Pandemia e Isolamento social: A cidade
arquipélago e sua busca pela lanterna dos afogados
Por D.C. Vanderlei
Estudante trabalhador e amante da geografia
Aos meus 6 anos ocorreu um daqueles
momentos revolucionários da vida, e veio com um déjà-vu. Foi num velho sítio da
Santa Amélia, à beira da mata do Parque Municipal, uma área coletiva
compartilhado por 5 casas entre mãe, avós, tios, padrinhos, primos. Foi ali,
naquela paisagem bucólica do banco de madeira em forma de lua crescente, que
cresci; que tive noção do discorrer do tempo e do valor da socialização.
Me lembro do entusiasmo e receio que
me afogaram em tal descobrimento, o qual me fez puxar o primo Nanã pela barra
da camisa; o ingênuo Alan pela cacunda; o avô, até onde eu alcançava. O caçula
queria atenção! E do ponto de vista dele, espécie de autoproclamado legítimo
descobridor, a revelação era digna de grande genialidade, feito de invejável
sagacidade, somente igualável aos predicados de um extraordinário gênio
cientista, um suprassumo do saber, um oráculo. Como gosta de pronunciar a nova
geração: “Top das galaxias”. Eureca!!
O que era pra mim grande feito, era
para eles motivo de altos gritos e gaitadas. – Tolo!, eles diziam. Ao sair do
meu complexo de Peter Pan, onde o limite da cronologia é um dia após o outro,
eu fui apresentado a uma das maiores crises existenciais da nossa era: o
caráter líquido do tempo.
Sim. Oh Grande Poderoso Cronos!
Magnífico e paradoxo rei dos Titãs! Tua percepção que nos trás clareza e,
concomitantemente, pode nos deixar diante de uma depressão tão profunda e
dissecada quanto aquela do vale do parque municipal.
E se a geografia nos revela que em
todo vale há um curso d’água, nesse abismo onde nos enfiamos, o fluxo do rio
representa o curso normal do tempo; a água, a vida. Às vezes é preciso represar
o rio aqui, pra liberar ali, senão dá enxurrada. Sabe bem disso o autêntico
brasileiro, aquele vítima do “saneamento trágico”, sempre atento à previsão do
tempo.
Porém por aqui, desde os tempos de
Cabral, é muito comum se confundir
planejamento e metáfora, e essa é razão pela qual tanta gente nesse país nada
muito enquanto morre de sede. A metáfora apresenta um viés pragmático, quando
estudamos os efeitos do coronavírus no corpo de um doente terminal. Ele é
levado a morte com os pulmões cheios de líquido, afogado em si mesmo. Um
paradoxo terminal.
A primeira vez a gente nunca
esquece
A primeira vez que ouvi falar da
associação Corona Virus/Covid-19 foi como quase todo leigo em virologia ou
estranho ao serviço secreto: pelos meios de comunicação. Naquele 06 de janeiro
deste ano, uma matéria da BBC internacional falava sobre “a misteriosa
pneumonia que preocupa a China” e que pelo, então, recente posicionamento das
autoridades chinesas, não se tratava da Síndrome Respiratória Aguda Grave
(SARS, na sigla em inglês).
No dia seguinte, enquanto ouvia a
rádio, dirigia para o trabalho, e pisava fundo
no sinal amarelo pra escapulir do vermelho, feito um diabo que corre da
cruz, porque esse era o espírito do velho cotidiano: desafiar o tempo. Cazuza
escreveu certa vez algo sobre o desafio de transformar o cotidiano em poesia,
como forma de vencer a melancolia. O cotidiano nos deixa cegos, escravos do
tempo.
Não há dúvida de que o “trabalho
dignifica o homem”, mas honrando sua etimologia latina (tripalium), ele
pode significar tortura e maldição. Como bem explicaram Marx e Engels, através
do trabalho o homem pode mudar e moldar a natureza e a si próprio, edificar a
cultura e a sociedade; mas não obstante disso é preciso romper com o idealismo
e a alienação. O trabalho humano nos diferencia dos deais
pela ação intuitiva e repetitiva dos animais, e é por isso que quando
não refletimos sobre nossos atos, apenas reproduzimos o cotidiano, viramos tal
ser coisificado.
