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sexta-feira, 5 de junho de 2020

Cássio Júnio Ferreira da Silva. POVOS INDÍGENAS E O CONTEXTO DE PANDEMIA. [Memória da pandemia nas Alagoas]



POVOS INDÍGENAS E O CONTEXTO DE PANDEMIA

Cássio Júnio Ferreira da Silva
Xucuru-Kariri e mestrando em antropologia

Colonialismo, Colonialidade e Contaminação

Antes de falarmos sobre os povos indígenas no contexto da pandemia (coronavírus), faz-se necessário pontuar que os povos indígenas lidam com o perigo invisível (contaminação por vírus e outros agentes) desde a invasão do Brasil por europeus. Um dos vírus com maior letalidade entre a população indígena foi a varíola, introduzida no território brasileiro pelos colonizadores.
Na década de 1660, ocorreu uma grande epidemia de ‘bexigas’ (nome popular da varíola) na Amazônia colonial, sobre esse contexto os historiadores Rafael Chambouleyron, Benedito Costa Barbosa, Fernanda Aires Bombardi e Claudia Rocha de Sousa ao dialogarem com escritos do período afirmam que “o ouvidor Maurício de Heriarte relatava igualmente a desolação causada pela doença”. Segundo ele, na ilha de São Luís havia inicialmente 18 “aldeias grandes de índios” de diversas nações; com as bexigas, “se consumiram e ficaram três” (2011, p. 989).
A forma como o vírus da varíola infectou a matou a população indígena impressiona pois em uma única localidade dizimou 15 aldeias, se pensarmos na extensão do território brasileiro podemos projetar um terrível cenário de destruição. Mas a contaminação por esse vírus não ocorreu apenas no Brasil colonial, e muitas vezes foi realizada de forma proposital.
No livro Brasil: uma biografia, as historiadoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling ao analisarem o conjunto dos crimes cometidos pela ditadura civil-militar (1964-1985) chegaram à conclusão que “nada se compara aos crimes cometidos pela ditadura contra as populações indígenas” (2015, p. 463). As comprovações desses crimes foram documentadas em um relatório produzido pelo procurador Jader Figueiredo, responsável por coordenar uma comissão de inquérito administrativo responsável por apurar denúncias que incidiam contra o Serviço de Proteção ao Índio – SPI (órgão que antecedeu a Fundação Nacional do Índio – FUNAI).
Jader compilou e classificou os crimes cometidos por invasores de terras indígenas com a cumplicidade do órgão indigenista oficial, de modo que apresenta os seguintes crimes, “assassinatos, prostituição de índias, sevícias, trabalho escravo, apropriação e desvio de recursos do patrimônio indígena” (2015, p. 463), uma das maneiras de se cometer esses assassinatos era através da inoculação do vírus da varíola em povos indígenas em situação de isolamento, mostrando que armas biológicas foram utilizadas contra populações indígenas em períodos recentes da história do Brasil.

