O
isolamento social é uma reivindicação dos trabalhadores
Golbery
Lessa
Especialista em Políticas Públicas e Gestão
Governamental, no Ministério da Economia
A
estrutura social e a natureza humana não são suspensas no tempo trágico. As
tragédias coletivas duradouras iniciam com comoção e descontinuidade. Mas, em
algumas semanas, um novo cotidiano se impõe porque a sociedade precisa se
reproduzir, algo impossível sem automatismos. O primeiro morto vai às
manchetes, o milésimo se transforma em número, surge uma frieza em massa ao
lado de ondas de solidariedade. Os dilemas da vida e do conhecimento não mudam
e a aparência do dia a dia mantém, em essência, as mesmas possibilidades de
alienação e libertação dos períodos normais. Mas a tragédia cria brechas,
modifica algumas condições de entendimento do mundo.
Cada
tragédia particular facilita a compreensão de aspectos distintos da vida. Não
modifica totalmente os indivíduos e as instituições, mas sempre marca o
imaginário de modo indelével, pois muda a maneira dos fatos aparecerem às
pessoas. A pandemia da covid-19 destruiu a sensação de segurança sanitária
existente no mundo contemporâneo em amplos segmentos populacionais. Essa
sensação só não existia em grande parte da África, regiões da Ásia e nos
segmentos mais pauperizados da classe trabalhadora de todos os continentes. A
mudança abrupta na mentalidade, determinada pelo súbito entendimento da
degradação das condições sanitárias, mais do que os decretos governamentais, é
o que tem levado as multidões que não trabalham nos setores essenciais ao
isolamento social.
No
que se refere à aparência enganadora das relações sociais capitalistas, que
corrobora o liberalismo em conjunturas ditas normais, pois passa a falsa ideia
de que vivemos em um mundo justo de troca de mercadorias entre iguais, no qual
a criação da riqueza é característica do capital e não dos assalariados, o
isolamento em massa e a paralisia do setor de serviços causaram um rebaixamento
momentâneo relevante da alienação da consciência dos trabalhadores, já que evidenciaram,
até certo ponto, o fato de que não há produção de valor econômico ou consumo
final, duas variáveis estruturantes, sem a atividade e a fruição dos indivíduos
que laboram. A ideologia dominante ficou nua em público em poucas semanas.
Assim
como ocorre durante uma hiperinflação, que quebra conjunturalmente a falsa
ideia de que o trabalhador oferece oito horas de trabalho e recebe o
equivalente em salário, a paralisia parcial da produção durante a pandemia
também revela em alguma medida o fenômeno da mais-valia e evidencia que o
sistema não se fundamenta na troca de mercadorias entre iguais, mas na
apropriação de um valor excedente por um dos lados da equação econômica, e que
a atuação empresarial é dispensável diante de uma possível auto-organização dos
assalariados e autônomos. Um efeito análogo ao de uma greve geral planetária.
E, como se sabe, as greves gerais prefiguram revoluções, mesmo que não sejam
suficientes para um desenlace revolucionário, pois este pressupõe também
decisões das vanguardas políticas.
Essa
realidade está, de um lado, inquietando as corporações capitalistas e, de
outro, as obrigando a aceitar a quarentena massiva como uma concessão aos
trabalhadores, diante da alternativa potencial de desobediência civil ou
rebelião aberta. O grande capital tem sido obrigado a aceitar perdas nos
setores de serviços e comércio presencial, mas, na medida em que a maior parte
da população legitima por razões de sobrevivência a atividade nos setores
essenciais, tem conseguido garantir a continuidade do trabalho na indústria, na
agropecuária, no comércio digital e nos meios de comunicação, ramo este no qual
se encontram as poderosas empresas tecnológicas, inseridas na ponta da
economia. A situação radicaliza a tendência de aumento do trabalho à distância
presente anteriormente, o que tem facilitado a convivência do sistema econômico
com o isolamento social.
Estabeleceu-se
uma espécie de empate entre capital e trabalho, alienação e esclarecimento,
mercado e Estado. Situação diferente da conjuntura anterior, na qual os
trabalhadores estavam perdendo de goleada e o neoliberalismo triunfava
impávido. A maioria dos governantes que tomaram as medidas adequadas de combate
à covid – 19 viram sua popularidade aumentar, uma repetição de fenômeno frequente
durante guerras e pandemias, pois são situações nas quais a sociedade fica mais
dependente da coordenação estatal para se reproduzir. O caso brasileiro é prova
adicional, pois a popularidade de Bolsonaro, o genocida, caiu
significativamente.
A
atitude resoluta de autopreservação da maioria dos trabalhadores, isto é, a
verdadeira greve geral planetária que fazem se recusando a laborar sem as
condições mínimas de segurança sanitária, e o fato de vários setores econômicos
continuarem funcionando, dando sobrevida ao capital, sinalizam que a superação
da pandemia coordenada por instâncias estatais fortalecidas será lenta e se
desenrolará na maior parte dos países durante todo o ano de 2020, além de
impactar nos próximos anos. As corporações capitalistas já conseguiram enormes
benefícios dos governos e traçam planos para reafirmar o neoliberalismo na fase
de transição e no pós-pandemia. Os sindicatos e movimento sociais de esquerda,
por seu lado, têm procurado defender o direito à quarentena, apoiar os profissionais
de saúde e a população mais empobrecida e transformar a momentânea
conscientização anticapitalista espontânea em um momento mais avançado da
consciência de classe.
Projeto Memória da
Pandemia nas Alagoas
Coordenação
Luiz Sávio de Almeida
e José Carlos Silva de Lima
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deixar um painel diversificado sobre a pandemia nas Alagoas