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sábado, 30 de maio de 2020

Aldjane de Oliveira, A ESCOLA COMO ESPAÇO DE FRONTEIRA INTERÉTNICA: UMA ANÁLISE ENTRE OS WASSÚ QUE ESTUDAM NA CIDADE



A ESCOLA COMO ESPAÇO DE FRONTEIRA INTERÉTNICA: UMA ANÁLISE ENTRE OS WASSÚ QUE ESTUDAM NA CIDADE.


Aldjane de Oliveira


Uma pequena introdução

Este texto deriva de monografia apresentada ao Curso de Especialização em Antropologia, ministrado pelo Institutop de Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas, Teve a orientação de Amurabi Pereira de Oliveira. Esta é a segunda colaboração da autora, que Campus publica, sinal de  interesse em divulgar seu trabalho e tratar sobre nossos índios, especialmente os Wassu. O problema da educação indígena gera um tema de difícil abordagem e de alta complexidade,  com um veículo controlado pelo estado nacional cruzando as fronteiras da etnia e com ela interagindo.  Oficialmente,  discussão do assunto é posta dentro de um organismo que pertence ao Estado, no caso, a Secretaria de Educação que é associada a um Conselho de Educação, sendo de perguntar sobre aquilo que resta para a etnia em termos de  posicionar-se sobre si mesma na oportunidade em que o cruzamento se realiza. Perguntas e mais perguntas surgem na abordagem sobre educação indígena, mas uma me preocupa diretamente:  pode o estado entender-se como resguardando os interesses de uma etnia, mormente tomando-se em conta o papel da educação na dominação política, onde o curriculum é essencial? É interessante ler as reflexões da autora em torno da temática e passando diretamente pelos Wassu. Campos agradece mesmo a gentileza da professora Aldjane de Oliveira, hoje em pleno mestrado de Antropologia e motivo de esperançaa, em face de sua seriedade e talento. 

Luiz Sávio de Almeida

O texto foi publicado em Campus/O Dia em julho de 2015

Aldjane de Oliveira, natural de Joaquim Gomes–AL. Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Alagoas- UFAL, pós-graduada em Gestão Educacional pelo CEAP, Especialista em Antropologia pela UFAL e Mestranda em Antropologia pela UFS. É professora de Sociologia no nível médio. É vice-presidente da ONG Casa de Cultura Cidadã Urucum- CACCUM, que atua no município de Joaquim Gomes- AL.




A ESCOLA COMO ESPAÇO DE FRONTEIRA INTERÉTNICA: UMA ANÁLISE ENTRE OS WASSÚ QUE ESTUDAM NA CIDADE.Aldjane de Oliveira

Este artigo, o segundo a ser publicado neste suplemento cultural é  fruto de uma  análise de parte da minha monografia desenvolvida durante o curso de Especialização em Antropologia realizado junto a UFAL, que teve como título: Identidade étnica, trajetórias e percepções de estudantes wassú: a partir da escola não-indígena de Joaquim Gomes-AL.”
Como forma de contextualização, esclareço que o povo Wassú encontra-se localizado na zona da mata alagoana, na área rural do municipio de Joaquim Gomes, seu território é cortado pela BR 101 e possui uma população com  2.037 pessoas, segundo a Administração Regional  da FUNASA- Maceió (2010). Tal pesquisa foi realizada na Escola Estadual Mário Gomes de Barros, localizada na área urbana da referida cidade, onde foram entrevistados alunos wassú, entre 14 e 18 anos, durante o ano letivo de 2013/2014.
Pretendemos aqui analisar, principalmente, a escola como um espaço de fronteira interétnica e suas implicações para a construção da identidade étnica entre os estudantes wassu que estudam na escola não indígena. Este conceito pego emprestado de  Tassinari(2001), ela trata da escola indígena  enquanto espaço de fronteira, no caso do presente artigo, consideramos a escola não-indígena como espaço de fronteira interétnica, visando a análise da presença dos wassú na escola não-indígena de nível médio.
Escola como espaço de fronteira interétnica