A despeito do que dirão alguns
saudosistas, a verdade é que no mundo pré Covid-19 o cotidiano já cegava as
pessoas. Sua consequente estupidez permitiu que, em pleno mundo
globalizado, alguns relativizem e
distanciem algo que acontece logo ali, do outro lado do mundo: “Mais uma
gripizinha!”, “Coisa da China”.
Inegável. No mundo pré-covid-19
havia uma melancolia digna dos anos de chumbo: Guerra Fria entre Washington e
Moscou na Guerra Civil da Síria e na questão Coreana; Amazônia em chamas e
democracia em vertigem no Brasil; ataques a diversidade e bairros afundados
pelo capitalismo voraz na retirada da Salgema em Maceió. Mas foi neste cenário
que a humanidade encontrou o sinal vermelho.
Em 23 de janeiro, a mídia em geral
já chamava a atenção pelos 213 mortos em decorrência da já chamada COVID-19 no
Extremo Oriente. Àquela altura havia 9 casos suspeitos no Brasil. O que setores
conservadores e conspiratórios da sociedade chamaram de “alarde da imprensa”,
no dia 30 de janeiro foi classificado como Emergência Internacional pela
Organização das Nações Unidas (ONU).
Todavia, de certa forma, a pandemia
logo foi incorporada ao “jeitinho brasileiro”. Matéria da Folha de São Paulo de
08 de fevereiro destaca que “Mulher é presa em Unidade de Saúde do Rio de
Janeiro por mentir que estava com coronavírus para furar fila”.
Em 20 de março, o congresso aprovou
na primeira votação por videoconferência da história do legislativo federal, o
decreto de Estado de calamidade pública. Naquele mesmo dia, o Governo de
Alagoas decretara, pela primeira vez, situação de emergência em todo o Estado
em decorrência da pandemia.
Isolamento
Social
E
falando em paradoxos, redundante
destacar o quão frustrante e necessário
é o isolamento social, especialmente pra nós, seres gregários. De um
lado, o deixar de viver: a angústia pela privação da liberdade, a impressão de
perdermos preciosos dias (meses) de
nossas vidas, em plena era do tempo líquido. Do outro, a luta pelo sobreviver:
medidas de restrição, são sim, estratégia fundamental na ordem do dia; é o que
nos prova os exemplos de países que hoje se encontram menos expostos a
pandemia, como Nova Zelândia e Alemanha (dentre outros fatores).
Não
distante disso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reforça desde o anuncio da
emergência internacional que o isolamento social é a melhor alternativa contra
o coronavírus. Definindo o objeto, isolamento social (ou distanciamento social)
consiste em uma prática de saúde pública que tenta tardar a contaminação na
população, já que diminui o contato entre pessoas doentes e saudáveis.
Entretanto,
desde 11 de março deste ano, data em que a ONU reconheceu a pandemia de
COVID-19, especialistas ressalvam que as medidas de isolamento social não
impedem a transmissão em si. Seu objetivo é na verdade, tardar essa
transmissão, mitigando a explosão dos casos e o colapso dos sistemas de saúde.
É
verdade que não é a primeira vez, nem mesmo neste século, que uma emergência de
saúde pública em escala mundial foi decretada: Pandemia de H1N1 em abril de
2009; disseminação internacional de poliovírus, em maio de 2014; surto de Ebola na África Ocidental, em agosto
de 2014; vírus zika e aumento de casos de microcefalia e outras malformações
congênitas, em fevereiro de 2016; surto de ebola no Congo, em maio de 2018; já
receberam tal status. Por outro lado, nenhuma dessas emergências possui
um caráter tão mortal quanto o Covid-19.
Considerando
os dados internacionais de 05 de julho de 2020, publicados pela ONU/OMS no
“Painel da Doença de Coronavirus (COVID-19)”, o numero de casos chega a
11.108.580 e 587.085 mortes. Conforme a própria ONU, como o estudo se baseia em
dados oficiais disponibilizados por cada país, é muito forte a hipótese de que
a realidade seja bem mais grave. Como se sabe, alguns países têm baixa taxa de
testagem e/ou governos de forte viés ideológico reacionário, com negação da
ciência.
No
Brasil, por exemplo, há um abismo no índice de testagem apresentado por estudos
mais rígidos 2,28 pessoas a cada grupo de 100 mil habitantes; e pesquisas mais
otimistas 7,66 pessoas a cada grupo de 100 mil habitantes (dados de 28/06/20).
