para escrever
sobre a Jurema Sagrada e a pandemia do Corona vírus, a princípio fiquei
intrigado, acreditando não haver relação, mas acabei achando alguns elementos
importantes de serem apontados. Já antecipo a questão do altruísmo, a
necessidade da caridade, e a importância da medicina indígena, todo
conhecimento que nos foi deixado pelos pajés, e que nossos encantados não nos
deixam esquecer. Assim como em toda
pandemia, as pessoas demoraram para acreditar, alguns mentecaptos ainda sequer
acreditam. Não faltam teorias de
conspiração, como o vírus ser uma tramoia comunista para derrubar o capitalismo
e introduzir uma tirania vermelha no mundo; cristão fanáticos apontam aspectos
do apocalipse, da volta triunfante de jesus, acusando os pecadores pela
tragédia; candomblecistas afirmam ser vingança de Xangô, o rei da justiça, já
que este ano estás sendo regido por ele, enquanto outros afirmam que Xangô
abriu mão de seu reinado e entregou o mundo a Omulu, o deus da peste, embora
outros afirmem que Omulu está sim no comando, mas para salvar o mundo da
desgraça deixada por Nanã, que no final de seu reinado, ano passado, teria
soltado Iku (a morte) no mundo.
A Jurema tem sua própria cosmologia, como diria
o juremeiro e mestre em História Alexandre
L’omi L’odò, tem sua juremologia, embora eu acredite que ela bebe em
diversas cosmologias, como a cristã e a afro-brasileira. E do ponto de vista
cosmológico, ouvi de um grande mestre da Jurema, meu padrinho Arranca Toco,
incorporado no juremeiro João de Odé, que essa pandemia não tem nada a ver com
teorias conspiratórias ou apocalípticas, que se trata de um arranjo espontâneo
da natureza. Os homens brincam com a natureza, mas existem brinquedos perigosos
e a natureza é um deles. Pensamos, logo existimos, mas nunca deixamos de
dividir a cama com os morcegos e serpentes, a nave mãe continua a mesma, a
nossa mãe terra. Se está valendo recado
do além, o recado é que o mundo não vai acabar e que não existe nenhuma força
espiritual agindo nesta pandemia, são as forças naturais reagindo e, porque não
dizer, promovendo seu equilíbrio: as águas mais límpidas, o ar mais puro,
animais se reproduzindo melhor, a flora reagindo, e a vida cotidiana das
pessoas impondo modificações.
Parece que
nossa ausência nesta pandemia tem favorecido uma faxina ecológica nunca antes
imaginável, diante de nossa conturbada obrigação de produzir “riquezas”. A
quarentena forçada parece ter feito a humanidade descobrir novos valores, e
aqui vale destacar um velho valor, o altruísmo, a caridade. Um maqueiro postou
no facebook que se “...esse vírus entrar na minha casa, que leve a mim e não
aos meus.” Só de lembrar esta pronunciação de um ilustre desconhecido me encho
de emoção, além de me reportar à filosofia profunda de Martim Buber, sobre a
pronunciação de palavras princípio como “EU-TU” fomentando o “ser”, em vez do
“EU-ISSO” fomentado o “ter”. Vi um padre abrindo mão da vida para que o único
aparelho respirador fosse fornecido a um jovem, vi pessoas doando dinheiro,
alimento, equipamentos, trabalho, e vi também a prova da contradição:
comunistas fornecendo todas as formas de ajuda, de médicos e equipamentos de
proteção a toneladas de alimentos, enquanto os capitalistas sugeriam reduzir o
salário dos servidores públicos para arcar com as despesas da crise, além de
sabotar descaradamente a quarentena para não prejudicar a economia. A caridade
é a força e a essência da Jurema, e expressão maior pude ver numa postagem do
meu padrinho João de Odé nas redes sociais: “diante desta pandemia, se você não
tem o que comer, me chame no privado e vamos conversar... o que eu tiver para
comer você também come”.
Ouvi de um conhecido juremeiro de Arapiraca, que não se
há muito o que fazer diante da pandemia, senão obedecer ao isolamento social,
rezar a Deus e pedir aos encantados que cuidem de nós dos nossos. Todavia acrescentou que a jurema tem um papel
fundamental no momento, que é difundir sua medicina indígena, o conhecimento
herdado da pajelança em chás, banhos, infusões.