O que seria  identidade étnica ou etnicidade? Valho-me da explicação de Barth para embasar minhas colocações, onde para ele a sustentação formativa dos grupos étnios dar-se por meio das diferenças culturais e não nos seus conteúdos em sí. Ou seja, é no espaço de contato com a alteridade, que emergem os de marcadores de diferenciação, gerando assim espaço/ambiente propício para as afirmações identitárias étnicas ou mesmo para seu silenciamento da mesma.
Entendo que a escola é um espaço-ambiente de experiências, é um espaço de fronteiras interétnicas, onde vivenciar a alteridade traz percepções ao sujeito, sobre as diferenças existentes entre  os grupos culturais distintos. Como exemplo de utilização ou percepção teórica da escola, enquanto fronteira interétnica, temos o trabalho de Tassinari(2001), intitulado  Escola indígena: novos horizontes teóricos, novas fronteiras de educação.
 Penso, também, a escola como um espaço de trânsito e de redefinições ou ajustes identitários, visto que neste ponto tratamos sobre os contextos e situações nos ambiente escolares, onde estão em jogo as relações sociais e o contato com a alteridade que influencia na construção dos processos identitários, visando compreender os processos de ressignificação da identidade étnica entre os estudantes wassú.
Portanto, apesar de os estudantes wassú ora afirmarem, ora omitirem sua indianiedade, com uma lógica de convívio social fora da aldeia e receio de sofrer discriminação; eles têm consciência de pertencerem a um grupo étnico, têm noção das especificidades de sua cultura (digo isto, com base nas entrevistas feita junto aos estudantes wassú que já frequentaram a Escola Indígena  e posteriormente frequentaram a Escola não-Indígena).
Poemos perceber e reafirmar a importância da Educação Escolar Indígena, por meio da Educação Diferenciada. Os estudantes construíram também a partir da escola indígena uma consciência de pertencimento étnico, conforme apontaram as entrevistas. A Educação Escolar Indígena torna-se importante, pois o fato de se pensar aquilo que é particularidades de cada comunidade indígena, necessidade, objetivos e assim desenvolver conteúdos e formas de aplicação de acordo com seu cotidiano e com seu projeto de futuro.
Esclarecendo que pelo fato de a escola aqui ser considerada como fronteira interétnica, não implica dizer que ela seja definidora dos grupos étnicos, mas num sentido em que, é um lugar de contato e de conflito entre grupos sociais e étnicos diferenciados, a escola também disputa com grande vantagem, no caso da escola não-indígena, a formação ideológica, cultural e comportamental do sujeito, no sentido de ser homogeneizadora dos que as frequentam.
Implementação da pluralidade cultural nas escolas:  lei 11.645/08
Contudo, questionamos se nas escolas não-indígenas, a exemplo da E. E. Mário Gomes de Barros, está sendo realizanda a “implementação” da temática de pluralidade ou diversidade cultural a partir das Leis 10.639/03 e 11.645/08, que implicam a obrigatoriedade das temáticas de história e cultura afro-brasileira e indígena, respectivamente, nos diferentes níveis escolares. Tais leis  e os Parâmetros Curriculares Nacionais- PCN’s dão suportes legais para se trabalhar dentro das escolas a questão da diversidade cultural.
Mas, há outros problemas: o (des)prepraro dos professores que estão atuando, falta de formação continuada,  escassez de materiais didáticos que abordem, de forma politicamente correta, tais temas, além  da falta de motivação nas atuais condições de trabalho e salários,  já que no ano de 2013 e início de 2014 a maioria dos professores da referida escola, assim como em todo o Estado de Alagoas, eram monitores, e têm que trabahar mais horas/aulas para complementarem suas rendas.  O que dificulta um melhor desempemho dos mesmos.
É importante a implementação de um currículo diferenciado, pois isto reflete diretamente na formação das novas gerações, principalmente daquelas que fazem parte de grupos sociais e étnicos ou minorias sociais. Mas também é importante para os jovens como um todo, terem esta formação ou informações, que se  trata ao implementar estas leis, que tenta-se apresentar as difenças, a diversidade e a necessidade do respeito ao “outro”.
Assim, Silva (2010), no artigo A temática Indígena no currículo escolar à luz da Lei 11.645/2008, trata, justamente, sobre a temática em questão, analisando a construção histórica destas conquistas legais, referentes à educação étnico-racial nas escolas de ensino básico e sua dificuldade de efetivação, ao afirmar: “Essa nova perspectiva de inclusão dos valores socioculturais e históricos indígenas, no cotidiano escolar, abre espaço para discutirmos as reais condições das relações e redes sociais que os povos indígenas estão inseridos” (SILVA, 2010, p.41).
Esta mesma autora afirma que “o currículo não deve ser uma reprodução cultural passiva, mas um campo que possibilite reflexões e contestações sobre modelos de sociedade existentes, para construirmos formas de transgredí-los” (Idem, p.41). Portanto, a escola deve contemplar a diversidade ou pluralidade étnico-racial, levando em consideração a realidade local e a história nacional. Será que num âmbito geral há, nesta lentidão do processo de efetivação da contemplação da diversidade cultural, uma negligência das políticas direcionadas à diversidade? A prática da referida lei, deve, não ensinar a tolerar o diferente, mas a conhecê-lo nas suas particularidades e a respeitá-lo.
Com base na etnografia e entrevistas realizadas, podemos dizer que a E.E. Mário Gomes de Barros, até o termino do ano letivo de 2013 – periodo de realização do trabalho de campo- não colocou em prática a lei 11.645/08, de forma coordenada e organizada como projeto ou prática de ensino naquela comunidade escolar.
Preconceito na escola: “tem gente que se acha mais importante e não chega perto da gente que é índio”