O
que se sabe, certamente, é que o país testa pouco. Dos testes RT-PCR feitos no
país, 36,68% têm resultado positivo para COVID-19. Segundo especialistas, esse
índice muito alto ocorre porque se testa principalmente os casos mais graves, o
que por se só denuncia o caos da saúde pública. A cargo de exemplo, Austrália e
Nova Zelândia, também potências do Hemisfério Sul mas com gestão exemplar na
crise, têm 1% de testes positivos, conforme o painel da Universidade Johns
Hopkins (EUA).
Pleonástico
dizer que no Brasil o isolamento social nunca foi seguido à risca.
Principalmente por conta de uma visão econômica imediatista e seu discurso de
negacionismo científico que assombra esferas do Estado e setores poderosos da
sociedade.
Do norte ao sul,
a quarentena minou na velha metáfora “pra inglês ver”. Pode-se dizer que se nas
primeiras semanas houve um cenário menos visível de desrespeito ao estado de
emergência, posteriormente, esse desrespeito foi logo escancarado. O trânsito
das cidades atesta um isolamento social fictício, na prática, distante do
próprio sentido da expressão. E esse pleonasmo é fundamental para entender como
o Brasil foi parar no Olho do Furacão desta crise.
“A história se repete pela primeira vez como tragédia. A segunda, como
farsa.”
Já falei que no
banco a sombra do antigo sítio da Santa Amélia, a socialização era regra e com
ela afloravam histórias e contos. Meu avô, saudoso Domingos Vanderlei, gostava
de depois da peleja, ao fim da tarde, sentar no velho banco e contar suas
histórias para quem quisesse ouvir. Eram narrativas de infância, que viveu ou
ganhou dos mais velhos.
E por muitas
vezes, contou as histórias de dirigíveis ianques que invadiram os céus das Alagoas;
de uma tal faca abençoada que seu pai recebera de –Padim Padre Ciço-; ou ainda
do tempo em que as pessoas morriam aos montes nas portas das casas, a espera do
socorro médico ou crentes em um remédio dito milagroso.
Nesse caso, ele
narrava algo que foi dramaticamente detalhado aqui neste mesmo jornal e onde o
leitor teve a oportunidade de testemunhar como a anti-ciência foi definitiva: a
gripe de 1918 (espanhola), capaz de levar a morte milhares de brasileiros,
inclusive um presidente eleito, e dar as calçadas de Maceió uma conotação de
Necrotérios.
Ainda naquele
confuso 1918, às pressas foi criado aquele que é até hoje o maior cemitério
público da cidade, o São José. E 102 anos depois a historia se repete, a
prefeitura se apressa para definir uma nova área para o crescente número de
vítimas do COVID-19 na capital alagoana.
O Brasil é hoje
o 2º maior epicentro da pandemia no mundo, perdendo apenas para EUA, nosso Big Brother do norte e seu governo, por
vezes, parceiro no negacionismo científico e populismo conservador.
Coincidência? Já falei aqui da melancolia retrô dos anos de chumbo que
assombram nosso tempo, resgata-se na prática ao slogan da ditadura militar
“ninguém segura este país” e, faz-se jus a famosa frase de Karl Marx em 18
brumário de Louis Bonaparte: “A história se repete pela primeira vez como
tragédia, na segunda como farsa”.
É
neste sentido que dissernimos que o Brasil vai ao encontro da tradicional
política Paraguaçu e do “jeitinho brasileiro”. O carro sempre à frente dos
bois, o relaxamento antes do isolamento propriamente dito. No protocolo
internacional, a revisão das medidas de restrição são consequente a famosa
“curva do gráfico de casos”, no Brasil a revisão é concomitante ao recorde no
registro de casos.
Segundo
o consorcio de veículos de imprensa (G1, O Globo, Extra, O Estado de São Paulo,
Folha de São Paulo e UOL), só nas 24h que se seguem das 20h do dia 03/07
(Sexta-feira), até as 20h do dia 04/07
(Sábado), foram 1.111 óbitos no Brasil. Isso equivale a queda de 3 aviões do
Modelo Boing 747 (o 2º maior do mundo) lotados de passageiros. No dia 05 de julho havia registro de 1.539.081 casos
confirmados e 63.174 mortes (Dados painel da ONU/OMS).
Aqui,
a aplicação relativa de tais medidas pode ser sintetizada nas versões customizadas
da quarentena. Coisas como “isolamento vertical”, “isolamento inteligente” e
“isolamento itinerante”, se antecedera a qualquer indício do achatamento da
curva no país. Em números, a pandemia de 2020 já é uma versão muito mais
piorada daquela de 1918, já representa mais que o dobro das ±30 mil mortes provocados pela gripe
espanhola no País.
