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sábado, 18 de julho de 2020

Luiz Sávio de Almeida: minhas lembranças são um quebra cabeça. Uma advinhação de São João


Minhas lembranças são um quebra cabeça (II): uma advinhação de São João

 Yes, a have mother and father
               
                 Eu sou filho de Manoel de Almeida e Maria José de Almeida, ambos de Capela, beira do Paráiba. Mamãe ainda era prima do meu pai, pois ela era filha de Fausto Vieira de Almeida, irmão da Tia Vidinha, a que casou com o Major Dionísio da Capela, irmão de Caetana Maria de Albuquerque, a minha avó Dondon. Diziam os povos da Capela, que o Major era rico demais; no verão, para que o dinheiro não mofasse, ele abria as burras e deixava tudo tomando banho de sol. Fausto, segundo diziam – e a crônica era gerada pela Dondon –, era meio irresponsável, gostava de um pé de bode, jogava pernada, mulherengo. Não era partido para a irmã do Major. Mas festa de São João é coisa arteira e a Dondon andou fazendo adivinhação e já viúva e quem sabe virgem pois o casamento foi breve, o marido levando uma mordida de cobra, chegando em casa carregado numa rede e logo se arroxeando e foi saindo desta para melhor. 

As perguntas que nos fazem
                      
Um dia, conversando com o Roberto Santos sobre patati e patatá, tomando um café que ele fez questão de pagar sob o argumento de que comeu mais do que eu, eu lhe disse: Olhe, eu acho que a gente vai tentar responder no trabalho científico de adulto,  os tipos de pergunta que se armazenam em nossa formação pessoal. Se as perguntas  – e elas obrigatoriamente não são registradas claramente – que eu me fui fazendo, me levassem para a física, possivelmente eu seria um físico. 
                   
                    Roberto Santos é um grande físico, uma inteligência finíssima. Eu mantenho; havendo engenho e arte para dar respostas, vamos atrás das perguntas que tínhamos guardadas.  Para mim veio o senso do histórico; para ele, veio o senso do físico. E engraçado, sempre achei que falávamos com línguas diferentes, as arquiteturas de pensamento para chegarmos ao real. Ele fala a física, ele se importa sobretudo com a energia e eu com uma  forma de  movimento no tempo feito pela minha avó Dondon, ela mesma uma tensão na ordem dialética. Eita porra, fui longe... Como dizia o Wilson Simonal: Vamos voltar à pilantragem! Mas antes, quero registrar que ele, entre cafés e sanduíches deu-me uma bela aula sobre a natureza e importância dos erros férteis na construção científica.

Voltando à pilantragem

                 
Papai e Mamãe
A Dondon era menina; foi casamento de coisa de quinze anos de idade.  Contam histórias pesadas deste casamento feito a contragosto, mas que era da vontade do Dindinho Neo, meu bisavó, dono dos Minhuns e que morreu esmagado entre dois vagões de cana; quando o trem fazia manobra, ele foi colocar o engate e coitado, torou aqui, lá nele. Sangreiro e sem jeito.  Dizia a minha mãe que eu sou ele todo, no jeito de falar, de sentar, de andar, de puxar conversa pois segundo ela sempre fui prosista. O povo usa uma expressão deliciosa: cagado e  cuspido. Para ser honesto, era assim que a minha mãe dizia: Você é a cara do Dindinho Neo, parece que tou vendo; é ele cagado e cuspido. Virge, até no jeito de sentar em cima da perna!
              
Ele era casado com a Dindinha Mariquinha; ela contada como santa e ele como danado. Diziam os mais antigos, que quando Mariquinhas morreu, os bois choravam no reservo e vieram escravos de todas as partes para chorarem sua morte. Foi muito triste e nem sei onde  ela foi enterrada, quem sabe lá pelos lados da Gameleira?.

           
Pois bem,  voltando a conversa, a viúva estava sem filhos e firulitando na Capela. Não sei em que ano o Dindinho Neo morreu. Vai que São João ajuda a descobrir verdades. A Dondon fez adivinhação para saber quem seria seu marido, que não era tonta e nem queria ficar eternamente viúva. Um dia, ela estava na casa da Tia Vidinha, bateram, foi atender e voltou correndo: “Vidinha. É o homem da adivinhação. É com ele que vou me casar!”. A sorte foi lançada e resultada também; nem precisa dizer, que o homem era o vovô Fausto de Almeida. Todos os três já viajaram. Dondon deve ter sido de velhice; Vidinha  de um câncer não sei por onde e Fausto morreu do mesmo mal. O inferno está de diabo com nome de câncer.  Meio dia, o sol quente, Fausto foi e tomou um copo de caldo de cana picado. Suado, além de muito mais coisa, tibungou no Poço do Pai Pedro e já tiraram roxo. Este era um modo de não falar naquele nome: o câncer. O velho teve foi na garganta e deve ter morrido numa profunda agonia. 