Exponho neste tópico, as respostas dos estudantes wassú que nos fazem refletir sobre a noção de preconceito que os mesmos têm, como classificam as situações de afastamento ou inferiorização impostas pelos “outros”/ alunos da escola não-indígena. Adianto que, a partir da observação das entrevistas, os estudantes wassú, geralmente, não utilizam a palavra preconceito ou não definem como preconceito as situações descritas por eles, exceto quando são postos frente à análise de situações, ou seja, quando pergunto diretamente se tais situações não seriam manifestações de  preconceito. Mas há a recorrência da palavra “piadinhas” que tomo como sinônimo de de preconceito.
 Analisemos as respostas para a seguinte pergunta: Na escola da cidade você se sente diferente? Por quê? Em sua maioria, a princípio não entenderam a pergunta ou ficaram receosos em responder, talvez pelo fato de a pesquisadora fazer parte da escola como professora. As respostas foram as seguintes:
“Não... Sim, por que na escola tem mais pessoas que num é índio...”
“Aqui eu me sinto diferente um pouco dos outros... por que aqui tem uns melhores de vida... aí eu me sinto diferente. E eu sou índio e a maioria não é.”
“Não, eles me tratam bem, mas a minha cultura é diferente da deles.”
“Um pouco. Porque aqui ales ficam falando de quem mora no sítio ou nos terrenos... Porque quem mora na cidade é mais branquinho e a gente é mais escuro, ficam dizendo que a gente é de sítio... Aqui na cidade tem gente,  que é mais branca, que diz isso.”
Analisando estas falas, percebemos que os estudantes wassú apontam como principal percepção de diferença entre uma escola e outra, o fato de eles serem índios e os outros alunos da escola não serem. Mas para além disto, eles mencionam a questão da diferença cultural como na frase: “Não, eles me tratam bem, mas a minha cultura é diferente da deles.”, mostrando que sabem (a seu modo) da existência de culturas distintas e que coexistem ou apenas que há costumes (entendido como cultura) diferenciados entre eles e os outros. Apontam, também, para o preconceito sofrido pelo fato de que no local em que  moram, como sítio e terrenos (é o nome popular de um bairro mais afastado do centro da cidade).
 Destacam ainda a questão da cor, o que também é uma identificação de preconceito, como na frase: “porque quem mora na cidade é mais branquinho e a gente é mais escuro, ficam dizendo que a gente é de sítio... aqui na cidade tem gente  que é mais branca, que diz isso.”. Apontam, assim, para o fato de os mais brancos da cidade dizerem coisas que os incomodam sem que tenham, os estudantes wassú, uma ampla conciência de que isto pode denotar preconceito racial ou, no caso, étnico-racial.
Oracy Nogueira (2006), no trabalho Preconceito de marca e preconceito de origem,  apresenta a distinção do sentido que atribuímos ao preconceito, em comparação com o preconceito racial no Brasil e nos Estados Unidos. Assim constata-se que, mesmo entre os primeiros pesquisadores (brasileiros ou não) desta temática, acreditava-se ou concluía-se que no Brasil não havia o tal preconceito racial.
Quando, finalmente, se reconheceu a existência do preconceito racial no Brasil, o perceberam como preconceito de marca, ao passo  que, nos Estados Unidos se denomina preconceito de origem. Então, o que diferencia estes dois tipos de preconceitos seria que o de marca refere-se à cor acentuada, que fica visível aos primeiros olhares, já o de origem refere-se a própria origem, a ser descendentes de pessoas de cor mesmo que não se tenha pele escura ou negra.
Contudo, percebemos que isto é reflexo contextual de cada sociedade analisada, assim, a partir das respostas dos estudantes wassú, aqui problematizadas, vemos que o “preconceito”sofrido por eles, tratado neste tópico, refere-se para além da origem indígena, mas, para à tonalidade da cor de pele mais escura, o que os tornam mais “visados”, independentemente de sua indianidade.
Ainda sobre a mesma pergunta, obtivemos outras respostas tais como:
“Um pouco... Porque nem todos são índios, mas eu não tenho preconceito não, assim... porque a pessoa não é índio. Mas eu converso normal, eu não vou falar dela (da outra pessoa) sem ela falar de mim...”
“Um pouco diferente, tem gente que se acha mais importante e não chega perto da gente que é índio. Nesse ponto eu me sinto diferenciada dos outros... Aí fico na minha, penso que todos são iguais e  que ninguém é melhor que ninguém...”
 Quando ouvi a primeira resposta questionei à Iracema: mesmo sem você ter preconceito com os “ outros” será que os “outros” não teriam preconceito com você? Ao que ela me responde:“pode ser que alguém tenha preconceito comigo porque ... aqui na aldeia a  gente tem pintura, toré, artesanato, roupa de índio pra apresentação do toré, quando vai apresentar fora...”. Apontando, então, para o preconceito com as coisas de índio.
Quando ouvi a segunda resposta, principalmente o trecho:“tem gente que se acha mais importante e não chega perto da gente que é índio”, perguntei se isto já não seria uma forma de preconceito para com os índios: ela parou um pouco e, depois, balançou a cabeça afirmativamente.
Passemos a analisar agora o seguinte questionamento: Enquanto um indígena, você se sente respeitado na escola? A pretensão desta pergunta, seria buscar compreender a visão, a percepção, do próprio sujeito estudado sobre como eles enxergam os fatos e situações que acontecem à sua volta referente ao seu pertencimento étnico. Temos as respostas:
“Sim... Mas, só não me sinto quando alguém dá piadinha, me sinto mal, pois eles sabem que  pessoa é (indígena) e ainda fica fazendo piadinha, que num sou...”
 “Sempre tem alguém que dá piadinha na gente. Tem gente que diz, que a gente diz que é índio sem ser... Acho que essas pessoas que falam isso da gente se sente melhor que a gente, ficam julgando a gente que é índio.”
“Não, por exemplo, ficam dizendo que eu não sou índia. Porque da parte da minha vó, os índios mesmo... Teve alguma coisa lá naquela época que tirou, expulsou a família da minha vó do Ouricuri, aí eles não considerou a gente... Mas, agora a gente é... Mas, hoje a gente já é considerado e reconhecido, tem carteirinha na FUNAI  e tudo.”
Observemos a recorrência da expressão “piadinha”, compreendida aqui como indicação da existência de frases e acontecimentos que, de certa forma, tentam inferiorizar o estudante wassú, menosprezá-lo ou julgá-lo, eles não indicam a recorrência, assim como o prosseguimento das respostas que denotam evidências de desrespeito a estes indígenas, por parte da maioria que com eles convivem na escola não-indígena da cidade.
A recorrência da palavra “piadinhas”, foi usada pelos estudantes wassú tanto quando perguntados sobre preconceito quanto sobre respeito ou a falta dele. Penso que os pesquisados, quase não utilizam no dia a dia estas palavras(preconceito) e seus conceitos ou, raramente as atribuem aos fatos cotidianos.
Há também uma percepção de uma imposição de superioridade e inferioridade por parte dos “outros”, os alunos não-indígenas, por exemplo: “acho  que essas pessoas que falam isso da gente se sente melhor que a gente, ficam julgando a gente que é índio.”. Assim, constata-se uma questão histórica sobre a ideologia da formação do povo brasileiro quando se compara os brancos, índios e negros.
Na última resposta, sobre se enquanto indígena se sentem respeitados na escola, constata-se um certo conflito interno ao próprio grupo de estudantes indígenas, segundo Naara,  isso acontece por parte dos que conhecem a história da família de sua avó.
Quando perguntados se por ser índio já sofreram preconceito de colegas e professores, obtivemos ,apenas uma resposta afirmativa:
“Sim, falam mais por causa do meu cabelo, que não é preto, nem liso, falam da cor... Sofro preconceito pela aparência, por que eles acham que pra ser índio tem que ter aparência de índio, cabelo lisinho...”
Houve apenas esta resposta afirmativa da existência do preconceito para com eles no espaço escolar, provavelmente pelo fato de esta indígena ter características fenotípicas que a sociedade dissocia do imaginário do que seria um indígena.
Quando perguntei à Bartira se as “piadinhas” não são preconceitos, ela respondeu:
“Não são não, porque preconceito é só com pessoas que tem a pele mais escura, como com os negros. Por exemplo, se tem índio que é galego, o povo num tem muito preconceito, mas se tem um índio que é mais pretinho ai tem, mesmo sendo tudo índio...”

