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quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Maria Gabriela Cardoso Fernandes da Costa. O amor nos tempos da Covid-19: memórias da pandemia


O amor nos tempos da Covid-19: memórias da pandemia


Maria Gabriela Cardoso Fernandes da Costa


Esse texto foi escrito para o projeto “Tempos insulares: memórias da pandemia” do grupo de pesquisa Literatura &Utopia. vigésima sexta edição desse projeto.

 “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o címbalo que retina [...]. Agora, pois, permanceu a fé, a esperança e o amor, estes três; mas o maior destes é o amor”. (Paulo de Tarso, 1 Coríntios:13).

Para início de conversa

Quando a proposta/ desafio foi lançada/o no grupo de Literatura e Utopia, há cerca de um mês, um pouco mais, talvez, de escrevermos sobre as nossas memórias nestes tempos de pandemia, o título de um possível texto, “O amor nos tempos da Covid-19”, logo me veio à mente. Entretanto, o tempo foi passando, dividido entre outras atividades, e o texto foi ficando para trás, mas não esquecido. Foi sendo trabalhado mentalmente e colocadas em pauta as razões que me levaram a pensar de imediato no romance O amor nos tempos do cólera, de Gabriel García Márquez, como inspirador e as palavras de Paulo como coadjuvantes da inspiração, conforme a epígrafe que abre estas memórias.

Publicada em 1985, essa obra do premiado escritor colombiano, cuja ação se passa no período de transição do século XIX para o século XX, trata de uma relação amorosa que envolve as personagens Fermina Daza, Firentino Ariza e Juvenal Urbino e tem como pano de fundo o cólera, evidenciando uma situação que se assemelha à que vivemos neste momento de “convivência” com o Covid-19. De um lado, pois, na ficção, o cólera; do outro, no mundo real, o coronavírus, ambos iniciados com a letra “c”, como uma espécie de Sibila reveladora de tempos funestos. A distopia tomou conta do mundo assolado por aquela doença, da mesma forma que o fez dois séculos depois, quando o vírus passou a ser protagonista do nosso dia a dia. Se alterarmos a ordem dos algarismos romanos XIX e XXI, podemos ver que os dois séculos interagem entre si. Uma interação que tem como denominadores comuns o medo e a incerteza do dia seguinte.

Vivemos, nos dias de hoje, tentando manter o equilíbrio na corda bamba das diversas informações que perpassam a mídia e que nos chegam também através de mensagens pelo WhatsApp, umas apelando para a ciência, outras, não. Entre as antinomias do “fique em casa” x “vá trabalhar”; “use máscara” x “não use máscara”; “a hidroxicloroquina salva” x “a hidroxicloroquina mata”; entre a azitromicina, a ivermectina e sei lá quantas mais “inas”, somos uma espécie de náufragos buscando a “ilha desconhecida”, onde, talvez, nos seja possível encontrar certezas para as dúvidas (e os medos) que carregamos como bagagem.

“Quarentena”, uma das palavras-chave dos últimos tempos, foi o elemento desencadeador do relato destas memórias. Estou desde meados de março em completo isolamento. O fato de estar só não me causou nenhuma espécie de estresse – a palavra da moda –, nem sentimentos de desamparo ou solidão. Muito pelo contrário: tenho procurado aproveitar este momento da melhor maneira possível, liberta da famigerada desculpa “não tenho tempo”, que se tornou o refrão da canção do nosso dia a dia. E o Tempo deu-me mais tempo para olhar para mim e para os amigos e as amigas, ainda que os bons papos sejam apenas virtuais.

Nesse tempo que o Tempo me deu, coloquei como prioridade rememorar o passado, não numa perspectiva de retrotopia – assim cunhada por Bauman, no seu livro homônimo –, mas na de Bobbio, de que o relembrar é uma atividade salutar, pois, na rememoração, encontramo-nos e encontramos a nossa identidade como uma maneira sadia de crescimento. Foi assim que me permiti reavivar estas memórias que aqui trago ao abrigo das palavras de Paulo, que tomei como epígrafe, e, como no romance de García Márquez, tendo a pandemia como cenário.