Ainda sobre conversas com entidades, ouvi da mestra Ritinha que essa
pandemia não acabaria tão cedo, teremos que aprender a conviver com o vírus. Nesse caso a importância da medicina indígena
assume protagonismo na correlação de forças que divide o país, onde a medicina burguesa
atinge o auge de sua crise de poder: médicos e biólogos racionais defendendo o
único meio de superar a crise, que é o isolamento social, incluindo o lockdown,
enquanto médicos lunáticos defendem a proliferação natural do vírus para
produzir anticorpos naturais, com isso salvando a economia. Se por um lado o Brasil está polarizado entre
“coxinhas” e “petralhas”, “bolsomínions” versus “esquerdopatas”, e essa polarização
se apoderou da medicina enquanto locus do saber/poder, o presidente lunático e
seus fanáticos seguidores defendem o uso da hidroxicloroquina como panaceia
contra a COVID-19, na esperança que este argumento grosseiro convença as
pessoas a abrir mão da quarentena e reabrir o comércio; enquanto a medicina
mais séria defende achatar a curva de crescimento da vírus para evitar o
colapso da rede pública de saúde.
Enquanto isso o juremeiro Yabaktiswara Eduardo postou no grupo Jurema,
ciência e poder um depoimento muito importante, sobre como estaria se tratando
de corona vírus a partir dos conselhos das entidades da Jurema. Neste sentido
são três importantes prescrições, como o banho a partir do pau Pereira, que era
amplamente utilizado no combate à febre dos escravos. É sabido que o principal sintoma da COVID-19
é a febre alta. Combatendo a febre, se
combate a dificuldade respiratória com um dos mais potentes bronco dilatadores
que a farmacopeia da mãe terra já produziu, que pé a imburana, ou amburana, de
ação rápida adoçada com mel e favo.
O chá é feito com duas xícaras da casca,
tomando-se três xicaras por dia, combatendo eficazmente a tosse e a falta de
ar. A imburana age promovendo a desobstrução dos vasos sanguíneos, por ser um
potente anticoagulante, uma vez que que a contaminação por corona vírus
ocasiona uma resposta inflamatória exagerada, resultado este que desfavorece o
fluxo de oxigênio nas células. Por fim, a famosa e disputada cloroquina, que é
a quinina, extraída da quina (Cinchona calisaya), muito comum na américa do Sul
e milenarmente utilizada pelos índios contra a malária, com poder antitérmico e
analgésico, além de digestiva e cicatrizante.
Seu uso foi preterido pela medicina tradicional, devido ao surgimento de
outros sintéticos, agora retomado como disputa das implicações socioeconômicas
da pandemia. Enfim, três compostos da
farmacopeia indígena milenarmente utilizado pelos índios, pau Pereira, imburana
e quinina, cujo relato têm sido utilizados com pessoas diagnosticadas com o vírus
e apresentado bons resultados. É
evidente que o protagonismo da cura vai girar em torno do falso debate sobre a
hidroxicloroquina e a medicina tradicional, e obviamente não estamos falando de
uma proposta de cura, e não é nem tem sido objetivo focalizar a questão da
pandemia em torno da Jurema Sagrada. Como bem disse alguns juremeiros, ela não
tem nada a ver com tudo isso, salvo a consciência de que se trata de um
movimento de sabedoria e autogestão da própria natureza, que devemos obedecer a
quarentena, que podemos nos utilizar dos banhos e chás que sempre foram
utilizados por nossos ancestrais, até porque é deles que advêm a própria
farmacopeia burguesa.
Esta série tem por objetivo
publicar depoimentos sobre como se pensa e se lida com o Corona em
Alagoas. Está aberta a toda e qualquer
pessoa, de qualquer tendência. É uma documentação organizada, sobretudo, para
um futuro estudioso de como a epidemia foi vista e vivida em Alagoas. O
material será publicado paulatinamente
no suplemento Campus do jornal O Dia. Está sendo organizado por Carlos Lima, Mestre em
História pela Universidade Federal de Alagoas e Luiz Sávio de Almeida. O blog
pode discordar de parte ou do todo da matéria publicada.