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quarta-feira, 3 de junho de 2020
Adriana Vilela Toledo. Pandemia: nuances do coronavírus. Memória da Pandemia nas Alagoas
Adriana Vilela Toledo
Pedagoga, especialista em Administração Pública e Pedagogia Empresarial
Presidente Municipal do PSDB Mulher de Maceió
Chegamos à infeliz marca de mais de 31 mil mortes no Brasil. São mais de 31
mil famílias que perdem seus entes, que sofrem, que derramam lágrimas em
consequência do coronavírus. Uma pandemia implacável e ainda pouco
conhecida, mesmo após seis meses do seu aparecimento.
Em janeiro de 2020, as autoridades chinesas confirmaram que haviam identificado um novo tipo de coronavírus, responsável por causar a doença COVID-19, tendo como foco a cidade de Wuhan, província de Hubei, na China. Uma perplexidade para a população do mundo inteiro, ao mesmo tempo, misturado a uma incredulidade da força e letalidade do vírus.
A Organização Mundial da Saúde ainda tentava entender mais sobre o novo coronavírus, como ele afetava os doentes, seu tratamento e o que os países poderiam fazer para combatê-lo. A falta de informação e de dados que pudessem ajudar a nesse entendimento e no que estava acontecendo, deixou a todos em estado de alerta. Quais medidas tomar, o que fazer para prevenir em cidades, estados e países?
E fomos assistindo pelo noticiário e redes sociais o vírus rompendo as fronteiras da Ásia e chegando a Europa e fazendo da Itália seu primeiro epicentro. Enquanto a preocupação tomava conta da maioria dos governantes e o medo de ser infectado crescia entre as pessoas, no Brasil houve uma certa resistência da Presidência da República em admitir a gravidade da situação.
Assim, diante da rapidez com a qual a vírus se espalhou pelos cinco continentes e número crescente de casos confirmados, entramos no período de isolamento social e com ele todas as incertezas, angústias, ansiedade vieram juntos. Já não era mais uma doença do outro lado do mundo, estava no Brasil, estava ao nosso lado. Assistimos às entrevistas do ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, explicando o comportamento do vírus nos brasileiros, ouvimos casos de conhecidos, amigos, até que as histórias chegaram dentro do nosso ambiente familiar.
O quadro ainda é desolador, com número de óbitos batendo recordes diários, ocupação de leitos chegando a sua capacidade máxima, o drama de conseguir respiradores para atendimento no Sistema Único de Saúde. Existe também uma demanda por maior número de médicos e enfermeiros, que têm enfrentado essa crise total dedicação e profissionalismo, pondo suas próprias vidas em risco para salvar outras.
Além da crise na saúde, estamos vivendo outras consequências do isolamento social, atingindo em cheio a economia. O vírus, ao contrário do que se afirmou, não afeta a todos igualmente. As famílias mais vulneráveis, que moram nas periferias, não têm acesso a água potável, não possuem saneamento básico nas suas casas e precisam sair de suas casas para buscar o sustento ou passam fome, essas estão em um cenário muito pior. São pessoas que têm optar por arriscar se contaminar pelo vírus ou colocar comida na mesa. E quem pode amenizar essa situação, no caso governo federal, prefere passar os dias pensando em qual polêmica entrar do que acelerar pagamento do auxílio emergencial, fazer repasse de recursos aos Estados e municípios, melhorar a qualidade e eficiência da saúde pública.
Como se não bastasse a longa e exaustiva batalha contra a Covid-19, ainda temos, do outro lado, que lutar contra o obscurantismo e desinformação, inflados por uma ideologia conservadora e negacionista, que escolhe a desobediência em meio a pandemia. Grupos que se aglomeram, fazem festas em suas casas e desde o início se juntam em atos autoritários e antidemocráticos nas ruas. Isso não serve mais no século em que estamos.
O que vai vencer o vírus, o que nos dará respostas e soluções será a ciência, a tecnologia, com investimentos no trabalho realizado na saúde. Os números de todos os países mostram que as diretrizes do OMS, de isolamento, de tratamento, de cuidados de prevenção, ajudam a conter o avanço do corona, e para isso os governos devem fornecer o necessário para quem não tem condições de ficar em sua casa. A grande maioria já está lutando junta, mas precisamos que todos façam parte desse combate.