O Coronavírus nas aldeias e o descortinar de velhas questões

Desde que os primeiros casos da pandemia de Coronavírus (COVID-19) foram registrados no Brasil, a maior parte das autoridades políticas, através dos parâmetros estabelecidos pelas autoridades medicas e sanitárias, passaram a defender o afastamento social como principal medida preventiva para contingenciar a propagação do vírus. Diversos setores da sociedade civil voltaram seus olhares com preocupação em relação aos povos e comunidades indígenas, de modo a questionar quais medidas poderiam ser tomadas para evitar que a pandemia chegasse a esses territórios.
Como resposta a essa problemática a FUNAI editou a portaria N.º 419 de 17 de março de 2020 que estabelece as medidas de prevenção para se evitar a propagação da pandemia, entre outras questões a portaria proíbe a entrada de não-índios nas Terras Indígenas. Mas não é suficiente estabelecer a proibição legal, se faz necessário garantir os mecanismos de fiscalização para garantir a efetividade dessa medida. É bem verdade que há anos a FUNAI não consegue realizar a proteção das Terras Indígenas devido um agravado estágio de sucateamento do órgão.
No dia 7 de abril de 2020 foi registrado o primeiro caso de Coronavírus entre os Yanomami, tendo um adolescente de 15 anos testado positivo para a COVID-19, sendo a contaminação ocasionada justamente pela inoperância do Estado Brasileiro em realizar a proteção dos territórios indígenas. Segundo o site Survival Brasil, em matéria veiculada em julho de 2019, ao longo dos anos cerca de 10 mil garimpeiros já haviam invadido o território Yanomami, levando doenças e espalhando mercúrio pelos rios.
Mesmo no contexto de pandemia essas invasões não pararam, menos de dois meses após o aparecimento do primeiro caso, o povo Yanomami tem 44 infectados e dois óbitos em decorrência do Coronavírus.
Esse contexto de dificuldade em se efetivar a proteção territorial é recorrente em diversas terras indígenas em todas as regiões do país. Em Alagoas, a pandemia adentrou aos territórios dos povos Kariri-Xokó, Xukuru-Kariri, Karapotó-Plak-ô e Jeripankó, entre esses povos uma das maiores problemáticas é a dificuldade de se garantir a proteção territorial, fator que impossibilita o isolamento voluntario dos grupos no contexto de pandemia.
Na Terra Indígena Xukuru-Kariri localizada em Palmeira dos Índios no agreste alagoano, de onde escrevo esse pequeno texto, existem dois casos confirmados de indígenas contaminados com COVID-19. Esse caso muito provavelmente é subnotificado, pois a SESAI não conta com testes suficientes para realizar uma testagem em massa, procedimento necessário para se ter uma visão detalhada de como a contaminação avança entre os povos.
Outro fator que faz com que os números da SESAI sejam subnotificados é que entram nesses dados oficiais somente indígenas que estão residindo nas terras indígenas, não levando em consideração para as estatísticas os indígenas em contexto urbano, a grande problemática existente nessa orientação do estado brasileiro é que, segundo dados do censo de 2010 do IBGE, aproximadamente um terço da população indígena está em contexto urbano.

Referências

BARROS, Ciro. Operando com 10% do orçamento, Funai abandona postos e coordenações em áreas indígenas. IN: Agência Pública. Disponível em: https://apublica.org/2019/03/operando-com-10-do-orcamento-funai-abandona-postos-e-coordenacoes-em-areas-indigenas/.
CHAMBOULEYRON, Rafael et al. ‘Formidável contágio’: epidemias, trabalho e recrutamento na Amazônia colonial (1660-1750). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.18, n.4, out-dez. 2011, p.987-1004.
FUNAI. Portaria Nº 419/PRES, de 17 de março de 2020. Boletim de Serviço da FUNAI. Brasília, 2020.
PALMEIRA DOS ÍNDIOS. Boletim Epidemiológico de 30 de maio de 2020. Palmeira dos Índios, 2020.
SESAI/MS. Boletim Epidemiológico do polo base Xukuru-Kariri de 03 de junho de 2020. Palmeira dos Índios, 2020.
SESAI/MS. Boletim Epidemiológico de 29 de maio de 2020. Brasília, 2020.
SESAI/MS. Boletim Epidemiológico COVID-19 DSEI AL/SE de 02 de junho de 2020. Maceió, 2020.
SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
SURVIVAL BRASIL. Milhares de garimpeiros invadem o território Yanomami. Disponível em: https://www.survivalbrasil.org/ultimas-noticias/12162.

Os depoimentos indígenas estão sendo coordenados pelo Professor Dr. Amaro Hélio Leite.

Jeamerson dos Santos. DENTRO DO “NOVO COTIDIANO” EU ME LEVANTO! [Memória da pandemia nas Alagoas]



DENTRO DO  “NOVO COTIDIANO” EU ME LEVANTO!
Jeamerson dos Santos


Mestre em Culturas Populares  –PPGCULT-UFS, Especialista em Arte, Educação e Sociedade, Graduado em Ciências  Sociais com ênfase em Antropologia Cultural,  Cenógrafo. 