A resposta acima nos remonta para a questão de preconceito de marca e  origem. Neste contexto, se a escola, efetivamente ,trabalhasse no seu currículo a questão da diversidade cultural, talvez, muitas destas confusões sobre preconceito, grupos étnicos, respeito ao “outro”, ao “diferente”, fossem também, paulatinamente se desmistificando.   
Concluo apontando às relações sociais dentro da escola não-indígena, entre indígenas e não-indígenas, assim como as relações entre o próprio grupo de estudantes indígenas que frequentam a E.E. Mário Gomes de Barros, como peça chave para compreender a proposta de escola não-índígena como fronteira interétnica e constitutiva de ajustes, pescepções e afirmações de pertencimento étnico entre os estudantes wassú.
BIBLIOGRAFIA
BARTH, Fredrik. “Etnicidade e o conceito de cultura”, in Antropolítica: Revista Contemporânea de Antropologia e Ciência Política, n. 19, 2º. Sem., 2005 (pp.15-30.).


NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestões de um quadro de referencia para a interpretação de material sobre relações raciais no Brasil. Tempo Social, revista de sociologia da USP, pp. 287- 308, v. 19, n. 1, nov. 2006.

SILVA, Maria da Penha. A temática indígena no currículo escolar a luz da Lei 11.645/2008. Cad. Pesq., São Luis, v. 17, n. 2, maio/ago. 2010.

TASSINARI, Antonella Maria Imperatriz. Escola indígena: novos horizontes teóricos, novas fronteiras de educação. In: Antropologia, História e Educação: a questão indígena e a escola. Silva, Aracy Lopes da – Ferreira, Marina Kawall Leal (Org.) – 2. Ed. – São Paulo: Global, 2001.


Luiz Sávio de Almeida. Tropeçando na Abolição


 
Uma escultura do meu grande amigo Hércules Mendes


Tropeçando na Abolição (I)Luiz Sávio de Almeida



Dois dedos de prosa

O mês de maio passou e com ele tivemos uma efeméride: a Abolição. Hoje nós decidimos trazer material que saiu na imprensa de Alagoas, pequenos jornais, quando da oportunidade do 13 de Maio. É possível, pelos pequenos textos que publicamos neste número – outros virão – ver aspectos do que foi a luta vivida. Como digo, sempre tropeçaremos na Abolição como efeméride. E sempre será preciso discuti-la. O que não posso é esgotar o movimento nos resultados da Abolição.
A partir deste número, contaremos com a colaboração de Hércules Mendes. A capa é uma sua escultura sobre a Serra da Barriga, ou, como se pode ver, a mãe serra-terra grávida de quilombos.
Uma boa leitura.
Um abraço
Sávio
Observação: Foi publicado em Campus/

Tropeçando na Abolição (I)Luiz Sávio de Almeida


A abolição não se deu graciosamente em face de desejos de uma princesa tida como A Redentora. E foi mais saudada como resultado de um ajustamento da sociedade ao ideal ”civilizado”, do que como propriamente negro a ser celebrado, pois trouxe o fim formal da escravidão, mas se deu a continuidade do preconceito, do racismo e da manutenção deles em ferrenho círculo de pobreza.

