POVOS INDÍGENAS E O
CONTEXTO DE PANDEMIA
Cássio Júnio Ferreira da Silva
Xucuru-Kariri e mestrando em antropologia
Colonialismo, Colonialidade e
Contaminação
Antes de falarmos sobre
os povos indígenas no contexto da pandemia (coronavírus), faz-se necessário
pontuar que os povos indígenas lidam com o perigo invisível (contaminação por
vírus e outros agentes) desde a invasão do Brasil por europeus. Um dos vírus
com maior letalidade entre a população indígena foi a varíola, introduzida no
território brasileiro pelos colonizadores.
Na década de 1660,
ocorreu uma grande epidemia de ‘bexigas’ (nome popular da varíola) na Amazônia
colonial, sobre esse contexto os historiadores Rafael Chambouleyron, Benedito
Costa Barbosa, Fernanda Aires Bombardi e Claudia Rocha de Sousa ao dialogarem
com escritos do período afirmam que “o ouvidor Maurício de Heriarte relatava igualmente
a desolação causada pela doença”. Segundo ele, na ilha de São Luís havia inicialmente
18 “aldeias grandes de índios” de diversas nações; com as bexigas, “se consumiram
e ficaram três” (2011, p. 989).
A forma como o vírus da
varíola infectou a matou a população indígena impressiona pois em uma única
localidade dizimou 15 aldeias, se pensarmos na extensão do território
brasileiro podemos projetar um terrível cenário de destruição. Mas a contaminação
por esse vírus não ocorreu apenas no Brasil colonial, e muitas vezes foi
realizada de forma proposital.
No livro Brasil: uma
biografia, as historiadoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling ao analisarem o conjunto dos crimes cometidos pela ditadura
civil-militar (1964-1985) chegaram à conclusão que “nada se compara aos crimes
cometidos pela ditadura contra as populações indígenas” (2015, p. 463). As
comprovações desses crimes foram documentadas em um relatório produzido pelo
procurador Jader Figueiredo, responsável por coordenar uma comissão de
inquérito administrativo responsável por apurar denúncias que incidiam contra o
Serviço de Proteção ao Índio – SPI (órgão que antecedeu a Fundação Nacional do
Índio – FUNAI).
Jader compilou e classificou
os crimes cometidos por invasores de terras indígenas com a cumplicidade do
órgão indigenista oficial, de modo que apresenta os seguintes crimes, “assassinatos,
prostituição de índias, sevícias, trabalho escravo, apropriação e desvio de
recursos do patrimônio indígena” (2015, p. 463), uma das maneiras de se cometer
esses assassinatos era através da inoculação do vírus da varíola em povos
indígenas em situação de isolamento, mostrando que armas biológicas foram
utilizadas contra populações indígenas em períodos recentes da história do
Brasil.
O Coronavírus nas aldeias e o
descortinar de velhas questões
Desde que os primeiros
casos da pandemia de Coronavírus (COVID-19) foram registrados no Brasil, a
maior parte das autoridades políticas, através dos parâmetros estabelecidos
pelas autoridades medicas e sanitárias, passaram a defender o afastamento
social como principal medida preventiva para contingenciar a propagação do
vírus. Diversos setores da sociedade civil voltaram seus olhares com
preocupação em relação aos povos e comunidades indígenas, de modo a questionar
quais medidas poderiam ser tomadas para evitar que a pandemia chegasse a esses
territórios.
Como resposta a essa
problemática a FUNAI editou a portaria N.º 419 de 17 de março de 2020 que estabelece
as medidas de prevenção para se evitar a propagação da pandemia, entre outras
questões a portaria proíbe a entrada de não-índios nas Terras Indígenas. Mas
não é suficiente estabelecer a proibição legal, se faz necessário garantir os
mecanismos de fiscalização para garantir a efetividade dessa medida. É bem
verdade que há anos a FUNAI não consegue realizar a proteção das Terras
Indígenas devido um agravado estágio de sucateamento do órgão.
No dia 7 de abril de
2020 foi registrado o primeiro caso de Coronavírus entre os Yanomami, tendo um
adolescente de 15 anos testado positivo para a COVID-19, sendo a contaminação
ocasionada justamente pela inoperância do Estado Brasileiro em realizar a
proteção dos territórios indígenas. Segundo o site Survival Brasil, em
matéria veiculada em julho de 2019, ao longo dos anos cerca de 10 mil
garimpeiros já haviam invadido o território Yanomami, levando doenças e
espalhando mercúrio pelos rios.
Mesmo no contexto de
pandemia essas invasões não pararam, menos de dois meses após o aparecimento do
primeiro caso, o povo Yanomami tem 44 infectados e dois óbitos em decorrência
do Coronavírus.
Esse contexto de
dificuldade em se efetivar a proteção territorial é recorrente em diversas
terras indígenas em todas as regiões do país. Em Alagoas, a pandemia adentrou
aos territórios dos povos Kariri-Xokó, Xukuru-Kariri, Karapotó-Plak-ô e
Jeripankó, entre esses povos uma das maiores problemáticas é a dificuldade de
se garantir a proteção territorial, fator que impossibilita o isolamento
voluntario dos grupos no contexto de pandemia.
Na Terra Indígena
Xukuru-Kariri localizada em Palmeira dos Índios no agreste alagoano, de onde
escrevo esse pequeno texto, existem dois casos confirmados de indígenas
contaminados com COVID-19. Esse caso muito provavelmente é subnotificado, pois
a SESAI não conta com testes suficientes para realizar uma testagem em massa,
procedimento necessário para se ter uma visão detalhada de como a contaminação
avança entre os povos.
Outro fator que faz com
que os números da SESAI sejam subnotificados é que entram nesses dados oficiais
somente indígenas que estão residindo nas terras indígenas, não levando em
consideração para as estatísticas os indígenas em contexto urbano, a grande
problemática existente nessa orientação do estado brasileiro é que, segundo
dados do censo de 2010 do IBGE, aproximadamente um terço da população indígena
está em contexto urbano.
Referências
BARROS,
Ciro. Operando com 10% do orçamento, Funai abandona postos e coordenações em áreas
indígenas. IN: Agência Pública. Disponível em: https://apublica.org/2019/03/operando-com-10-do-orcamento-funai-abandona-postos-e-coordenacoes-em-areas-indigenas/.
CHAMBOULEYRON,
Rafael et al. ‘Formidável contágio’: epidemias, trabalho e recrutamento na
Amazônia colonial (1660-1750). História, Ciências, Saúde – Manguinhos,
Rio de Janeiro, v.18, n.4, out-dez. 2011, p.987-1004.
FUNAI.
Portaria Nº 419/PRES, de 17 de março de 2020. Boletim de Serviço da FUNAI.
Brasília, 2020.
PALMEIRA
DOS ÍNDIOS. Boletim Epidemiológico de 30 de maio de 2020. Palmeira dos Índios,
2020.
SESAI/MS.
Boletim Epidemiológico do polo base
Xukuru-Kariri de 03 de junho de 2020. Palmeira dos Índios, 2020.
SESAI/MS.
Boletim Epidemiológico de 29 de maio de 2020.
Brasília, 2020.
SESAI/MS. Boletim Epidemiológico COVID-19 DSEI AL/SE
de 02 de junho de 2020. Maceió, 2020.
SCHWARCZ,
Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. 1ª
edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
SURVIVAL
BRASIL. Milhares de garimpeiros invadem o território Yanomami.
Disponível em: https://www.survivalbrasil.org/ultimas-noticias/12162.
Os depoimentos indígenas estão sendo coordenados pelo Professor Dr. Amaro Hélio Leite.