É com poema  “Ainda assim eu me levanto, de Maya Angelo[2] que inicio meu relato sobre o novo cotidiano, esse isolamento social. O poema manifesto de 1978 representa muito bem meus anseios nessa pandemia, com a mesma força e necessidade do momento que foi escrito na luta por direitos civis, uma luta contra o racismo! Ele tem a força de nos provocar reflexão e reafirma que apesar da pandemia ainda sim vou continuar de pé:

Ainda assim eu me levanto
Você pode me riscar da História
Com mentiras lançadas ao ar.
Pode me jogar contra o chão de terra,
Mas ainda assim, como a poeira, eu vou me levantar.
Minha presença o incomoda?
Por que meu brilho o intimida?
Porque eu caminho como quem possui
Riquezas dignas do grego Midas.
Como a lua e como o sol no céu,
Com a certeza da onda no mar,
Como a esperança emergindo na desgraça,
Assim eu vou me levantar.
Você não queria me ver quebrada?
Cabeça curvada e olhos para o chão?
Ombros caídos como as lágrimas,
Minh’alma enfraquecida pela solidão?
Meu orgulho o ofende?
Tenho certeza que sim
Porque eu rio como quem possui
Ouros escondidos em mim.
Pode me atirar palavras afiadas,
Dilacerar-me com seu olhar,
Você pode me matar em nome do ódio,
Mas ainda assim, como o ar, eu vou me levantar.
Minha sensualidade incomoda?
Será que você se pergunta
Porquê eu danço como se tivesse
Um diamante onde as coxas se juntam?
Da favela, da humilhação imposta pela cor
Eu me levanto
De um passado enraizado na dor
Eu me levanto
Sou um oceano negro, profundo na fé,
Crescendo e expandindo-se como a maré.
Deixando para trás noites de terror e atrocidade
Eu me levanto
Em direção a um novo dia de intensa claridade
Eu me levanto
Trazendo comigo o dom de meus antepassados,
Eu carrego o sonho e a esperança do homem escravizado.
E assim, eu me levanto
Eu me levanto
Eu me levanto.
Falar de um novo cotidiano sobre a pressão de uma pandemia, a qual para os negros e negras torna-se ainda mais letal, apesar das perspectivais mais humanistas possíveis de aproveitar para pensar novas formas de lidar com o Mundo; imaginar novas formas de percebermo-nos mais coletivos mesmos distantes, quem dera que todos pudéssemos compartilhar dos mesmos desejos! Mas a realidade mostra-nos que tal ideia só contempla a elite branca, que vive sua concepção de democracia racial da varanda de seu apartamento, da segurança de sua casa com seus familiares e amigos. 

Meu cotidiano na pandemia é manter-me em pé! Para me prevenir da Covid19, para denunciar o racismo e todas as facetas neonazistas, revelando a crise do sistema público de saúde como ação de uma política genocida! A pandemia se transforma em uma grande lupa! Revelando tudo aquilo que denunciávamos: o racismo! Presente na função da atual presidência da Fundação Palmares que busca riscar da Historia Zumbi! É o racismo que cega e silencia diante das mortes de negros pela Covid19 e pelas balas “perdidas”. O racismo continua no “novo normal”. Não foi a Covid19 que impediu  George Floyd de respirar! Não foi a Covid19 que matou João Pedro!

É de uma perspectiva racial, que busco ocupar parte do meu tempo atuando nesse enfrentamento da pandemia, e principalmente da política genocida. É dentro do campo digital, nas redes sociais; contrapondo ao “ideário” que estamos todos no mesmo barco, que venho promovendo ou participando de Lives com a temática afro centrada. É muito  notório que as disputas  de narrativas nas  redes  sociais  parte da compreensão  do  indivíduo que a protagoniza,  por tanto  são assuntos, problemas, conflitos que nos atravessam! Mas devemos também agir na ocupação desse espaço de forma ativa, crítica e solidária, compartilhando as discussões (Lives)para que seja um espaço de verberação onde possamos respirar pela Vida ! Pela Liberdade de Viver! De socializar  saberes, afetos e carinhos para aqueles que além de enfrentar o racismo tem que se proteger da Covid19, ou seja devemos pensar nos nossos irmãos e irmãs negras!   

 Nesses dias após receber o convite para escrever sobre meu cotidiano na pandemia, vi um vídeo de uma mulher branca reclamando dos barulhos de bomba e gritos que vinham da rua. Era uma manifestação antifascista atacada pela polícia. O que a incomodava não eram as agressões, balas e gritos. O que a incomodava era que tudo isso atrapalhava a gravação de sua Live(!), e para simbolizar o silenciamento da realidade ela grava o conflito da janela de seu apartamento e põe filtro com borboletas!
 Só uma elite branca pensaria em borboletas para “acalmar” o enfrentamento do  neonazismo! Seu cotidiano favorece seus pensamentos. Não precisam sair de casa para o trabalho! Não ficam preocupados com os filhos, se estão bem ou se estão vivos! O meu novo cotidiano é interagir nas redes sociais com as mesmas preocupações e provocações de sempre!

