Pandemia e
memória
Bruno de Lima Fontan
Médico da Família e Comunidade,
membro do Fórum Alagoano em Defesa do SUS, faz parte da direção regional do
SINPREV em Matriz do Camaragibe e integra a Coordenação Anarquista Brasileira.
Minha avó nasceu quatro anos depois de a Gripe Espanhola acabar com
milhões de vida pelo mundo afora. Minha
avó e todos da sua geração já faleceram na minha família. Sabemos da Gripe
Espanhola por livros e jornais antigos, mas ela não está enraizada na memória
de nosso povo. De repente, em pleno século XXI, nos deparamos com uma nova pandemia.
Outras pandemias ocorreram em nosso tempo de vida, mas não do mesmo jeito. Não
chegaram a ter a mesmo alcance. No caso da AIDS, que foi e continua sendo um
flagelo pra humanidade, não implicaram isolamento social, fechamentos de
inúmeros serviços em todo o mundo e mudança tão brusca na rotina das pessoas em
todos os continentes (em apenas um semestre). A AIDS colaborou pra atrapalhar a
revolução sexual, mas não provocou mudanças drásticas de rotina de maneira tão
rápida e em tantos cantos.
Sendo algo novo para a nossa geração, era de se esperar que não estivéssemos
preparados pra lidar com a COVID-19. O problema é que em muitas localidades não
só estávamos pouco armados pra combater o vírus, como resolveram jogar as
poucas armas que tínhamos fora. Apesar de existirem exemplos ruins em várias
localidades do mundo, no Brasil, onde a desigualdade social é gritante, a
situação está entre as piores. Um exemplo disso (existem inúmeros outros
fatores) são os constantes ataques ao Sistema Único de Saúde cometido por
diversos governos, a serviço de grandes empresários. O ataque mais recente foi
feito em 2016, quando a Emenda Constitucional 95 foi aprovada em meio a
turbulentos dias no pós-golpe jurídico-parlamentar, decretando 20 anos de
congelamento das verbas para as áreas sociais, entre elas a saúde. Sem que
soubéssemos, estavam pavimentando umas das estradas para a COVID-19 se alastrar
da maneira como estamos vendo. Nesses últimos quatro anos, o SUS perdeu R$ 20
bilhões, uma grande parte dos recursos que se tenta (sem efetividade ainda)
mobilizar para o combate da pandemia.
Trabalho na atenção primária em Matriz de Camaragibe (Litoral Norte de
Alagoas) como médico de uma Unidade de Saúde da Família. Posso dizer sem
dúvidas que a quantidade de casos que atendi e a quantidade de perdas que eu vi
não estão computadas nos números oficiais e nem poderiam, em sua totalidade,
ser traduzida por eles. Você não lida só com o vírus, mas com os traumas que
ele deixa. Colegas de trabalho que estão tentando parar de ver notícias para
continuar seguindo a vida; pessoas que, mesmo curadas da doença, não param de
procurar atendimento por crises ansiosas pela dor por parentes que se foram.
É muito difícil também lidar com um mundo em que vários colegas médicos
preferem fazer sua conduta em efeito manada, guiados mais por correntes de
redes sociais do que pela ciência. Que diria Galileu ao ver em voga a ideia da
Terra Plana? O conceito de terraplanismo poderá deixar de ser uma ironia para
virar algo fundamentado academicamente. Quem sabe? Acredito que esse conceito
não abarcaria apenas os que discordam da esfericidade de nosso planeta, mas,
por exemplo, aqueles médicos que passam medicamentos cujo uso é rejeitado por
diversas organizações científicas.
Como exigir que a população aja de maneira coletiva e solidária se ela
foi bombardeada por décadas com valores que enaltecem o individualismo? Uma
pessoa adepta das ideias da meritocracia, do empreendedorismo, da teologia da
prosperidade, nascida e criada no neoliberalismo vai colocar uma máscara por
causa do outro?
E nós, como lidamos com tudo isso?
Há muito a se aprender e outras lições que já foram ensinadas. Pouco antes da pandemia,
o mundo via grandes movimentos populares na França, Equador, Chile, entre
outros países, conseguirem arrancar de seus governos o que eles não davam.
Impedir que medidas contra os mais oprimidos fossem implementadas, apesar dos
comentaristas econômicos tentarem fazer a gente acreditar que devemos pagar por
uma crise que não criamos. A pandemia não será para sempre. E quando for
possível, são movimentos coletivos e solidários como esses que poderão nos
trazer respostas e não os que, com suas ideias individualistas, ajudaram a
cavar covas.
Do meu isolamento privilegiado (quando não estou trabalhando) penso em quais
memórias as crianças guardarão desse período. E anseio para que o que fique na
nossa memória coletiva seja pra mudar o mundo pra melhor. Afinal, a humanidade é
essencialmente social. Da mesma forma que os valores do individualismo nos
isolam da coletividade e destroem vidas, os valores coletivos, a solidariedade,
o apoio mútuo e o desejo de mudança social profunda precisam ser fortalecidos
para que possamos nos reconhecer no outro. Para que possamos nos permitir ser
humanos.