Em janeiro de 2020, as autoridades chinesas confirmaram que haviam identificado um novo tipo de coronavírus, responsável por causar a doença COVID-19, tendo como foco a cidade de Wuhan, província de Hubei, na China. Uma perplexidade para a população do mundo inteiro, ao mesmo tempo, misturado a uma incredulidade da força e letalidade do vírus.
A Organização Mundial da Saúde ainda tentava entender mais sobre o novo coronavírus, como ele afetava os doentes, seu tratamento e o que os países poderiam fazer para combatê-lo. A falta de informação e de dados que pudessem ajudar a nesse entendimento e no que estava acontecendo, deixou a todos em estado de alerta. Quais medidas tomar, o que fazer para prevenir em cidades, estados e países?
E fomos assistindo pelo noticiário e redes sociais o vírus rompendo as fronteiras da Ásia e chegando a Europa e fazendo da Itália seu primeiro epicentro. Enquanto a preocupação tomava conta da maioria dos governantes e o medo de ser infectado crescia entre as pessoas, no Brasil houve uma certa resistência da Presidência da República em admitir a gravidade da situação.
Assim, diante da rapidez com a qual a vírus se espalhou pelos cinco continentes e número crescente de casos confirmados, entramos no período de isolamento social e com ele todas as incertezas, angústias, ansiedade vieram juntos. Já não era mais uma doença do outro lado do mundo, estava no Brasil, estava ao nosso lado. Assistimos às entrevistas do ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, explicando o comportamento do vírus nos brasileiros, ouvimos casos de conhecidos, amigos, até que as histórias chegaram dentro do nosso ambiente familiar.
O quadro ainda é desolador, com número de óbitos batendo recordes diários, ocupação de leitos chegando a sua capacidade máxima, o drama de conseguir respiradores para atendimento no Sistema Único de Saúde. Existe também uma demanda por maior número de médicos e enfermeiros, que têm enfrentado essa crise total dedicação e profissionalismo, pondo suas próprias vidas em risco para salvar outras.
Além da crise na saúde, estamos vivendo outras consequências do isolamento social, atingindo em cheio a economia. O vírus, ao contrário do que se afirmou, não afeta a todos igualmente. As famílias mais vulneráveis, que moram nas periferias, não têm acesso a água potável, não possuem saneamento básico nas suas casas e precisam sair de suas casas para buscar o sustento ou passam fome, essas estão em um cenário muito pior. São pessoas que têm optar por arriscar se contaminar pelo vírus ou colocar comida na mesa. E quem pode amenizar essa situação, no caso governo federal, prefere passar os dias pensando em qual polêmica entrar do que acelerar pagamento do auxílio emergencial, fazer repasse de recursos aos Estados e municípios, melhorar a qualidade e eficiência da saúde pública.
Como se não bastasse a longa e exaustiva batalha contra a Covid-19, ainda temos, do outro lado, que lutar contra o obscurantismo e desinformação, inflados por uma ideologia conservadora e negacionista, que escolhe a desobediência em meio a pandemia. Grupos que se aglomeram, fazem festas em suas casas e desde o início se juntam em atos autoritários e antidemocráticos nas ruas. Isso não serve mais no século em que estamos.
O que vai vencer o vírus, o que nos dará respostas e soluções será a ciência, a tecnologia, com investimentos no trabalho realizado na saúde. Os números de todos os países mostram que as diretrizes do OMS, de isolamento, de tratamento, de cuidados de prevenção, ajudam a conter o avanço do corona, e para isso os governos devem fornecer o necessário para quem não tem condições de ficar em sua casa. A grande maioria já está lutando junta, mas precisamos que todos façam parte desse combate.
Projeto Memória da
Pandemia nas Alagoas
Coordenação
Luiz Sávio de Almeida
e José Carlos Silva de Lima
O blog pode concordar
ou não, em parte e no todo, com a matéria publicada
Nosso objetivo é
deixar um painel diversificado sobre a pandemia nas Alagoas
Ábia Marpin. A rede afroalagoana: as luzes para uma face no escuro Parte 1: A invenção de Palmares
Dois dedos de prosa
Ábia Marpin faz uma bela reflexão sobre as
discussões e ações recentes com relação aos Palmares, dando-nos uma adaptação
de dissertação que apresentou como parte da obtenção do grau de mestre em
sociologia pela Universidade Federal de Alagoas.