 A pandemia só revelou o que sabemos! A condição do negro e o racismo estrutural  mostra que até a  “educação ” é utilizada  como estratégia do racismo. Vejamos  como houve toda tentativa de manter o calendário do ENEM, onde todos sabemos que é o futuro da juventude negra e pobre que é alvo! É de conhecimento do Governo o índice de acesso à internet da população negra e pobre, mas até as ultimas chances o governo tentou manter o calendário das provas.

Pensar como podemos nos preparar mais para esse campo de batalha “virtual ” torna-se imperativo para, principalmente, quem tem as condições de ESTAR nesse campo, produzindo Lives. Discussões são muito importantes para que os artistas negros e não negros e antirracistas possam entender o tamanho da responsabilidade que temos. Devemos ocupar as redes sociais com a mesma força e garra que ocupamos as ruas.

 Ao compartilhar um “simples” post com #suspendeENEM ou quando produzimos uma Live falando de nossas lutas, memórias , história, mas particularmente, falar de nosso cotidiano e do cotidiano de nossos irmãos, que estão nessa Guerra sem  “arma digital”,  enfrentando e até dormindo em filas para receber o auxílio emergencial, onde inicialmente a política genocida desejava o valor de 200 reais e diante da mobilização dentro do campo digital Parlamentares propuseram o valor de 600 reais, parlamentares  em sua maioria de Esquerda!  Agora imaginem  se fosse todos  negros!  Iriam entender  que o salário mínimo não dar para uma família VIVER em condições  dignas!  Imagine SOBREVIVER diante de uma pandemia!

As redes sociais levam para o campo digital a condição do sistema racista da desigualdade. Nem todos os negros têm acesso  a esse novo “cotidiano digital”. Entender isso me faz pensar em várias problemáticas que ainda temos, como, por exemplo, representações políticas suficientes que entendam a necessidade de SALVAR VIDAS PRETAS! É dentro desse campo virtual, do novo cotidiano que eu me levanto! Contra política genocida eu me  levanto ! Contra  o racismo eu me levanto ! Contra o fascismo eu me levanto! Pelas vidas negras eu me levanto!   



[2] Militante  do movimento por direitos civis norte-americano, Escritora, Poetisa e Artista.

A. Sérgio Barroso.No tempo da morte. [Memória da pandemia nas Alagoas]


No tempo da morte
A. Sérgio Barroso

Médico, doutor em Desenvolvimento Econômico pela Universidade de Campinas
(Unicamp), membro do Comitê Central do PCdoB e diretor da Fundação Maurício
Grabois (FMG)

“O Cólera vai chegar em Alagoas somente em novembro de 1855. (...) não se teria
a construção do novo cemitério na velocidade necessária e [o vice-presidente da
Província] determina, então, a construção de um provisório. (...) É como se a morte
estivesse rondando para assumir o tempo e comandar a vida” (Alagoas, nos
tempos do cólera, L. Sávio de Almeida, 1996) [1]

As imensas interrogações que assomam hoje se remetem ao quadro dramático
aberto com a nova pandemia, num misto de perplexidade não só quanto as
dimensões do fenômeno em si; mais ainda quanto ao que nos reserva o day
after dessa inaudita combinação das múltiplas causas envoltas na tormenta.
Como se não as tivesse havido antes, ainda que prospecções futurísticas sobre
grandes tragédias sejam rotineiramente abertas ao fazer humano.