A guerra, o medo e a incerteza do dia seguinte

Ao ter conhecimento, pela mídia, da corrida desesperada de pessoas aos supermercados e às farmácias buscando armazenar alimentos, álcool em gel e outros itens, no início da pandemia, foi-me impossível não lembrar um passado não tão longínquo que eu vivi e em que a falta já gerenciava as nossas vidas. Em intermináveis filas diante de lojas de mantimentos, as pessoas varavam a noite na esperança de poder comprar gás, leite, enfim, coisas de primeira necessidade, na luta pela sobrevivência. Eram tempos de guerra. A diferença entre o agora e o ontem é que a guerra que então se vivia, e da qual éramos reféns, era protagonizada por seres humanos contra seres humanos, com armas letais de um lado e de outro, lutando pela concretização de suas utopias. A guerra de hoje tem como inimigo um vírus, desenhado como uma bolinha cheia de pontinhos, aparentemente inofensiva. Mas, invisível que é, esse inimigo precisa mesmo de “atiradores de elite” para pôr fim à sua ação, que se faz sem hora marcada e sem escolha da próxima vítima. A guerra de ontem deixou ruas povoadas de cadáveres; a de hoje invadiu hospitais. E se agora, como medida de prevenção, as palavras de ordem são “fique em casa”, naquela época, havia apenas uma, que se impunha pelo seu modo imperativo: “fujam”. Eu, como tantas outras pessoas, fugi. Fugi do medo, da incerteza do dia seguinte, daquela guerra em que a morte dizia, o tempo todo: “presente”.

As lembranças aqui evocadas não são, entretanto, as únicas que me vêm à memória nestes tempos insulares.

 Intermitências da morte (1)

Em 1971, a morte achou por bem visitar-me. Sem convite, apresentou-se, sorrateira, e quase conseguiu levar a cabo os seus malignos intentos. Porém, e graças à rápida intervenção de amigos que se uniram na luta contra aquela que, sutilmente, se tinha interposto no meu caminho, ela, a morte, como no romance de José Saramago, não conseguiu entregar a fatídica carta com o atestado de óbito. Tal como o violoncelista, personagem do escritor português, eu sobrevivi.

Doença? Não. Acidente doméstico. Intoxicação por gás, no banheiro. Notícia de jornal.

Intermitências da morte (2)

Era outubro de 2010. Os ânimos fervilhavam, em razão do segundo turno das eleições presidenciais.

Domingo de sol. Panfletagem. Utopias ao vento.

Dor. Hospital. Cirurgia. UTI.

Turbilhão.

A morte, cujas intenções a meu respeito haviam sido frustradas lá atrás, decidiu voltar a rondar-me, desta feita com mais insistência, segura de que seria bem-sucedida, já que nisso havia apostado os seus maiores esforços.

Nos 12 dias de UTI, o livro De profundis valsa lenta, de José Cardoso Pires, foi, mentalmente, o meu companheiro. Com a ajuda dele, somada a uma enorme torcida, eu logrei, uma vez mais, enganar a morte. Fui salva pela vontade de viver e pelo amor.

O confinamento a que a pandemia me sujeitou fez-me trazer à tona estas memórias. Pelo seu significado. Pela sua importância. Como reflexão. Como renascimento. E como certeza de que “sem amor, eu nada seria”.

Em tempos de Covid-19 e de cólera (não do cólera), talvez as palavras da Legião Urbana possam ainda, e apesar de tudo, encontrar eco: “É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”.

À guisa de conclusão

Vem-me à mente um provérbio africano, que me parece adequado à situação que agora vivemos: “On n’est pas orphelin d’avoir perdu père et mère, mais d’avoir perdu l’espoir” – que quer dizer, numa tradução livre, que ninguém é órfão quando perde o pai ou a mãe, mas, sim, quando perde a esperança.

              

 
Maria Gabriela Cardoso Fernandes da Costa é portuguesa de nascimento, angolana e brasileira de coração. Doutora em Letras na área de concentração em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Paraíba, é professora de Literatura de Língua Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas. Integra o grupo de pesquisa Literatura & Utopia desde a sua formação, em 2000. Atualmente o seu principal foco de interesse são as Literaturas A
fricanas de Língua Portuguesa. Tem publicados os livros
Sobre as águas da memória atlântica - as vozes entrelaçadas de Lueji-O nascimento de um império e Viva o povo brasileiro  (EDUFAL, 2009) e Agora sou eu que falo, eu, Gabriela (Porto: UNICEPE, 2014. Tem várias participações em eventos nacionais e internacionais, com destaque para a apresentação do livro O torcicologologista, Excelência  do escritor português Gonçalo M. Tavares, por ocasião do seu lançamento na cidade do  Porto, em 2014. Em 2018 participou do evento Mulheres Africanas em Trânsito-Homenagem a Alda Lara, promovido pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com a apresentação de um trabalho sobre a poetisa santomense Conceição Lima. Seus trabalhos mais recentes foram publicados nos livros Trânsitos utópicos (EDUFAL, 2019) e Utopismos alagoanos : de ilhas, cidades e viajantes. (EDUFAL, 2019). É co-organizadora do livro Entre (laços) literários, que sairá brevemente, publicado pela EDUNEAL.

 


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