Ela retorna à questão dos Palmares, demonstrando
o quanto se tem de discutir não somente com relação à história, mas
especialmente pelo seu significado atualizado.
Os seus artigos serão publicados em três números
de Campus e, assim, esperamos estar cumprindo o nosso objetivo que é o de
divulgar reflexões sobre Alagoas.
Agradecemos mesmo à Ábia, especialmente por
sabermos do esforço que é realizar um doutorado sério.
Vamos à leitura!
Sávio
Ábia Marpin (referência em 2015)
Hoje pesquisadora, doutoranda do IESP/UERJ, mestre em
Sociologia e jornalista pela Ufal, pesquisa as relações raciais em Alagoas, em
especial no potencial político das expressividades negras em Alagoas; também
atuou em assessoria de comunicação e produção cultural, sendo uma das
fundadoras do grupo percussivo Coletivo AfroCaeté e uma das idealizadoras do
projeto Batuquerê, que une música e cultura popular para a formação cidadã de
crianças e jovens.
A rede afroalagoana:
as luzes para uma face no escuro
Parte 1: A invenção de
Palmares
O texto
que segue é parte de uma pesquisa defendida em minha dissertação de mestrado,
no último fevereiro no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade
Federal de Alagoas (PPGS/UFAL). A dissertação, intitulada Luzes para uma
face no escuro: a emergência de uma rede de valorização da expressividade
afroalagoana, trata de um processo recente de abertura de espaços públicos
legítimos para a uma série de expressões – mormente mas não só culturais –
integrantes do universo simbólico do negro em Alagoas.
Marcada
por uma série de massacres com as populações não-brancas, a história de Alagoas
é uma das vias para se compreender a censura tácita e cruel, quando não a
desqualificação, com qualquer elemento negro no cotidiano alagoano. Frente a
este passado, apoiada por uma organização política dos movimentos negros, ganha
vulto a interação entre diversos grupos e agentes que teceu uma rede que tem
dado sustentação para a questão negra local. Assim, mesmo que de forma
proporcionalmente tímida, tiramos do escuro de histórias mal contadas a
contribuição e o sofrimento do povo negro alagoano.
Esta
rede, a rede afroalagoana, intensifica suas conexões notadamente a
partir dos anos 2000, mas tem raízes em uma trajetória de luta anterior, aqui
invocada a partir do processo de tombamento da Serra da Barriga, no início da
década de 1980. Esta trajetória da ressignificação e dos novos usos
socais da memória dos elementos do universo simbólico do negro em Alagoas,
estão divididos em três fases, aqui referenciadas como três momentos de
invenção de tradições (HOBSBAWM, 1997),
respectivamente: A invenção de Palmares, A invenção de Zumbi e A invenção do
Quebra de 1912. Tais momentos são interpretados como marcos e argumentos
mobilizadores para os eventos e agentes da rede afroalagoana.
Não só, mas principalmente, a
partir do manejo do valor simbólico da memória destes três elementos histórico
de Alagoas, é que emergiu o que aqui se diz rede
de valorização da expressividade afroalagoana. Pois, a invenção ou reinvenção é parte dos usos
que se faz do passado e da memória – e de suas narrativas –, que são objeto de
lutas e disputas semânticas, conceituais, políticas e culturais.
…
Com o
termo a invenção de Palmares, faz se referência ao momento histórico entre a
década de 1980 e meados da década de 1990, onde se mobilizou um conjunto ações
para a ressignificação do território onde hoje se localiza o Parque Memorial
Quilombo dos Palmares, e onde, segundo evidências, se localizou o maior
quilombo da América portuguesa.
Segundo
alguns historiadores, como é o caso de Dirceu Lindoso, Palmares ainda é um fato
mal compreendido pelo pensamento social brasileiro, pois, mais que agrupamentos
sociais alternativos ao regime escravista das plantations, significou
uma organização social pluri étnica (“porque a escravidão brasileira foi
formada de uma pluralidade de etnias negro-africanas”), e pluri genética (“com
a contribuição de outras etnias não-negro-africanas, como as de brancos pobres
e mestiços e de índios”) (LINDOSO, 2007: 28), com vistas a criar uma nação, a
nação quilombola: “O que se pensou ali não foi só em fugir, mas em
criar. E criar o que? A permanência do estado de liberdade com autonomia, como
depois os escravos do Haiti fizeram. [...] Pois o que se tentou no Quilombo dos
Palmares foi mais que criar um estado de alforria por conta própria, foi criar
um estado de nação”. (LINDOSO, 2007: 18-9)
Esta confusão, fruto – como
destaca o autor – de preconceitos historiográficos, deu margens para que
houvesse uma tentativa de ressignificar o fato histórico, e nesta
ressignificação, ocorre o que aqui identifica-se como invenção de tradições.