É do historiador britânico Eric Hobsbawm [2] a ideia de que toda a previsão
sobre o mundo real se assenta, em grande medida, em algum tipo de
inferência sobre o futuro a partir daquilo que aconteceu no passado, ou seja, a
partir da história concreta. E – definitivamente - não para os axiomas
silogísticos de Aristóteles, para quem um escravo era um escravo por ter alma
de escravo, e por isso mesmo não possuiria a parte dela elaborativa da ciência
e da filosofia – ou do sentido e da finalidade das coisas. [3]

História e epidemias

Conclui Jared Diamond, em seu deveras elogiado “Armas, germes e aço. Os
destinos das sociedades humanas” [4] que são similares as dificuldades
encontradas por climatologistas, biólogos da evolução, astrônomos geólogos e
paleontólogos, daquelas dos historiadores, para captarem as “relações de
causa e efeito” verificadas (ou não) nas sociedades humanas. Em suas vastas
pesquisas, as razões histórico-naturais mais profundas da condição humana e
das determinações sócio-antropológicas.

A exemplo, no capítulo 3 apresentam-se os sucessivos confrontos entre os
povos de diferentes continentes, identificando os elos estruturais que
levaram as conquistas europeias de sociedades nativas americanas. Entre os
fatores causais (e casuais) encontraram-se germes de origem espanhola,
cavalos, cultura, organização política e tecnologia, notadamente navios e
armas. Diamond vasculha uma sequência onde as epidemias são
indissociáveis de transformações históricas originárias, digamos. Ou
determinações categoriais.

Noutra angular, animais domesticados [5] transmitiram germes aos humanos,
simultaneamente produzindo vacinas naturais contra o contágio neles. E
disseminaram, perseguindo novos territórios, carregando seus germes, como
aconteceu com Cortés, em 1519, em que nada sabia então levar a varíola para
os astecas. De modo semelhante o mesmo ocorre com Pizarro, em 1531,
levando-a aos Incas e, então, contribuindo para dizimá-los. (Diamond, idem,
pp.75-78).

Geografia, botânica, a zoologia, a arqueologia e epidemiologia, levam Diamond
a ver a diversidade humana como resultado de processo histórico,
argumentando que a história seguiu rumos diferentes para os diferentes povos,
especialmente devido às diferenças entre ambientes e não às diferenças
biológicas. Ele conclui que a dominação de determinada população sobre outra
tem fundamentos militares (armas), tecnológicos (aço) ou nas doenças
epidêmicas (germes), que dizimaram sociedades de caçadores e coletores,
assegurando conquistas.

A propagação do sofrimento

Conta o turco  Orhan Pamuk, [6] que “Um Diário do Ano da Peste”, de Daniel
Defoe, seria a mais esclarecedora obra literária já escrita sobre contágio e
comportamento humano. Reproduz Pamuk: em 1664, as autoridades locais em
alguns bairros de Londres camuflaram o número de mortes para reduzir o
tamanho da praga, trocando-as por outras doenças, assim inventadas como
causa da morte. Além, o romance de Defoe desvela haver por trás de imensa
“existe também uma raiva contra o destino”, contra uma divindade testemunha
“e [que] talvez até tolere toda essa morte e sofrimento humano”.

Noutro romance, “I Promessi Sposi” (“Os noivos”, 1827), Alessandro Manzoni -
“talvez”, continua o escritor turco, o romance mais realista escrito sobre um
surto de peste – denuncia que esta se espalhara rapidamente porque as
insuficientes restrições ao alastramento da epidemia e a aplicação frouxa das
medidas não convenceram os cidadãos de Milão, a partir de seu governador. A
população se revoltara contra a comemoração de um aniversário dum príncipe,
apesar das evidências da ameaça da praga. Manzoni declarara apoio ao povo.
No universo das comunidades mulçumanos – relata Pamuk -, só partir da
década de 1850, quando viagens de barco a vapor ficaram mais baratas, os
peregrinos indo às terras santas de Meca e Medina “tornaram-se os mais
prolíficos transportadores e propagadores de doenças infecciosas do mundo”. [7]

“Vá p’ra casa da peste! ” – E a ilusão de Pamuk

Em 1855, casualidade ou não, Alagoas, no Nordeste brasileiro recebera uma
epidemia do Cólera, via por Sergipe, mas saído da Bahia. A Junta de Higiene
Pública da Bahia, já experimentada no combate enviou à Província quais as
providências a serem tomadas, no começo do dezembro do ano aludido. Todo
o estado então contava com 22 médicos, 14 acadêmicos, 3 cirurgiões e 4
farmacêuticos.

Naquele ano, o Presidente da Província Antônio Coelho de Sá e Albuquerque
lamentava à Corte:

“Não tenho ainda médicos para enviar a muitas localidades, não tenho
padres(...), não tenho medicamentos em quantidade que possam
satisfazer... (Apud: Almeida, idem p.29).

