Um dia de cada vez
Elen Oliveira
Quando a vida normal foi
suspensa, no início de março de 2020, eu tinha uma homenagem a receber no dia
26, uma pré-estreia a assistir no dia 17 e uma reunião de trabalho marcada para
o dia 18. Para um pouco mais adiante, eu agendara uma viagem para acompanhar
minha filha a um show em São Paulo. Havia ainda férias programadas e um
encontro com amigos para comer um hambúrguer vegano e atualizar a conversa,
fora a rotina de trabalho, caminhadas diárias respirando a maresia Cruz das
Almas/Ponta Verde/Cruz das Almas e inúmeros abraços, que eu adoro abraçar.
Chegando em casa, na noite
da sexta-feira 13 de março, depois de um
dia em que já havíamos programado uma escala de trabalho metade
presencial/metade teletrabalho, vi que a vida já havia mudado no curso de
algumas horas.
Estava assistindo ao
telejornal noturno, quando uma notificação do Whatsapp me chamou de volta ao
trabalho. Toda a agenda estava automaticamente suspensa e naquela noite, as
reuniões nos grupos se estenderam até a madrugada, intensificando-se no sábado
e no domingo seguintes. Era preciso reorganizar a sistemática de trabalho.
Não havia precedentes para aquela situação, então passamos a viver um dia por vez e aprendendo, com cada demanda que se interpunha, a lidar com ela e a programar a resposta às próximas. A primeira semana, assim como o primeiro decreto normativo do meu trabalho e do cotidiano dos demais viventes de Maceió, foram destinados à aprendizagem e à adaptação. Suspenderam-se eventos e qualquer programação que ensejasse aglomeração, enquanto recebíamos, entre o medo e o pesar, as notícias da Ásia e da Europa enlutadas.
Na segunda semana foi
oficializado o teletrabalho para as atividades adaptáveis ao modelo e
estabeleceram-se normas para aquelas cuja presença física nos locais de
trabalho fosse imprescindível. Regras de segurança e higiene, protocolos de
atendimento e funcionamento de estabelecimentos comerciais, condutas sociais,
tudo foi reformatado.
O chamado isolamento social
redimensionou também a vida privada. As telenovelas deram espaço ao jornalismo
em tempo integral, estabelecendo uma dinâmica diferente do tempo e da vida,
agora restritos ao espaço doméstico.
Nos primeiros dias, considerei
racional correr ao supermercado e à farmácia, como se estivesse me preparando
para um longo inverno, em pleno verão maceioense. Nas prateleiras, a clara
demonstração de desapreço ao bem-comum. Grande parte dos itens recomendados à
prevenção do coronavírus, o agente da pandemia, havia desaparecido. Os que
restaram estavam bem mais caros. Foi necessário o poder público estabelecer
regras de controle e fiscalização de preços para conter abusos e a sanha dos
acumuladores. Com a situação regulada, os estoques foram restabelecidos e os
preços voltaram a patamares aceitáveis.
As teleaulas também afetaram
o espaço doméstico. Além de local de trabalho e espaço de moradia, a casa
também tornou-se sala de aula, dispositivo de telepresença para reuniões e
cultos religiosos. Os encontros pessoais também foram acondicionados às telas
do celular e do computador.
Abraços partidos, saudade
manifesta, incertezas. Pelo que se observa na parte do mundo onde o fechamento
e a reabertura começaram, a vida normal não voltará a ser sem novas regras e
protocolos de contenção e controle.
No novo mundo que agora se
descortina, a proteção envolve distância, máscaras e rigorosos protocolos de
higiene pessoal e convívio social. Os encontros se darão sem apertos de mão,
sem abraços, sem beijinhos.
Durante a pandemia, vi um
ex-governador partir sem solenidade. Guilherme Palmeira, em cuja biografia
cabiam o deputado, o governador, o senador, o prefeito e o ministro de Tribunal
Superior, partiu sob silenciosos aplausos e moções manifestos pelas redes
sociais. Vivêssemos tempos normais, muitos seriam os que cancelariam agendas
para lhe prestar homenagens e presenciais condolências aos familiares
enlutados, especialmente ao prefeito Rui Palmeira, seu filho e gestor nesse
momento distópico que se abateu sobre o mundo e o Brasil em pleno ao eleitoral.
É de incertezas que vivemos.
Até aqui, todos perdemos alguém para o novo coronavírus. Seja amigo, parente
conhecido ou desconhecido, há muitos milhares de pessoas a prantear. Contam-se
mortos, enquanto planejamos a vida e o futuro sem nem sequer intuirmos o que será.
Do ponto de vista do meu
trabalho, a vida em tela tem similaridades com o mundo real, do trabalho
presencial . No entanto, os artifícios da procrastinação são muito mais
intensos, assim como as atividades paralelas. Ao mesmo tempo em que participo
de uma reunião por vídeo ou audioconferência, interajo com outros grupos de
trabalho e a atenção pode ser desviada a um clic para uma das infinitas janelas
dos hyperlinks que tanto informam quanto desinformam e nos instigam. Nesse
aspecto, os limites temporais se diluem em jornadas inacabáveis.
No hiperconectado universo
da teleinformação, estruturas como horários de trabalho são fluidas e
variáveis, assim como as pontas dos dedos, que chegam a arder nos dias mais
dinâmicos em atividades profissionais, vida pessoal e hiperinformação. É
cansativo o mundo em tela. Há dias que ele suplanta o espaço físico, por exíguo
que ele nos pareça. Tenho esperança na resposta da ciência e rezo para que se
abrandem os corações endurecidos. É entre incertezas e esperança que vivemos. Um
dia por vez.