Tal tentativa de ressignificação,
se formalizou no 1º Encontro Nacional do Parque Histórico do Quilombo de Zumbi
dos Palmares, que ocorreu em Maceió, no Auditório Guedes de Miranda, no dia 26
de agosto de 1980. O evento foi o resultado de esforços coordenados entre o
Projeto Rondon, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),
o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq),
a Empresa Alagoana de Turismo (EMATUR), a Coordenadoria de
Extensão Cultural da UFAL e a Prefeitura de União dos Palmares. Houve ainda a
participação de representantes de outras universidades do país, de militantes e
entidades culturais ligados ao movimento social negro nacional e daqueles que
viriam a ser os primeiros representantes do movimento social negro – oficial e
na acepção republicana do termo – em Alagoas.
Após o
Encontro, o projeto da ressignificação do espaço da Serra da Barriga,
inicialmente chamado Projeto Zumbi, aglutinou outros interessados, como
a sociedade civil negra organizada, a UFAL, a Prefeitura de Maceió, o Instituto
Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL) e o governo do Estado de Alagoas.
A
solicitação do tombamento foi assinada por figuras públicas de todo Brasil,
entre professores, líderes comunitários, instituições religiosas e instituições
de ensino superior. A articulação do movimento negro contou com a atuação de
representantes em cargos públicos como Olympio Serra, pesquisador na Fundação
Nacional Pró-Memória, Carlos Moura, primeiro titular da Assessoria de Assuntos
da Cultura Afro-Brasileira, do então recém-criado Ministério da Cultura (MinC),
e Abdias Nascimento, criador do Teatro Experimental do Negro (TEN) e então
Deputado Federal.
A
proposta de tombamento chegou ao Conselho consultivo do Instituto de Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), no ano de 1982, como um dos primeiros pedidos de
tombamento de bens representativos da cultura negra brasileira, aprovado em
1985. E se institucionaliza com a publicação do Decreto nº 95.855, de 21 de
Março de 1988, que declara a Serra da Barriga como Monumento Nacional. Sob a
prerrogativa de sua gestão, foi criada ainda a Fundação Cultural Palmares em
agosto de 1988, vinculada ao MinC.
Além do
que, este movimento de ressignificação da memória do Quilombo dos Palmares não
se restringiu ao território da Serra da Barriga, tendo se espalhado por
discussões em todo território nacional e, ainda em 1990, resultou na criação do
Memorial Zumbi dos Palmares, em Volta Redonda (RJ).
O
Parque Memorial Quilombo dos Palmares foi implantado em 2007, no alto da Serra
da Barriga e pretende recriar o ambiente do mais duradouro e resistente
quilombo das Américas, sendo o primeiro e único parque temático sobre a cultura
negra do País.
Este
processo de ressignificação territorial encontrou viabilidade na mudança de
paradigma na política pública nacional tanto para a compreensão da identidade
nacional, como das estratégias de preservação da memória por meio dos
patrimônios materiais e – a partir de então também – imateriais da sociedade
brasileira. Além desta mudança no paradigma da identidade nacional, a produção
de relatórios por pesquisadores e intelectuais que atestassem a legitimidade da
intervenção estatal subsidiou tais demandas, como ratifica as investigações de
Rosa Lucia Lima da Silva Correia (2014).
A
partir do relato de Zezito Araújo é possível identificar como o ideal de
ressignificar o território da Serra da Barriga não estava uniformizado,
todavia, na medida que seu argumento mobilizava mais agentes, mais ele ganhava
em ambiência, penetração e legitimidade:
E eu fiquei recuado lá no final do
auditório. [...] E o Abdias Nascimento fez a seguinte indagação:
"Professor João Azevedo [então reitor da UFAL], como é que você faz um
evento desse aqui em Alagoas, e não convida os professores negros da
universidade? Não tem professor negro nessa universidade não?". Eu nunca
esqueci dessa fala. Claro, ele não falou isso de forma crítica, mas em tom de
brincadeira. E o professor João Azevedo percebeu que eu estava lá atrás e
disse: "Tem sim, olhe o professor Zezito ali. Foi contratado agora no
começo do ano. Zezito, venha pra cá pra mesa". Veja, eu não tinha a mínima
experiência, nenhuma relação com a temática, com Zumbi, eu não sabia do que se
tratava. Mas eu, evidentemente, tava lá e fui, compus aquela mesa.