O fatídico é que entre 1855 e 1862 a Cólera matou milhares de alagoanos,
numa população de pouco mais de duzentas mil pessoas. E a presença dos
surtos epidêmicos não altera o drama sócio-político perscrutado por Almeida,
bem depois, na década de 1990. [8] Epidemias marcadas pelos registros
culturais definitivos encontrados na sociabilidade regional: a dor da morte, o
sofrimento, o horror.

A tradição nos diz que todas as epidemias e todas as suas dores estão
no prosaico xingamento, no ato trivial das pragas e das maldições nos
pequenos discursos em que se manda a vida para a maldição: ‘Vá p'rá
casa da peste!’ E que identificamos a casa da peste como o lugar do
horror social e este é um endereço alagoanamente conhecido". (Almeida,
idem, p. 79).

Assim, nessa aparentemente interminável jornada de atemporalidade da morte,
o literata turco Orhan Pamuk, cujo descortino, vendo hoje seu país, crê num
mundo melhor a surgir após esta pandemia; e, encerrando seu artigo: portanto,
todos “devemos abraçar e nutrir os sentimentos de humildade e solidariedade
gerados pelo momento atual”.

Pamuk, também um crítico das tragédias desse capitalismo contemporâneo,
abatido, transpira aqui ilusionismo. Na Turquia, no Brasil e em qualquer que
seja outro lugar da periferia subdesenvolvida fervilharão desgraças, fome e
mais desigualdades após a destruição pandêmica por sobre nova crise
sistêmica. Ou basta Pamuk mirar o que ocorre – e ocorrerá - nos EUA!
Mais certeira é a metáfora de Almeida, ao grafar no ‘oferecimento’ e abertura
de seu livro: “(...) somos uma sociedade que sabe onde é a casa da peste, o
grande lugar dos horrores cívicos” (p. 29). Ou bem porque “A doença de um
indivíduo rico nunca poderá ser considerada idêntica como a de um pobre” (p.
85).

Ora, não há como desencarcerar os “horrores cívicos” de sociedades da
história dum tempo de morte. E esquecer que essa história pode se repetir:
uma vez como tragédia, outra como farsa (Marx).

NOTAS
[1] Ver: “Alagoas nos tempos de cólera”, Luiz Sávio de Almeida, Maceió, CBA,
2018, pp, 32-3, 2ª edição. Estudo percuciente e meticuloso de história,
socióloga e antropologia, as 395 notas albergam pesquisas de inúmeras fontes
primárias e regionais, além de bibliografia clássica (Marx, Ladurie, Le Goff,
Heller). O elogioso Prefácio (1ª edição) é de Manuel Correa de Andrade.

[2] Ver: “A história e a previsão do futuro”, E. Hobsbawm, em: “Sobre História”,
São Paulo, Companhia das Bolso, 2014, pp. 62-66.
[3] Ver: “Aristóteles”, São Paulo, Nova Cutural, 199, p. 17-20.
[4] Rio de Janeiro, Record, 2010, 12ª edição; Prêmio Pulitzer.
[5] Sabe-se que atual pandemia do Coronavírus 19 teve origem na cidade de
Wuhan, na China cujo governo, até agora, não refuta a possibilidade da
transmissão da virose através de animais selvagens (morcegos etc.).
Comunicado do Ministério da Agricultura da China, em maio de 2020: “No que
diz respeito aos cães, tanto o progresso da civilização humana como a
preocupação pública, além do amor pela proteção dos animais, eles passaram
a ser tratados de forma especial para se tornarem animais companheiros. Além
disso, internacionalmente não são considerados animais para consumo, e não
serão regulamentados como animais para consumo na China. Aqui:
https://extra.globo.com/noticias/mundo/governo-chines-proibe-consumo-de-
caes-gatos-em-todo-pais-24362374.html
[6] Artigo publicado no “The New York Times”; aqui:
https://www.nytimes.com/2020/04/23/opinion/sunday/coronavirus-orhan-
pamuk.html?auth=login-google1tap&login=google1tap (“O que os grandes
romances pandêmicos nos ensinam”). Pamuk foi prêmio Nobel de Literatura
(2006), após “O castelo branco”, “Meu nome é vermelho”, “O Livro negro” etc.,
esses traduzidos no Brasil pela Companhia das Letras.
[7] Pamuk lembra ainda o registro do quando da propagação da praga em
Atenas, Tucídides começou por notar que o surto tinha começado muito longe,
na Etiópia e no Egito.
[8] Ver aqui o registro no jornal Folha de S. Paulo (“Exército ajudará a conter a
cólera em Alagoas”):
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/4/03/cotidiano/51.html#:~:text=Uma%20
pessoa%20morreu%20contaminada%20com,casos%20da%20doen%C3%A7a
%20mo%20Estado.

