Notas de política e filosofia
na pandemia
A. Sérgio Barroso
Médico, doutor em Desenvolvimento Econômico, diretor da Fundação Maurício Grabois
Esta matéria foi publicada no Suplemento Campus do Jornal O Dia (Maceió)
Corona virus pandemic / Coronavirus pandemie/
pandemia de coronavirus / pandémie de coronavirus / pandemia di coronavirus
As eleições municipais deste ano atravessarão um corredor dum tenebroso cemitério
clandestino. O negacionismo - moda dos desgraçados de plantão -, erguerá sua
longa foice, desta feita para abater a eles próprios e a miríade social
perversa que lhes sustenta. A galhofa ao sofrimento humano viralizada pelo
presidente (provisório) da República será soterrada junto a uma multidão de
cadáveres. Alta Idade Média.
Mas é mais. É espectral a decomposição dos sistemas eleitorais das “democracias
representativas”, d’alhures e daqui. As eleições municipais francesas deste 15
de março de 2020, a exemplo, deixaram em casa 56% dos aptos a votar; mas a
abstenção ali já fora de 36%, nas municipais de 2014. No Brasil, nas de 2016 já
se abstiveram quase 20%. A manipulação eleitoral pelo dinheiro reproduz-se numa
simbiose grotesca na “moral de rebanho”, de massas, de Nietzsche.
Decadência absoluta
Luciano Canfora, pensador italiano realizara
análise percuciente do esvaziamento dos fundamentos democráticos, substituídos,
numa retórica corrompida, pela supremacia da lógica do mercado; e pelo forjar
de “consensos” amalgamados na aliança da cúpula política com a mídia. Canfora denunciou
“a atual interpenetração entre o mecanismo financeiro mundial – o capital
financeiro - e a grande criminalidade” (“Crítica
da retórica democrática”, Estação Liberdade, 2007).
Não à toa que, em junho de 2019, um navio do JP Morgan Asset Management (fundo de investimento gerenciado pelo banco
americano JP Morgan Chase), foi retido na alfândega da Filadélfia com nada
menos que 20 toneladas de cocaína, avaliadas em US$ 1,3 bilhão! Modestamente,
no mesmo junho de 2019, um avião presidencial da comitiva de Jair Bolsonaro foi
apreendido com 39 quilos do mesmo pó, na Espanha. Confesso, o sargento da
equipe governamental levou lá seis anos de cadeia. Silêncio cínico até hoje.
Naquele mesmo ano, M. Draghi, saíra da presidência do Banco Central Europeu (BCE - 2011-2019); antes
fora estrategista do oligopólio financeiro americano Goldman Sachs. Draghi, a
quem o Nobel de economia P. Krugman disse-o, “sem dúvida, o maior banqueiro
central dos tempos modernos”, foi claramente imposto ao comando estatal europeu
pela grande finança. Visível, a metida de mão do privado no público. Assim é
que as coisas passaram a funcionar na globalização neoliberal.
O sociólogo alemão Wolfgang Streeck vai ao busílis da questão: o BCE “é uma
instituição fora do processo democrático”. Recorda ele a Itália dos anos 1990:
governadores do Banco Central, G. Carli e C. Ciampi assumiram a seguir as
funções de primeiro-ministro, ministro das finanças e presidente, quando o
sistema partidário desabara “sob o peso dos escândalos de corrupção – os anni de fango ou anos de lama” (“Tempo comprado. A crise adiada do
capitalismo democrático”, Boitempo, 2018).
Steven Levitsky (Harvard) em seu “Como as democracias morrem” (Zahar, 2018), “best seller” do The New York Times,
enfatiza o longo processo de decomposição da democracia nos EUA. Donald Trump,
diz ele, “é um violador em série” das normas democráticas de seu país, mas “o
processo de erosão começou décadas atrás”. Exemplifica Levitsky: Tom Delay, por
exemplo, líder republicano da era Bush Jr., acusara Obama de “marxista”. “A
desintegração” – diz - era como se deveria conceituar uma histórica regressão
da mitificada ética democrática norte-americana.
Ora, em 2000, Bush Jr. já havia sido imposto, através de um golpe claro, na
presidência dos EUA. O embuste se deu com o impedimento, pela Corte Suprema dos
EUA, da recontagem dos votos na Flórida, que consagraria a sua derrota. E o
citado professor italiano relembra que as palavras “golpe de Estado” vieram da
boca de Al Gore, o candidato Democrata que deveria vencer as eleições (L.
Canfora, idem, pp. 27-8).
Da irracionalidade – e o defunto Hegel
No Brasil, um país já fraturado politicamente por determinação do atual presidente
da República, a irrupção súbita da pandemia viral engatou-se numa economia
estagnada e quase 12 milhões de desempregados (“oficiais”). Vamos à depressão
econômica-social. Não por coincidência, os donos do sistema financeiro
brasileiro apoiaram e continuam apoiando a mescla ideológica do ex-capitão:
insanidade, perversidade, destruição nacional.
Acicatado por lancinantes desigualdades, com cerca de 800 mil presidiários, o país pode
ser destroçado se não afastar Bolsonaro e sua família-gângster, apoiados por um
grupo de militares oportunistas. Daqui até lá, penúria desolação e desesperança
abater-se-ão sobre milhões de eleitores, de qualquer maneira.
No grande filósofo [Georg] Hegel (1770-1831) brotava uma razão “quase
enlouquecida”: em sua dialética tudo se encerrava no Conceito. Conta o
formidável Domenico Losurdo (“Hegel e a liberdade dos modernos”, Boitempo, 2019)
que, no “Prefácio” a “Princípios da filosofia do direito” Hegel escrevera “nada
é real senão a ideia”. Uma epidemia de cólera o liquidou!
Esta série tem por objetivo publicar depoimentos sobre
como se pensa e se lida com o Corona em Alagoas. Está aberta a toda e qualquer pessoa, de
qualquer tendência. É uma documentação organizada, sobretudo, para um futuro
estudioso de como a epidemia foi vista e vivida em Alagoas. O material será publicado
paulatinamente no suplemento Campus do jornal O Dia. Está sendo organizado por Carlos Lima,
Mestre em História pela Universidade Federal de Alagoas e Luiz Sávio de Almeida. O blog pode
discordar de parte ou do todo da matéria publicada.