A abolição foi um marco político no sentido do aggiornamento da sociedade imperial, mas correspondeu à construção de um novo tempo de opressão sobre o  negro, lançado nos círculos de pobres daqueles finais do império, o que foi acentuado no decorrer da República; o negro foi dito livre, embora posto nas fileiras do exército industrial de reserva, na condição de um lupem,  parte do que por tempo foi considerado como as classes perigosas.

É preciso ter o cuidado de ver a abolição muito mais no aggiornamento do que no negro: lidava com o escravo mas pouco  ou nada desenharia com e para o negro. Aliás, seria possível explorar que, da abolição, se consolida a figura política atual do negro e a dominação assume, deste modo,  outros meandros e engendrando novas formas de manter o poder pelo controle tradicional do estado e de instrumentos que são, paulatinamente, criados na geração tática e estratégica da contenção da liberdade.

Se 13 de Maio não é para ser comemorado, deve sem dúvida ser lembrado e tomado como efeméride, palavra que nos leva ao nosso calendário cívico, onde alguns marcos nos fazem, querendo ou não, tropeçar neles e levá-los em conta com uma pergunta simples: o que eles nos falam? E se desejarmos observar a nossa especificidade, a pergunta é mais objetiva: o que falam para esta nebulosa chamada Alagoas?

Gosto desta expressão, que também foi de uso do Octaviani ao tratar do Brasil; aduzo que se trata de uma nebulosa em movimento, sedenta de conceitos ou como se movimenta um universo que concretamente se define como especificidade, com determinações e resoluções próprias. No fundo, gira uma questão sobre onde, quando e como encontrar estas Alagoas que tanto nos animam enquanto discussão e por onde temos tropeços na obrigatoriedade de seus marcos.

Pouco ou quase nada se tem produzido sobre os modos de se pensar Alagoas, visando explicá-la, sendo claro, contudo, que existiram e existem modos que embasam a formulação de um pensamento sobre ela, pois se montaram o que vamos chamar de paradigmas responsáveis por visões que são necessariamente políticas.  Em grande parte, esta ausência de escrita decorre da rotina posta pelo agrarismo  que  fundamentou a vida senhorial de Alagoas, cujas bases começaram a ser sacudidas e aparecem demograficamente  no quadro de crescimento urbano,  consolidado a partir dos anos sessenta do século XX.

Este agrarismo fez com que Alagoas tivesse um pacote de respostas prontas que servem para alguns, mas que carecem de sentido quando vamos procurar o chão de nossa miséria ou a forma como se objetivaram as rotas de acumulação, em nosso espaço, na construção de nossas desigualdades e onde avulta a condição do negro. Nós tivemos a nossa própria via, o nosso próprio caminho e gostaríamos de retirar da discussão, a ligação quase imediata da palavra via a modos de encaminhamento do capital na Europa.Se a via é entendida como caminho, como percurso de construção, nós somos o duro efeito de impasses colônias em nossas atualizações e nos determinamos como subdesenvolvimento no contraponto nacional sem que, por qualquer razão, apareça uma ordem dual em nossa formação histórica e no modo como somos a nação posta em nós, pois carregamos o nosso próprio universal.

Não estaríamos à procura do que muitos chamam de formas clássicas, mas diante de nosso modo de subdesenvolvimento, discussão de nossa construção agrária, da formulação ao longo do tempo da sacralização das formas rurais e da baixíssima alavancagem de capital. Vamos a busca do que radica em nós como miséria e isto passa pela natureza, forma e modo da peculiaridade que nos fez e que somos.

Quando estava tropeçando na Abolição, encontrei material publicado em jornais e pensei em partilhar com os leitores de Campus, dar-lhes a chance de estarem no espírito do Século XIX e, sobretudo, sentir pontos para a discussão ou reflexão. O primeiro (Textos 1 e  2) foi material publicado em A Lâmpada, pequeno jornal, semanal que circulava em Maceió sob a responsabilidade e redação de Odon Maia e José Egydio. Estava ainda em seu primeiro ano e todo o seu número 3, datado de 19 de Maio de 1888, foi inteiramente dedicado à Abolição.
Libertas quae será tamen é o mote desenvolvido na matéria da editoria do jornal.  Estava entendido que a liberdade do escravo estava correspondendo à liberdade da nação.  Em segundo plano e não menos importante, estava identificado um sujeito político que se chama povo e, finalmente, sabia-se da oposição entre uma canalha e uma granfinagem senhorial.