A corda arrebenta sempre no lado mais fraco
Importante
dizer, essa dicotomia tem certamente seus impactos mais perversos na classes
populares, formadas por aqueles que o sistema econômico vigente veda o direito
a escolha pelo isolamento social. Há ali duas batalhas simultâneas e
antagônicas: uma contra o coronavírus, outra pelo prato de comida.
O primeiro caso
de morte por COVID-19 no Estado do Rio de Janeiro é bastante elucidativo. Uma
negra, secretária doméstica e idosa, que se contaminou após contato com a
patroa, residente do Leblon e que retornou da Itália com o vírus. Assim, a
pandemia do Covid-19 escancara problemas presentes no Brasil desde o século XVI,
dominantes em Alagoas a partir do genocídio do colonizador contra os caetés e
tapuias; já transpostos por navios negreiros junto ao sequestro e escravidão do
povo africano subsaariano: a injustiça social.
E que outra
razão explicaria dramas do cotidiano? Pegamos como outro exemplo o transporte
coletivo, serviço essencial, na garantia da mobilidade da força de trabalho. Em
16 de abril de 2020, o canal de tv de maior audiência de Alagoas mostrou
imagens que já circulavam na internet, de um coletivo lotado em plena
quarentena. As cenas foram o bastante para chocar, princialmente, quem não pega
ônibus, ou tão pouco, parou para observá-los no trânsito cada dia mais
movimentando da cidade e seus invisíveis urbanos.
Durante a
quarentena, a trabalho, embarcamos em algumas linhas do transporte público da
cidade. Especialmente em duas: 711 Cidade Universitária / Ponta Verde,
itinerário que passa por 25 dos 50 bairros de Maceió; ou na 104 Benedito Bentes
/ Trapiche, que atende os bairros maceioenses mais populosos (Benedito Bentes e
Jacintinho), além da região lagunar (um dos principais epicentros de Convid-19
no município).
Com base nessas
experiências, não seria um exagero dizer que todo “busão” tem um pouco de Navio
Negreiro. Do motorista ao último passageiro, encontramos, predominantemente, os
filhos dos caetés e dos tapuias; os descendentes bantus e nigero-congoleses.
Tanto assim, que tal cenário é captado pela consciência de classe. “Navio
Negreiro” é como os trabalhadores rodoviários chamam o coletivo que pela madrugada
passa pelas principais vias da cidade, transportando os trabalhadores do setor
até a garagem.
Esse exemplo
cotidiano reproduz uma adaptação trágica do ditado popular. Agora, poderíamos
dizer assim: Se ficar a fome aperta, se sair o Covid-19 pega. E é por isso, que
para a classe popular na guerra contra a pandemia da Covid-19, ante o
enfrentamento ao Corona vírus em si, há a batalha pra “pescar o peixe” e
alimentar a si e seus entes. O patronato sabe disso, e sabe também do exército
de reserva a seu dispor. O trabalhador se vê numa “sinuca de bico”.
Quando a
necessidade do trabalho fica submetida à ação exploradora do poder econômico e
reduzida à dura sobrevivência do trabalhador,
encontramos o sentido indigno de
trabalho, a miséria do ser reificado e fracasso da humanidade. Mais do que
nunca, o trabalho é tripalium.
Outro caso
cotidiano que reforça essa tese, aconteceu
ainda em abril. Saindo de uma visita em um dos trabalhos, embarquei na
linha 104, ainda no Trapiche da Barra, próximo ao tradicional bar do Saudoso
Amaurir. Estava exausto. Estando o ônibus
ali vazio, sentei-me em uma cadeira junto ao corredor, com ferro
apoiador atrás. É minha poltrona predileta, porque sou alto e barrigudo, e
nesses bancos de ônibus apertados que queimam os joelhos, ao menos o ferro
permite encostar a cabeça e tirar um cochilo. A viagem era longa, Antares, no
outro lado da Cidade.
Nem deu tempo!
Pouco depois, no ponto do HGE (Hospital Geral do Estado), sobe um passageiro e
senta ao meu lado. Se dirigia ao trabalho, que fica na Serraria. Pediu licença
pra ir para a poltrona da janela, sem perder a oportunidade de pisar no meu pé.