Várias
vistorias e marcações foram feitas especialmente pela UFAL e pelo Instituto de
Terras de Alagoas (ITERAL). Em relação à UFAL, estas ações se concentraram sob
os auspícios da criação do Centro de Estudos Afro-Brasileiros (CEAB), instalado
na casa do poeta palmarino Jorge de Lima. Este trabalho resultou num relatório
publicado em 1985, com o título Serra da Barriga: exposição de motivos para
o tombamento[1].
Zezito
Araújo foi um dos coordenadores do processo de demanda e efetivação do
tombamento da Serra da Barriga em Alagoas e dirigiu o CEAB – transformado em
Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, o NEAB – entre 1983 a 1991, após dois anos
de gestão de Décio Freitas.
Além
disso, e talvez principalmente, este estímulo externo a negros alagoanos para
considerar e participar do processo da inclusão do sujeito negro na história
nacional, deu bases para a criação do interesse e a fundação do movimento
social negro no estado.
Houve um tenso processo para
instituição do Memorial Zumbi, com múltiplos interesses envolvidos neste
processo. Além de tensões institucionais sobre o
potencial do tombamento da Serra da Barriga, seja como possibilidade de
incremento no turismo étnico para Alagoas, seja como possibilidade de
empoderamento do espaço pelo movimento social negro, ou ainda como
possibilidade de aprofundamento do vínculo da cultura negra com a identidade
nacional, há ainda as tensões com os moradores da Serra. As pesquisas de Rosa
Lucia Lima da Silva Correia sobre a relação dos atuais moradores da Serra da
Barriga com o processo de tombamento do local, apontam para estas tensões.
Segundo ela, “A população da Serra da Barriga não é remanescente do
antigo Quilombo dos Palmares e suas necessidades não se identificam com as
prioridades do projeto governamental e nem com o ideal do movimento negro para
a área.” (CORREIA, 2007: 94).
A
conclusão a que sua pesquisa chega, avalia tais tensões enquanto fruto de uma
tentativa de recriar o significado social de um território sob o qual estão em
fluxo interesses concorrentes. A ialorixá Mãe Neide Oyá d'Oxum destaca tensões
também sociopolíticas em União dos Palmares: “a gente precisa dar a
União a cara de uma cidade remanescente, de uma cidade de resistência, de uma
cidade afro-brasileira. Que não parece, parece uma cidade de coronéis mesmo.
[...] Precisa ser o ano inteiro, não só na semana do 20 de novembro”.
A
polifonia alcança inclusive os intelectuais partidários da ressignificação da
história negra no Brasil. O historiador alagoano, Sávio de Almeida, mesmo que
concorde com o tombamento da Serra, é crítico tenaz do apelo comercial do
tratamento turístico dado ao espaço, que na construção do parque sobre a área
original tratou de forma imprudente os indícios que legitimariam sua
continuidade com a ocupação da Serra da Barriga pelo Quilombo dos Palmares.
Com
estas observações, avançamos de uma interpretação imediata do gesto de
(re)apropriação da Serra da Barriga pelo movimento social negro como um projeto
político de ressignificação de um espaço com vistas a saldar uma dívida com o
vulto histórico da Guerra dos Palmares e com a reinterpretação do fato e de
seus heróis, para um movimento analítico que leva em consideração a
concorrência de vários interesses, uma característica da invenção de tradições.
Ao cristalizar o significado do território e de seu espaço social, a Serra da
Barriga se transforma em uma tradição inventada, um instrumento para consolidar
um novo projeto de identidade nacional.
A
partir desta mobilização que se estrutura a partir do 1º Encontro Nacional do
Parque Histórico do Quilombo de Zumbi dos Palmares, a memória do quilombo e da
resistência e do massacre dos Palmares passa a ser incorporado como
elemento-chave da mobilização do movimento negro em todo país, mas
especialmente na organização das ações da militância e valorização da
expressividade negra em Alagoas.