Ave libertas   – texto de José Primênio – demonstra que existia a quem chamar coletivamente de protestante, não importa que tamanho naqueles tempos de penetração no universo católico brasileiro. Além do mais, setores do protestantismo afinavam-se com a renovação das estruturas, pois concebiam que mudanças em direção à atualização capitalista levariam ao que é pregado na mensagem:  liberdade religiosa.

O texto 3 aparece em  Lincoln,  órgão oficial da Sociedade Libertadora Alagoana, um dos elementos que fazia parte das tendências existentes dentro do movimento abolicionista. Você irá ler o  pronunciamento do seu Presidente Antônio Antero Alves Monteiro. Nele vem uma pergunta insinuada: o que fazer? E logo se aponta para preparar o negro para estar na sociedade branca, através da educação e trabalho, no que se implica a civilização. Este material está publicado no nº 10, Ano V, 17 de maio de 1888.

Os textos 4 e 5 falam sobre as comemorações em dois pontos do Rio de São Francisco: Traipu e Pão de Açúcar. Foram publicados em O Trabalho, nº 282, Ano VII, em cuja redação estavam Achilles Mello e Mileto Rego. Era editado em  Pão de Açúcar. O que me chamou a atenção foi o modo como se narrava o negro nas comemorações.

Talvez, em uma reflexão sobre a Abolição seja necessário fazer uma distinção radical entre o movimento e ela, colocando, em evidência, também, o que vai acontecer no após 13 de Maio. É evidente: se a Abolição acontece, dentre outros fatores, é por conta do movimento e ele não é ela. Seria passar dos limites sofríveis de interpretação, entender que tudo esteve sob o controle senhorial; seria muito pouco para entender o movimento de quebra do escravismo tardio.

Eu não posso, por outro lado,  é deixar de admirar a coragem de enfrentamento ao senhorial por parte de  muitos militantes, o escondido que está por detrás da evidência do legalismo. Não importa o rumo das concepções, mas digo que admiro a coragem que teve um Professor Domingues, um bacharel como Manoel Menezes, artistas como Pedro Nolasco, intelectuais como Dias Cabral. Cada qual no seu cada qual andaram em busca do que pensavam como liberdade e, acredito,  o momento tenha sido de formação de frente, quem sabe, o primeiro a dar uma versão moderna aos movimentos sociais em Alagoas. A Abolição em sí seria outra conversa.




LÂMPADA – TEXTO 1

Libertas quae será tamen

Eis o estandarte sublime que desde 1792 emanava as cintilações fúlgidas do sol da Liberdade, erguido no altar de todos os corações brasileiros como as santas ideias que erguem-se nas asas do pensamento: eis o nosso horizonte iluminado com as auroras da verdade e o esplendoroso arrebol do futuro: eis o nosso apanágio, o nosso fanal, a bússola da nossa civilização e progresso!

E a glória dessa conquista que irradia como o novo sol da geração presente, os louros desse triunfo grandioso a quem pertencerão?

Eis o perfil rafaelesco da verdade: é dura e por isso mesmo é que não se amolda a conveniências sabidas e vergonhosas.

O único conquistador foi o POVO, o herói sublime de todas as lutas, o maior sobrando que conhecemos deste país; pois a cousa estava nesse extremo: ou vai ou se quebra!

Saudemos portanto à pátria!

Viva a liberdade!

Viva à “canalha” abolicionista!

Glória!

LÂMPADA – TEXTO 2

Ave libertas!

Protestantes! Movidos pela maior gratidão para com o nosso Redentor o Senhor Jesus cristo, unamo-nos cordialmente às manifestações em regozijo pela excelsa vitória ganha pelo Abolicionismo Brasileiro.

O estandarte abolicionista erguido no Século XVI por Lutero e Calvino já tremula em nosso país!
Hoje não há mais escravidão!

Breve não haverá mais igreja oficial mas todas as crenças religiosas serão plenamente livres e iguais!

José Primênio


LINCOLN – Texto 3
  

Meus amigos e compatriotas, eis-nos ao termo de nossa penosa jornada; os dias dos sacrifícios valeram bem às provanças das glórias do triunfo.

Anos de nosso afanoso lidar, chegamos ao Capitólio.

Constância, perseverança, amor à santa causa da Liberdade e aos nobres sentimentos de humanidade foram os fachos brilhantes que nos conduziram em nossa romagem!

Chegamos, chegamos, posto que tarde, ao último marco desse plano inclinado por onde ainda rolava cerca de um milhão de vítimas manchadas do próprio sangue!

Assim como ao fiat lux da Eterna Vontade surgiram os mundos que povoam os espaço, do mesmo modo destas frases do poder soberano da terra: É ABOLIDA A ESCRAVIDÃO NO BRASIL, ergueram-se milhares de homens saídos do caos do servilismo para a luz da civilização!

Está consumada a grande obra da Redenção dos cativos em nosso país.
Trabalhemos agora para libertar o espírito desses infelizes, da noite da ignorância a fim de que possam, no esplendor das ideias, por meio do ensino, ter seguro o porvir com as leis da instrução e do trabalho.

A sociedade Libertadora Alagoana consagra a todos quanto a coadjuvaram no grandioso empreendimento vivos protestos de reconhecimento e um voto de gratidão eterna em nome da Pátria Livre.