Não teve disposição para pedir desculpas, mas, afoito, como se estivesse
prestes a estourar, ainda na Siqueira Campos, ele começa a desabafar. Assim que
ele abriu a boca, pensei: Agora deu!
- Trabalho numa
funilaria, mas não tenho carro. O patrão
anda reclamando que com o Covid (-19) os EPI’s (Equipamentos de Proteção
individual) andam ficando caros. A máscara dura 2 horas, agora a gente tem que
usar por uma semana inteira; o álcool gel, é gel de cabelo misturado a álcool
70%; se ficar doente, não podemos ir ao hospital, patrão tem medo de levarmos esse
tal bicho corona pra dentro da empresa. Se reclamar é rua, “a fila pra entrar é
grande, dobra a esquina”, ele diz.
Tento parar o homem, olho pro lado, respondo
com uma monossílaba, penso em tirar um livro da bolsa. Mas o seu desabafo e
persistência na conversa me cativam. Além do que, interromper um semelhante
“peão” que fala de seu patrão, é um
verdadeiro sacrilégio contra a classe, entre trabalhadores.
E o homem
prossegue. Diz que trabalha com verdadeiras “máquinas”, que já pegou Carango e
Mercedes dos ricos do Aldebaran e do San Nicolas; que prefere estes, porque
recebe melhor gorjeta, mas o patrão não pode ver, ser ver, “quer sociedade”.
Pega também carros de aluguel do aeroporto, e destes é que tem medo: - Sabe-se
lá quem andou nesses carros?
Aproveito o
ensejo, e já no Jacintinho pegunto a ele como é a convivência dentro da empresa
durante o isolamento social?
- Isolamento? Lá
só existe um. Antes havia uma sala de espera para os clientes com TV, sofá,
café, bolacha. Agora tá fechada. Os clientes, quando esperam, ficam com a gente
mesmo. O patrão não desce mais, fica trancado no escritório, no primeiro andar.
Fala com a gente e clientes pelo
telefone, mas diz que é pra gente não ter medo, que é coisa passageira, que nem
adianta correr, porque essa “gripe” todo mundo uma hora vai pegar mesmo.
E pro final da
conversa eu estou encucado, e pegunto a ele por que não tenta algo mais perto,
sair do Trapiche da Barra para a Serraria, com tanta funilaria na parte baixa?
Compensa?
- Não moro no
Trapiche não. Moro no Ouro Preto. Vim do Trapiche porque minha patroa tá
internada. Suspeita de Covid (-19).
Após isso o
homem se levantou. Esboçou apertar minha mão, mas eu ofereci o cotovelo
(saudação alternativa nestes tempos).
Lhe desejei boa sorte. Ele me deu um “Fique com Deus”. Respondi com um
desejo de “saúde para você e sua família, melhoras para sua esposa”. Ele, mais
sem jeito do que eu, deu o esperado amém. Tentei adivinhar em qual funilaria
aquele pobre trabalhava, havia ali perto daquele ponto duas ou três, subtraídas
aquelas que poderiam ser confundidas com mecânicas. Pensei em dá uma passadinha
lá no dia seguinte, saber de sua esposa. Nunca fui.
Depois dali, até
o caminho de casa, um silêncio interno tomou conta de mim. Ora por ter contato
tão próximo com alguém que poderia ter tido contato com outro alguém com
Covid-19. Depois, conclui que isso era besteira minha. Tendo que trabalhar
fora, o contato é inevitável, pegar ônibus, andar na rua, falar com pessoas…
inevitavelmente teria contato.
Após isso, me senti
mal, pequeno, egoísta. Me veio a reflexão sobre a situação daquele pobre diabo.
A mulher no hospital e ele trabalhando naquele cenário, certamente não é caso a
parte, mas um padrão entre sua classe. É Nesta direção, que concluímos: mesmo
com a iminente pandemia e isolamento social, em geral, quem precisa sair de
casa para vender sua força de trabalho, não teve diminuída a pressão e
responsabilidade no emprego. Oposto a isso, repete-se o mantra do sistema: a
corda arrebenta sempre no lado mais frágil. Mas, sobretudo, isso nos revela que
não estamos lá tão distantes da servidão.