Lúcio Verçoza. Uma carta para ela. Memória da pandemia nas Alagoas

Uma carta para ela


Lúcio Verçoza


Professor Dr. em Sociologia

De quantas quarentenas é feito o mundo? De quantos mundos se faz uma quarentena? Ontem havia uma senhora na minha rua, hoje não sei se ela está dentro de casa ou se ela se foi. De quantas dúvidas se faz uma vida? De quantos medos se faz um homem? Hoje olho para a minha filha, ela me olha com medo de sair na rua. Os olhos tão limpos e redondos, o corpo tão frágil, delicado e uma alma maior que o fio infinito do horizonte.
Olho para ela, e ela se reflete em mim. Quem me dera ter a chave do tempo. O tempo caminha pela rua e a rua adentra nossa casa. A rua da nossa porta, vazia, adentra a nossa casa. Chegam notícias como um vento ruim. Quem me dera dançar com ela Ray Charles, no meio da rua, com um céu azul sobre nossas cabeças. Se as nuvens viessem no meio da rua, mesmo assim nós sorriríamos. Admiraríamos as nuvens, o chão de paralelepípedos, o meio fio, a grama. E se a chuva viesse, dançaríamos na chuva como se estivéssemos tomando um banho de mar sem medo das ondas. Enquanto não podemos ir ao mar, enquanto a pandemia achata o tempo e as nossas paredes, ela pula no colchão do quarto como se fosse a rua, e me pede para repetir o disco do Ray Charles. Eu sorrio, sei que em 15 minutos terei que retornar para o computador para finalizar o meu trabalho remoto.
Minhas costas doem, minha privacidade é invadida pelo microfone do computador e pela lente da câmera que projeta meu rosto na tela. Ela não entende por que me afasto dela e passo grande parte do dia de frente para a tela, ela se revolta com razão, e pede o lado B do disco do Ray Charles. Eu entro na segunda aula e falo com um olho na tela e outro na sala de casa, escuto com um ouvido os alunos e com o outro o som da minha casa. Surgem birras, inquietações, eu tiro uma dúvida do aluno com a testa franzida, o aluno não compreende por que minha testa está franzida. Percebo que o aluno percebeu e tento ser simpático e bem humorado. Minha filha pede atenção. Eu olho para tela, com um clique, desligo temporariamente o microfone e peço grosseiramente para ela aguardar só mais um pouco. A aula demora. Ela me espera.
Quero me deitar no sofá. Ela quer brincar de bola. Quero brincar deitado. Ela quer brincar em pé. Ela precisa de mim. Eu preciso dela. Falamos sobre o que faremos quando o coronavírus for embora. Ela sonha com coisas que fazíamos e não sabíamos que eram sonhos. Eu sonho junto com ela e planejo uma ida à praia com um fim de tarde na lagoa. Ela lembra como é pisar no fundo da lagoa, a lama como se fossem pelos e a água quente do fim da tarde. Esquecemos dos mosquitos e sorrimos um para outro. Olho para tela do meu celular, mensagens se acumulam.
          Quando ela dorme, escrevo um texto, e penso na quantidade de textos não escritos. Se eu  soubesse tocar piano faria uma música. Mas na madrugada teria que tocar o piano baixinho, para embalar o sono dela sem ela perceber que eu estava ali embalando o seu sono. E quando ela sonhasse com a praia e com a lagoa, escutaria o som do piano entre um passo e outro, entre um mergulho e outro. E ela faria parte do som do piano, e saberia que eu faço parte dela. Ainda que com um olho nela e outro na tela. Eu sou parte dela e ela é parte de mim

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