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sexta-feira, 5 de junho de 2020

Jeamerson dos Santos. DENTRO DO “NOVO COTIDIANO” EU ME LEVANTO! [Memória da pandemia nas Alagoas]



DENTRO DO  “NOVO COTIDIANO” EU ME LEVANTO!
Jeamerson dos Santos


Mestre em Culturas Populares  –PPGCULT-UFS, Especialista em Arte, Educação e Sociedade, Graduado em Ciências  Sociais com ênfase em Antropologia Cultural,  Cenógrafo. 

É com poema  “Ainda assim eu me levanto, de Maya Angelo[2] que inicio meu relato sobre o novo cotidiano, esse isolamento social. O poema manifesto de 1978 representa muito bem meus anseios nessa pandemia, com a mesma força e necessidade do momento que foi escrito na luta por direitos civis, uma luta contra o racismo! Ele tem a força de nos provocar reflexão e reafirma que apesar da pandemia ainda sim vou continuar de pé:

Ainda assim eu me levanto
Você pode me riscar da História
Com mentiras lançadas ao ar.
Pode me jogar contra o chão de terra,
Mas ainda assim, como a poeira, eu vou me levantar.
Minha presença o incomoda?
Por que meu brilho o intimida?
Porque eu caminho como quem possui
Riquezas dignas do grego Midas.
Como a lua e como o sol no céu,
Com a certeza da onda no mar,
Como a esperança emergindo na desgraça,
Assim eu vou me levantar.
Você não queria me ver quebrada?
Cabeça curvada e olhos para o chão?
Ombros caídos como as lágrimas,
Minh’alma enfraquecida pela solidão?
Meu orgulho o ofende?
Tenho certeza que sim
Porque eu rio como quem possui
Ouros escondidos em mim.
Pode me atirar palavras afiadas,
Dilacerar-me com seu olhar,
Você pode me matar em nome do ódio,
Mas ainda assim, como o ar, eu vou me levantar.
Minha sensualidade incomoda?
Será que você se pergunta
Porquê eu danço como se tivesse
Um diamante onde as coxas se juntam?
Da favela, da humilhação imposta pela cor
Eu me levanto
De um passado enraizado na dor
Eu me levanto
Sou um oceano negro, profundo na fé,
Crescendo e expandindo-se como a maré.
Deixando para trás noites de terror e atrocidade
Eu me levanto
Em direção a um novo dia de intensa claridade
Eu me levanto
Trazendo comigo o dom de meus antepassados,
Eu carrego o sonho e a esperança do homem escravizado.
E assim, eu me levanto
Eu me levanto
Eu me levanto.
Falar de um novo cotidiano sobre a pressão de uma pandemia, a qual para os negros e negras torna-se ainda mais letal, apesar das perspectivais mais humanistas possíveis de aproveitar para pensar novas formas de lidar com o Mundo; imaginar novas formas de percebermo-nos mais coletivos mesmos distantes, quem dera que todos pudéssemos compartilhar dos mesmos desejos! Mas a realidade mostra-nos que tal ideia só contempla a elite branca, que vive sua concepção de democracia racial da varanda de seu apartamento, da segurança de sua casa com seus familiares e amigos. 

Meu cotidiano na pandemia é manter-me em pé! Para me prevenir da Covid19, para denunciar o racismo e todas as facetas neonazistas, revelando a crise do sistema público de saúde como ação de uma política genocida! A pandemia se transforma em uma grande lupa! Revelando tudo aquilo que denunciávamos: o racismo! Presente na função da atual presidência da Fundação Palmares que busca riscar da Historia Zumbi! É o racismo que cega e silencia diante das mortes de negros pela Covid19 e pelas balas “perdidas”. O racismo continua no “novo normal”. Não foi a Covid19 que impediu  George Floyd de respirar! Não foi a Covid19 que matou João Pedro!