E dentro de uma
perspectiva capitalista, não poderia ser diferente. São conhecidas as múltiplas
facetas do sistema de manipulação para a manutenção da exploração do homem pelo
homem. O aparentemente singelo e empreendedor discurso de que “a economia não
pode parar!”, esconde na verdade uma imposição: Cifrões valem mais do que a
vida das pessoas. Mas sem pessoas há economia?
E, assim, os pescadores de ilusão seguem na
luta pela sobrevivência, enfrentando seus desafios: achar coragem pra entrar no
oceano de aflições que se tornou a rua, pegar o coletivo cheio até o trabalho,
se concentrar na labuta em meio a tempestade de notícias, suportar a birra do
patrão.
Trabalho Remoto
E mesmo para o
celetista ou autônomo que tem a alternativa do trabalho remoto, nada é fácil.
Os professores, por exemplo, vivem hoje um enredo digno de uma obra do
dramaturgo Nelson Rodrigues. Para muitos, a sala de casa virou um perfeito
palco da "comédia da vida privada"; a tal inviabilidade do lar,
consagrada no Art. 5º da Constituição Federal de 1988, é despojado em
transmissões caseiras para um público exigente, acostumado às produções Netflix
e a qualidade 4k.
A tragédia tem
seu clímax quando o educador, que se reinventa continuadamente num universo
didático intangível e improvisado, recebe da plataforma digital multinacional a
mensagem de que o limite de 30 minutos de reunião da versão gratuita expirou,
mas ele pode aderir a uma versão intermediaria, com valor mínimo equivalente a
várias dezenas de horas/aula($).
Assim, outra
grande injustiça social é escancarada no Brasil. Enquanto a média salarial do
último clube campeão nacional de futebol, o Flamengo, é de, aproximadamente, R$
466.666,60. Considerando o valor de R$12,00 como média da hora aula em Maceió,
um professor precisa de 9 dias (manhãs) de aula para ganhar aquilo que um
jogador de futebol, do último clube campeão brasileiro, ganha em 1 minuto de
jogo (R$ 648,15).
Isso quer dizer
que um professor precisaria de aproximadamente 39 anos, nas condições atuais,
para ganhar o salário de um jogador de futebol, com uma diferença: Jogador de
futebol ganha por direito de imagem, professor, mesmo com a invasão a
privacidade, não.
E o que dizer de
nossos jovens? Uma geração que para se atender a curta licença maternidade,
corre um significativo risco de ser parida no local de trabalho da progenitora.
Como se não fosse o bastante, é desmamada cedo, porque lá se passaram os 4
meses da licença de sua mãe. O que vai de encontro à recomendação da ONU/OMS, a
qual recomenda que os bebês sejam alimentados exclusivamente pelo leite materno
até os 6 meses.
E logo a
precocidade escolta essa geração, ano a ano. Na falta de tempo e atenção dos
pais, por vezes, aprende-se a depositar sua aflição em um celular smartphone, e
ali encontra o abrigo ideal para despertar sua juvenil ansiedade.
Com a pandemia,
e o inevitável isolamento social, nossos jovens se tornaram membros de um
alistamento obrigatório, soldados de uma produção escolar fordista, e sua regra
de ouro: tarefa dada é tarefa cumprida. Nesse contexto artificial, o intangível
substitui o tangível, o psicólogo é trocado pela rede social e, como exemplo,
uma adolescente ali desabafa: 15 atividades por semana, 60 tarefas por mês, 120
em um bimestre. Menos do que o assustador número de mortes por Covid-19 em
Alagoas, mas, o bastante para comprometer nossa saúde mental.
É importante
destacar aqui, o cenário que o nostalgico geógrafo brasileiro Milton Santos
chamou de circuito inferior. Segundo levantamento do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE – 2017), a internet alcança 79,9% dos domicílios
brasileiros; havendo uma considerável diferença regional, desfavorável ao
Nordeste.
Se associarmos
esse dado a outro da mesma pesquisa, a presença do analfabetismo, a
discrepância é ainda mais alarmante, há um verdadeiro abismo entre o RJ com
2,5% (melhor colocado); e AL com 18,2% (pior colocado). Segundo matéria da BBC
Brasil (de 12 de novembro de 2018), 3 a cada 10 brasileiros podem ser
considerados analfabetos funcionais.
Pleonástico
dizer aqui dos riscos que esses dados representam para Alagoas e o Brasil, não
só sobre o aspecto da educação, como também da própria saúde pública: sem o
básico que é ler, escrever e interpretar por uma gama tão significativa da
população, até onde vai a eficácia das políticas públicas de
prevenção/mitigação da pandemia COVID-19?