Este
momento também inaugurou visitas sistemáticas de militantes e ativistas negros
à Serra, com a utilização do espaço com atividades culturais alusivas à
expressividade negra, ou ao que se entendia como tal. Segundo Zezito Araújo, a época integrante do
Memorial Zumbi e um dos coordenadores das programações artísticas das visitas à
Serra, a “ausência de atividade cultural negra em Alagoas” abriu espaço para o
folclore alagoano – em muitos momentos um refúgio para a expressividade da
cultura negra –, e para a produção cultural da Bahia, onde o valor negro já
possuía legitimidade.
No entanto, tempos depois, o
próprio Zezito faz uma ressalva quanto a esta ausência, e a analisa hoje
enquanto um sinal da falta de vínculo do movimento social negro com estas expressividades:
Nós não tínhamos vínculo com o
movimento cultural, mas isso não quer dizer que ele não existia. Nós tínhamos
um grande pintor – ele não participava do movimento mas ele tinha uma produção
cultural efetiva – que era o Mestre Zumba, um dos maiores pintores negros do
estado de Alagoas. Nós tínhamos o trabalho do
pessoal dos terreiros. Nós tínhamos até dentro do movimento pessoas do
candomblé, mas a gente não conseguia fazer um link com isso – coisa que
posteriormente nós conseguimos fazer. Quem era um elo direto que nós tínhamos
com o cultural? Porque inclusive esse elo direto que nós tínhamos nos deu uma
visibilidade e que hoje desapareceu. Foram as escolas de samba.
Articulando
a legitimidade que o valor do Quilombo dos Palmares alcança com a invenção de
uma tradição nacional a partir dele, Edson Bezerra, em seu blog Negros,
canais, lagoas e outras imagens periféricas, traça um paralelo entre as
comunidades culturais dos bairros periféricos e a quilombagem. Sua
análise, aponta, não por coincidência, para o Quilombo dos Palmares enquanto
tradição inventada (BEZERRA, 2010). Trazendo, a reboque, mais indícios da fusão
dos caracteres da expressividade afroalagoana no folclore e na cultura popular
local.
Os
primeiros grupos a ocupar a serra eram compostos de um lado por militantes, e
de outro por grupos culturais, sendo a maioria de capoeiristas locais. A
capoeira é uma expressão da afroalagoanidade basilar para a rede
afroalagoana. Mesmo que hoje seu status de esporte a desvincule
parcialmente dos centros de culto de religiosidades de matriz africana, ela é
uma das responsáveis para a inclusão da cultura na prática dos terreiros.
O
processo de ocupação contemporânea da Serra da Barriga, em especial das tensões
com sua apropriação como um marco para a história nacional, faz com que outros
estados onde a cultura negra tem mais legitimidade e poder simbólico disputem a
condução das atividades, muitas vezes ignorando a atuação dos movimentos
sociais e culturais negros de Alagoas. O que fica claro na fala de Mãe Neide
Oyá d'Oxum:
A exemplo do 20 de novembro do ano passado, há quanto
tempo… você nasceu que ano? 84? Pois é. Há quanto tempo a gente sobe aquela
Serra da Barriga? [Desde] Quando só tinha a casa de alguns moradores. Quando
num tinha nem uma barraquinha pra você dizer assim “você tem um lugar pra você
descansar o sol da sua cabeça”. Porque parecia que a Serra não era nossa! Que
nós não éramos os anfitriões da casa.
Com a
emergência da rede afroalagoana, os agentes locais obtiveram subsídios
para reclamar sua participação mais ativa na ocupação da Serra da Barriga
durante as festividades do Dia da Consciência Negra. Estes agentes, por meio de
articulações em conjunto, disputam politicamente um novo modelo de atuação e o
empoderamento do território e de seu novo significado social. É nesse sentido
que foi realizada, em 30 de maio de 2014, uma reunião com a representação regional
de Alagoas da Fundação Cultural Palmares, entidade gestora das atividades na
Serra da Barriga, e o deputado federal por Alagoas, Paulo Fernando dos Santos,
o Paulão, convocada por militantes da Articulação pela Cultura Popular e Afro
Alagoana e, aqui, agentes da rede afroalagoana.
Um dos
membros da Articulação, Rogério Dyas, diz: “Ela veio construindo uma
agenda que identifica a cidade de Maceió com a cultura negra. Que identificação
é essa? Dentre várias tentativas nossas, duas ações se concretizaram com muita
força, que foi o Agosto Popular e a Festa das Águas. […] Pra gente é
fundamental que a gente marque a cidade com esse símbolo estético da cultura
negra.”