Aos inimigos do abolicionismo, um generoso perdão, desejando que encontrem todos nos braços dos libertos sustentáculo mais robusto e de confiança do que nos escravos, para terem um trabalho regular, do qual, com especialidade na lavoura auferem importantes produtos do solo cultivado.

Viva S. A. a Princesa Imperial Regente!

Viva a Família Imperial!

Viva o Gabinete 10 de Março!

Vivam os Conselheiros Dantas, Afonso Celso, Paranaguá, Soares Brandão, Saraiva, Lafaiete e muitos outros distintos Senadores do Império, e Deputados que cooperaram para tão brilhante resultado!

Vivam Joaquim Nabuco, José Mariano, José do Patrocínio, João Clapp e todos os abolicionistas sinceros que tiveram a imensa glória de ver extinta para sempre a nódoa negra que obscurecia o brilho de nossa história!

Parabéns a todos os brasileiros por essa imensa vitoria de uma das mais renhidas lutas da civilização e do progresso nacional!

ESTÁ EXTINTA A ESCRAVIDÃO NO BRASIL!

O TRABALHO – TEXTO 4


Traipu, 21 de Maio de 1888
Caro Redator do Trabalho
Permita-nos que em poucas palavras leve ao conhecimento do respeitável público, a festa abolicionista desta vila, o modo pelo qual foi recebido aqui A EXTINÇÃO DA ESCRAVIDÃO.
      É necessário saber-se, que nesta vila apenas existia o número de 41 escravizados de ambos os sexos; não obstante, alguns dos senhorios só faltaram deitar sangue pela boca; e, tanto isso é uma verdade que, logo que alguns souberam que a LEI DE 13 DE MAIO de 1888 estava sendo discutida e votada, retiraram seus escravizados para fora da Vila a fim de mantê-los por mais alguns dias no jugo extinto.
      Chega a notícia real de ter sido assinada a Áurea Lei de 13 do corrente mês, pela AUGUSTA REGENTE, o Dr. Juiz Municipal Miguel de Novaes Mello, deu ciência a todos quanto foi todos quantos foi possível, que estava tudo consumado, que já não existia mais escravidão.
       Em seguida, diversos abolicionistas aventarão a ideia de uma passeata pelas ruas com a música marcial, para assim,, espalhar-se a verdade da sanção da Áurea Lei e distribuindo cartazes de convite a todos os ex escravistas teve lugar a passeata. [...] tem a noite depois da novena do mês mariano.
      Compareceram a este ato de regozijo, mais de seiscentas pessoas.
No correr da passeata houveram diversos discursos, sendo os oradores, o Juiz de Direito da Comarca, os doutores Manoel Leopoldino Pereira Neto,Otaviano Rodrigues de Carvalho, Florentino de Barros Abreu e Araújo Jorge, Cap. Manoel Joaquim Cavalcante e Alferes Manoel Firmino Menezes Matos.
Ao passara passeata pela porta do Cap. Henrique Méro, ao aproximar-se a bandeira Imperial, recebeu aí, uma salva de 21 tiros e, então, este por sua  vez disse algumas palavras, que significavam o grande regozijo que sua alma sentia por ver realizada a ideia que tanto o fez sofrer.
Houveram muitos foguetes, e mais poderia ter havido, se todos os habitantes desta vila compreendessem a grandeza da áurea lei de 13 do corrente.
[...]


O TRABALHO – TEXTO 5
 Festejos à lei de 13 de Maio de 1888

Já sabíamos por cartas de Penedo, que havia sido sancionada a áurea lei de 13 de Maio de 1888, que concede a todos o direito de liberdade, confirmando a igualdade perante a lei, mas carecíamos de comunicações oficiais, para se poder festejar tão humanitária lei.

O vapor da terça feira (22 do corrente) devia ser o mensageiro da feliz nova, e o povo o esperava com ansiedade.

Às dez horas da manhã desse festivo dia, o vapor Maceió da empresa Fluvial, assomou no morro do Faria, e todas as vistas para ali convergiram.

Em frente à Travessa da Matriz achavam-se colocadas, de ordem do Dr. Luiz Gonzaga de Almeida Araújo, ilustrado  digno Juiz Municipal desta comarca, diversas girândolas de foguete e em frente à travessa Gutenberg haviam outras colocadas pelos libertos, com o fim de saudarem a chegada do vapor. Ao aproximar-se este, notou-se que só trazia, como de costume, a bandeira nacional na popa. Por minutos entrou a vacilação no espírito popular: uns diziam ser falsa a notícia, outros diziam o contrário.

Desembarcaram os passageiros e a mala, e entçao, confirmada a boa nova, o povo transbordou de contentamento, e o espaço encgeu-se de foguetes, durando isto até à noite.

Às 7 horas da noite, estando modestamente decorada a casa da câmara, ali compareceram as autoridades judiciárias, o presidente da câmara, e um concurso enorme de povo acompanhados de uma banda de música marcial, e todos os libertos que podem comparecer.