Impactos da Pandemia: da perda momentânea a permanente
Sabe-se que dos
muitos estudos que vem tentando investigar os efeitos psicológicos do
isolamento social sobre as pessoas (e até outros animais), são salientados os
impactos negativos como a excessiva ansiedade, estresse pós-tramático,
irritabilidade, entre outros.
Mas, ainda com
tudo isso, o pior dos traumas da pandemia é certamente a morte. Sabemos que o
luto é uma questão muito relativa. Para algumas pessoas o luto é breve, dias;
mas não é raro o caso de pessoas que levam o luto por uma prolongada angústia
de anos e/ou até a morte.
Um caso que
sintetiza isso é aquele que ocorreu em 02 de julho deste ano, e foi publicado
no G1 notícias. Em Manaus, o neto resgata o cadáver de sua avó, falecida há 2
anos, do cemitério. Abraçado ao corpo, ele dança pela rua, a distância de 1Km
do cemitério. Ao avistar a cena fúnebre, populares vão até o local, e com
dificuldade imobilizam o rapaz de 32 anos, amarrando-o em um poste.
A cena ganha
conotação ainda mais dramática, quando, transtornado e diante do corpo da avó
no chão, ele dizia que queria doar os seus órgãos para fazer na avó um
transplante e trazê-la de volta a vida, pois sentia muita saudade.
Por hipótese,
acredita-se que o crescimento geométrico no número de óbitos gerado pela
pandemia, somado a quebra do rito de despedida dos entes, proporcionará ainda
mais pessoas com experiências traumáticas.
Soma-se a isso,
o gigante contingente que terá que passar pela transição para o mundo
pós-pandemia. Filósofos e cientistas comumente afirmam que nada será como antes
ou ainda, que o “normal” do mundo pré pandemia acabou, morreu. Assim como outras pandemias
históricas que mudaram o curso da humanidade, essa terá um legado, em diversos
ramos.
Retomando Cazuza
e suas imortais frases, “o tempo não para”. Tudo muda, às vezes pra pior. O Sábio Domingos morreu; a
mangueira foi cortada e o banco em formato de lua crescente, evanesceu. O que
era público, agora é grilagem; o primo ingênuo virou capitalista, uma versão
piorada do Paulo Honório; a Santa Amélia, agora é a nova São Bernardo,
Bebedouro afunda em profunda angústia. E ainda assim, não foi tempo perdido, de
tudo isso algum aprendizado se pode tirar.
E é por isso que
a pandemia também ensina, mesmo que da pior maneira, ao custo da reclusão e
mortes. Na urbanização, se discute a iminência necessidade da Revolução Sanitária;
na Saúde Pública, políticas que mitiguem os efeitos de uma pandemia dessa
proporção; na educação, o uso mais intenso de tecnologias da informação veio
pra ficar. Diante da expectativa da descoberta da vacina contra o
coronavirus/covid-19 e medicações de combate ao problema, a ciência (por alguns
renegada) sai fortalecida, e se apresenta como o único Porto Seguro para sair
da crise.
É inegável que a
pandemia covid-19 trouxe impactos em todos os setores da comunidade global e da
sociedade. Entretanto, é importante compreender, como discorrido aqui, que a
pandemia não criou diferenças regionais e as discrepâncias sociais, mas,
intensificou-as. A cidade desde muito é segregada, um arquipélago de ilhas por
vezes incomunicáveis, e onde os problemas, sejam eles de qualquer natureza,
afetam principalmente as classes mais populares.
Ainda em 1935, o
poeta baiano Jorge de Amado lançou o livro Jubiabá, que retratava o cotidiano
das classes populares soteropolitanas. Dentre os vários relatos, o caso dos
corajosos pescadores, que ao se aventurar na imensidão do oceano, nem sempre
conseguem achar o caminho de volta. E é neste drama, entre a perda momentânea e
a perda permanente, que entra em cena suas bravas companheiras, munidas de
lanternas para guiar a embarcação de seu companheiros até o cais do porto, a
“lanterna dos afogados”, brilhantemente musicada pelos Paralamas do Sucesso.
Em meio a
pandemia da COVID-19 e o isolamento social, qual é o cais do porto da
humanidade? Quem é a nossa lanterna dos afogados?
O blog pode não concordar no todo ou em parte, com a matéria publicada