É de uma perspectiva racial, que busco ocupar parte do meu tempo atuando nesse enfrentamento da pandemia, e principalmente da política genocida. É dentro do campo digital, nas redes sociais; contrapondo ao “ideário” que estamos todos no mesmo barco, que venho promovendo ou participando de Lives com a temática afro centrada. É muito  notório que as disputas  de narrativas nas  redes  sociais  parte da compreensão  do  indivíduo que a protagoniza,  por tanto  são assuntos, problemas, conflitos que nos atravessam! Mas devemos também agir na ocupação desse espaço de forma ativa, crítica e solidária, compartilhando as discussões (Lives)para que seja um espaço de verberação onde possamos respirar pela Vida ! Pela Liberdade de Viver! De socializar  saberes, afetos e carinhos para aqueles que além de enfrentar o racismo tem que se proteger da Covid19, ou seja devemos pensar nos nossos irmãos e irmãs negras!   

 Nesses dias após receber o convite para escrever sobre meu cotidiano na pandemia, vi um vídeo de uma mulher branca reclamando dos barulhos de bomba e gritos que vinham da rua. Era uma manifestação antifascista atacada pela polícia. O que a incomodava não eram as agressões, balas e gritos. O que a incomodava era que tudo isso atrapalhava a gravação de sua Live(!), e para simbolizar o silenciamento da realidade ela grava o conflito da janela de seu apartamento e põe filtro com borboletas!
 Só uma elite branca pensaria em borboletas para “acalmar” o enfrentamento do  neonazismo! Seu cotidiano favorece seus pensamentos. Não precisam sair de casa para o trabalho! Não ficam preocupados com os filhos, se estão bem ou se estão vivos! O meu novo cotidiano é interagir nas redes sociais com as mesmas preocupações e provocações de sempre!

 A pandemia só revelou o que sabemos! A condição do negro e o racismo estrutural  mostra que até a  “educação ” é utilizada  como estratégia do racismo. Vejamos  como houve toda tentativa de manter o calendário do ENEM, onde todos sabemos que é o futuro da juventude negra e pobre que é alvo! É de conhecimento do Governo o índice de acesso à internet da população negra e pobre, mas até as ultimas chances o governo tentou manter o calendário das provas.

Pensar como podemos nos preparar mais para esse campo de batalha “virtual ” torna-se imperativo para, principalmente, quem tem as condições de ESTAR nesse campo, produzindo Lives. Discussões são muito importantes para que os artistas negros e não negros e antirracistas possam entender o tamanho da responsabilidade que temos. Devemos ocupar as redes sociais com a mesma força e garra que ocupamos as ruas.

 Ao compartilhar um “simples” post com #suspendeENEM ou quando produzimos uma Live falando de nossas lutas, memórias , história, mas particularmente, falar de nosso cotidiano e do cotidiano de nossos irmãos, que estão nessa Guerra sem  “arma digital”,  enfrentando e até dormindo em filas para receber o auxílio emergencial, onde inicialmente a política genocida desejava o valor de 200 reais e diante da mobilização dentro do campo digital Parlamentares propuseram o valor de 600 reais, parlamentares  em sua maioria de Esquerda!  Agora imaginem  se fosse todos  negros!  Iriam entender  que o salário mínimo não dar para uma família VIVER em condições  dignas!  Imagine SOBREVIVER diante de uma pandemia!

As redes sociais levam para o campo digital a condição do sistema racista da desigualdade. Nem todos os negros têm acesso  a esse novo “cotidiano digital”. Entender isso me faz pensar em várias problemáticas que ainda temos, como, por exemplo, representações políticas suficientes que entendam a necessidade de SALVAR VIDAS PRETAS! É dentro desse campo virtual, do novo cotidiano que eu me levanto! Contra política genocida eu me  levanto ! Contra  o racismo eu me levanto ! Contra o fascismo eu me levanto! Pelas vidas negras eu me levanto!   



[2] Militante  do movimento por direitos civis norte-americano, Escritora, Poetisa e Artista.

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