O Presidente da Câmara Municipal, Sr. Manoel Themoteo de Amorim, reclamando silêncio, leu o telegrama que lhe fora dirigido pelo Exm. Sr. Vice-Presidente da província, dando a feliz notícia de que, em 13 de Maio corrente, fora sancionada a lei que concede a liberdade plena a todos os infelizes que no Brasil ainda gemiam sob o jugo da escravidão.

Ao terminar, o Sr. Presidente da Câmara Municipal essa leitura, foi vitoriada a Câmara, os Deputados, o Ministério de 10 de Março, a Princesa Regente e os abolicionistas da escravidão no Império.

Saíram as autoridades e o povo, acompanhados da banda marcial, a percorrerem as principais ruas da cidade.

Era um gosto verem-se iluminadas à capricho as casas dos adeptos da humanitária ideia, e turvas e fechadas as dos ferrenhos amantes da escravidão.

Ao passar o cortejo em frente do sobrado onde mora o Dr. Jovino da Luz, recitou este uma bela poesia que foi bem aplaudida. Em frente à residência do Dr. José Francisco da Silva Porto, digno Juiz de Direito da Comarca, parou o cortejo para ouvir um bem pronunciado discurso desse distinto cidadão, o qual terminou erguendo vivas à Princesa Regente, aos Conselheiros Dantas e Joao Alfredo e a Joaquim Nabuco, pelo triunfo alcançado.

Daí segui para rua da matriz, e ao passar em frente à casa onde reside o Dr. Juiz Municipal, este pronunciou um eloquente discurso, onde historiou a batalha começada em 1830, pela proibição do infame tráfico de africanos. Rememorou o histórico dessa campanha, data por data, nome por nome dos protagonistas mais salientes, que na tribuna das câmaras, quer na imprensa.

Mostrou, com vivas cores, os horrores dessa hidra chamada escravidão, e concluiu pedindo aos libertos que não abusassem desse direito sublime que hoje adquiriram e finalmente ergueu vivas à nação, ao Imperador, à Regente e aos lidadores em prol da liberdade.

Ao passar oc rotejo pela frente da Igreja matriz, estava esta aberta e iluminada, e do adro, uma pessoa, cujo nome ignoramos, erguia vivas análogos ao festejo.

Seguiu o cortejo para outras ruas, e, ao passar pela do comércio, teve de ouvir um discurso do Cap. João Alves Feitosa Franco, análogo ao festejo.

Finalmente, passando pelo escritório da Redação do Trabalho, tivemos mais uma ocasião de ouvir o ilustre Sr. Dr. Gonzaga de Araújo que fez a apoteose da Imprensa que lutou sem tréguas em favor da santa causa.

Aí couberam elogios aos distintos escritores Nabuco, Bocaiuva, Patrocínio e outros.

Findo este eloquente discurso, coube a palavra ao Professor Soares de Mello o qual declarou que não obstante dizerem uns que o Brasil é nação livre desde 7 de Setembro de 1822, outros desde Julho de 1823, ele só a considerava verdadeiramente livre depois de 13 de Maio corrente, porque desde esse dia é que se pode dizer que os homens são iguais perante a lei.

Disse ainda que exultava de prazer porque essa lei, como a de 28 de setembro de 1871, fora sancionada pela Princesa Imperial regente, que a Providência divina destinara para ser quem completasse a obra começada por seu venerando avô o Snr. D. Pedro I, fundador do Império do Brasil. Ainda comparando a libertação dos escravos dos Estados Unidos da América com a do Brasil, congratulou-se com todos os brasileiros por não ser precisa aqui a luta armada para vigorar tão santa causa.

Do escritório da Redação do Trabalho, seguiu o cortejo festivo para a rua da Praia, e em frente à casa nº 30, centro do festejo dos pretos, deram-se vivas ao Imperador, deram-se vivas ao Imperador, à Regente, ao gabinete de 10 de Março, à Nação livre e aos abolicionistas do Império.

Ai findou a passeata semi oficial para ter início a festa dos libertos os quais, com a urbanidade de que podem dispor, convidaram autoridades e povos a servirem-se de uma chávena de chá, que foi servido com toda regularidade.

Findo isto, às 10 e meia da noite, começou (entre os libertos) o clássico coco que durou até às 5 da manhã.

Notou-se uma cena indescritível ao entrarem os libertos na Casa da Câmara Municipal.
Existia ali um quadro com os retratos do Deputado Nabuco, do Dr. José Mariano; um dos pretos perguntou quem eram os originais e disseram,-lhe que eram dois abolicionistas denodados, ele ajoelhou-se, e na sua linguagem rude, agradeceu-lhes o benefício que fizeram aos míseros escravizados, derramando lágrimas que sensibilizaram o auditório.

O liberto que assim procedeu  era um, daqueles cujo sem hor nçao costumava maltratar os infelizes que tinha como escravos.
Imagine-se o que não fariam aqueles que eram tratados como brutos, isto é, como coisas e não como pessoas!
Não sabemos se está finda a festa, porque consta-nos que os pretos oferecerem aos abolicionistas, um jantar no domingo 27 do corrente.

Daremos conhecimento ao público do que for ocorrendo com relação aos aludidos festejos, tão discretamente promovidos por aqueles que desejavam ardentemente a liberdade de seus semelhantes, e a igualdade social.



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