Segundo outro representante,
Christiano Barros Marinho, “Um dos pontos de pauta para essa reunião seria a
relação dos grupos culturais com a Fundação Palmares. A gente precisa
fortalecer a Fundação Palmares local, para que os grupos locais tenham força, e
os grupos locais precisam ter acesso à presidência da Fundação Cultural
Palmares nacional, principalmente no que diz respeito as festividades do dia 20
de novembro. [...] Entre os campos de atuação da Palmares está a preservação e
o cuidado a grupos culturais, e é razoável que se tenha relações mais próximas
com grupos culturais alagoanos.”
Esta necessidade
de afirmar o vínculo original é algo que nos aponta para a emergência da rede
afroalagoana, pois a afroalagoanidade passa a ser um valor caro, assim como
a memória dos elementos históricos que o ratificam. Essa memória, como destaca
Pierre Nora (1993), tende a se fixar nos locais que a representa, tonando-se
pontos de acesso a memórias esfaceladas.
Enquanto uma primeira fase para a
emergência da rede afroalagoana, o processo de invenção de Palmares diz
de um grupo de atores e fatos históricos, sem os quais não seria possível a
atual valorização da expressividade negra em Alagoas.
Notadamente marcada por traços
mais reflexivos e políticos da expressividade negra, e a lacuna de que fala Zezito Araújo do traço
artístico e cultural desta expressividade seja pela ausência, seja pela pouca
visibilidade e/ou formalização dos grupos que haviam, vai ter uma resposta no
próximo momento, quando esta lacuna gera uma demanda, e incita a criação de
vários grupos declaradamente afro em Alagoas.
Referências
ALMEIDA, Luiz Sávio de. Uma visão da Serra da Barriga em Palmares,
Alagoas. Maceió, 25 de julho de 2014. Disponível em
<http://luizsaviodealmeida.blogspot.com.br/2014/07/luiz-savio-de-almeida-uma-visao-da.html>.
Acesso em novembro de 2014.
BEZERRA, Edson. As comunidades culturais dos bairros periféricos
enquanto Quilombos: refletindo no contexto urbano sobre o texto de Dirceu,
A Importância do Mundo Quilombola, ou, de como se pode criar (ou já está em
andamento) um Quilombismo Urbano. Maceió, 5 de março de 2010. Disponível em
<http://outrasimagensperifericas.blogspot.com.br/2013/03/as-comunidades-culturais-dos-bairros.html>.
Acesso em outubro de 2014.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1989.
CORREIA, Rosa Lucia Lima da Silva. Mito e territorialidade: o
monumento nacional e a comunidade rural da Serra da Barriga. Democracia
Viva, Rio de Janeiro: Ibase, n. 34, p.88-95, mar. 2007. Disponível em:
<http://www.ibase.br/userimages/DV34_espaco_aberto.pdf>. Acesso em
novembro de 2014.
________. Territorialidades, patrimônio e conservação na Serra da
Barriga, sede do antigo Quilombo dos Palmares. In: IV Reunião Equatorial de
Antropologia e XIII Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste, 4., 2013,
Fortaleza. Anais. [S. L.]: REA/ABANNE, 2014. Disponível em:
<http://www.reaabanne2013.com.br/anaisadmin/uploads/trabalhos/13_trabalho_
000947_1373837475.pdf>. Acesso em novembro de 2014.
HOBSBAWM, Eric. Introdução: a invenção das tradições. In: HOBSBAWM, Eric;
RANGER, Terence (Org.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1997. p. 9-23.
LIMA, Ábia. Luzes para uma face no escuro: a emergência de uma
rede de valorização da expressividade
afroalagoana. 23 de fev 2015. 164. Tese (Doutorado) - Instituto de Ciências
Sociais da Universidade Federal de Alagoas. Maceió, 2015.
LINDOSO, Dirceu. O poder quilombola: a comunidade mocambeira e a
organização social quilombola. Maceió: Edufal, 2007.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos
lugares. In: Projeto História. São Paulo, nº 10, p. 7-28, dez. 1993.
[1] Serra da Barriga: Exposição de Motivos
Para o Tombamento. Relatório Preliminar. Maceió: SECOM/SERGASA, 1985.
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