               Dizem os mais velhos, alguns antigos, que estes Albuquerques vieram pelos fins do século XVIII lá dos lados do Bom Jardim e por conta de uma seca braba; gente que veio descendo lá de Pernambuco e quem sabe no rumo do Papacaça bateu dentro de Quebrangulo, um pulo só para Viçosa e Capela e mesmo para Atalaia mais lá embaixo, que tudo era da mesma água do Rio Paraíba do Meio, a piaba que se pegava em cima era prima da que se pegava  mais para baixo. Já os Almeidas estão seguramente pelos finais do século XVII, últimas lidas de guerra com os Palmares, vindos de Antônio Roiz Vieira que mandou buscar sua mulher em São Paulo e ela subiu navegando em uma sumaca e apareceu a Dona Inácia de Almeida Braga.


               Antônio Roiz Vieira pediu confirmação de sesmaria na bagatela de três léguas em quadro, com centro na Barra do Porangaba e deles é que vieram os dois fantásticos Antônio de Almeida Braga; um era conhecido como o velho, o edificador do Flexeiras no dizer saberoto  do primo Wenceslau de Almeida; o outro era o Antônio de Almeida Braga, o chamado caudilho, o do Tamoatá que liderou a Revolta de Imperatriz, passando e muito pelos lugares da também fantástica povoação do Arrasto de Santa Efigênia. O Almeida Braga novo, o neto, o caudilho, o do Tamoatá escreveu um incrível artigo  intitulado Ódio Velho não Cansa! É uma peça extraordinária  para se discutir a mentalidade e as regras que faziam comportamentos e expectativas do senhorial daquele tempo.


               Uma vez quando conversava com um parente dos antigos, ele me disse: “Caboclinho – assim me chamavam – aquilo era um tempo brabo da peste! Ou a gente resolvia ou era resolvido!”. Foi deste tempo que comecei a tomar gosto para entender a ética senhorial, aquela que tem a coragem pública de argumentar que Ódio velho não cansa!, semelhante a  dizer que vingança é um prato que se come frio. Foi por aí que tudo se chamava resolver negócio: ou resolvia ou desse adeus.  Ninguém se achava criminoso, especialmente quando batia na honra da família. E ouvi muito, no pé e na cabeça do ouvido,  sobre a existência de categorias radicais como família e é do seu sangue: “É seu sangue, meu filho!”.
              
           Ainda bem que dá minha geração por diante – quem sabe pelos efeitos das mudanças urbanas – e a começar por mim, todo mundo é frouxo. Não nasceu alguém brabo. A gente só deu para paz e amor, uma antecipação alagoana da geração dos ripongos.  A veia Dondon, mãe de minha mãe, dizia brincando mas com uma ponta de reclamação: “Na família da gente acabaram-se os homens!”.  Ainda bem, que é tudo frouxo, digo eu escrevendo estas mal traçadas linhas.  Tio Lourenço – não o tio Lourencinho –  que, quando mexiam com ele,  era mais brabo do que siri dentro de uma lata, mas um verdadeiro lorde britânico da Capela, Arapiraca e adjacências pelos modos e educação finíssima que tinha, vivia de pagode e dizia: “Mãe, Almeida virou marca de cachaça!” e criou para a geração dos filhos e dos sobrinhos, um lema de família. 


               Lembro de uma cachaça em um carnaval e acho que foi na Pinguim, lá na cabeça da Praça de Arapiraca e Tio Lourenço já estava p’rá lá de tungado, usando uma bermuda mas de chapéu na cabeça e dos bons; foi com ele que aprendi a usar chapéu: “Caboclinho, você não sabe como é bom tirar o chapéu p’ra uma menina. Bote esse aqui e experimente!”. E não é que era bom mesmo! Mas pois bem, apois a conversa foi indo, e tudo quanto era assunto foi passando e eu ficando nos limites de sobrinho que não era besta de passar deles. Aí, conversa vai e conversa vem – a bebida entre nós sempre foi a limpa, mas ali só tava sendo cerveja, treco que ninguém bebe, só urina ou só é para verter água, como se usava dizer  –,   Tio Lourenço sai com uma de suas pérolas e resume os tempos novos: “Savinho, meu filho, fica assim: Almeida quando não pode peida!”. E aí o kikiki e o  kakaka tomaram o tempo do resto da tarde. 
Tío Cícero e Tia Antônia

                Tio Lourenço foi o homem que vi,  nestes tempos todinhos em que estou vivo, que mais entendia de puia. Vá entender de puia assim, na casa da peste. Era fino. E tinha cada história de fazer a gente ouvir por hora e meia. Era o contrário do Tio Lourencinho, homem santo, casado com a Tia Mocinha, gente ligada diretamente ao Padre Cícero Romão Batista, Ainda conheci ele, mas este  é outro assunto. Tanto era a ligação, que a veia Dondon teve um filho chamado Cícero Romão Batista que pela ironia do destino foi ser do Partido Comunista.  Teve também o Tio Floro Bartolomeu que nem conheci.

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