O vírus berra e nem todos podem ou querem ouvir
Evelina Antunes F. de Oliveira
Professora universitária aposentada (UFAL)
Il virus urla, ma non tutti ascoltano
The virus screams, but not everyone listens
Le virus crie, mais tout le monde n'écoute pas
El virus grita, pero no todos escuchan
Faz mais de vinte anos que uma artrose come minhas
articulações e eu ando muito pouco. Sair de casa é sempre enfrentar obstáculos,
aí o corpo vai se aquietando na tentativa de evitar as barreiras. Então, faz
muito tempo que eu saio muito pouco de casa. E agora vem o tal do novo corona e
me manda não sair de casa. O que mudou? Tudo.
Antes era uma questão individual, uma tentativa do meu
mundinho se adequar ao mundo de todo mundo. Agora, ao contrário, o planeta está
contaminado e eu sou parte dele. Ou eu entendo isso e ajo civilizadamente ou
morro e mato muita gente. E as duas coisas podem acontecer ao mesmo tempo.
O terror vem como um manto fétido cobrindo tudo porque tem
gente contaminando gente 24 horas por dia. O tempo nos escorre pelas mãos.
Aprendi na juventude a pensar a saúde como uma questão
pública e essa compreensão ocupa minha cabeça o tempo todo neste primeiro mês
de isolamento, mais do que em qualquer outro momento da minha vida.
Tem angústia, ansiedade e momentos de muita tensão,
principalmente quanto ao futuro. Até quando estaremos isolados? Como viver numa
cidade onde a metade da população poderá estar morta? O que me é próprio,
particular, se enrosca na trama coletiva da vida cotidiana. Não que antes não
estivesse enroscada, mas agora eu não tenho como não encarar isso o tempo todo.
De um lado, pensar assim me acalma, me ensina a gostar mais
de quem está ao meu lado e me situa com mais clareza no espaço coletivo do qual
eu faço parte. Isto quer dizer, por exemplo, colaborar com quem está com fome;
ter mais cuidado com o lixo porque os catadores e as catadoras e a cidade
merecem mais a minha atenção; cuidar de não gastar muita água porque é um
recurso finito e para todos; limpar tudo onde coloco as mãos para ajudar a não
espalhar o vírus e muitas coisas mais. De outro lado, vem o tormento quando
vejo milhares de pessoas sem qualquer consideração em relação ao próximo, gente
que não sabe o que é o espaço público e
parece que quer continuar sem saber, ou talvez, o que é mais temeroso ainda,
sequer tenha tempo de aprender.
Ainda temos sobre o Brasil, além dos imperativos capitalistas
e neoliberais que insistem em nos transformar em coisas que fazem dinheiro, um
governo de milicianos ligado ao que há de mais retrógrado na política mundial.
Dessa máquina trituradora de gente saem pessoas alquebradas, tristes, com
dificuldade de se entenderem no mundo e que não veem sentido em pensar nos outros.
E assim tudo fica mais difícil.
E o que o novo corona faz com isso tudo? Berra para todo
mundo ouvir que fazemos parte de uma coletividade, que não somos onipotentes (
nem com a conta bancária recheada), que ou pensamos no próximo ou nosso
sofrimento será muito maior. Nas centenas de valas comuns que vemos em muitas
cidades poderá estar o nosso corpo ou o corpo de alguém muito querido.
Como andam dizendo por aí é bem possível que a gente fique
diferente depois da pandemia, uns mais humanos outros mais estúpidos.
Este material foi publicado pelo suplemento Campus do Jornal O Dia.
Esta série tem por objetivo
publicar depoimentos sobre como se pensa e se lida com o Corona em
Alagoas. Está aberta a toda e qualquer
pessoa, de qualquer tendência. É uma documentação organizada, sobretudo, para
um futuro estudioso de como a epidemia foi vista e vivida em Alagoas. O
material será publicado paulatinamente
no suplemento Campus do jornal O Dia. Está sendo organizado por Carlos Lima, Mestre em
História pela Universidade Federal de Alagoas e Luiz Sávio de Almeida. O blog
pode discordar de parte ou do todo da matéria por ele publicada.