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O TORÉ PAROU, OS PÁSSAROS CONTINUAM A CANTAR: OS XOKÓ NA LUTA CONTRA A
PANDEMIA DO COVID-19
Yatan
Lima dos Santos - Indígena Xokó
Graduando
em Geografia Licenciatura, UFAL-Sertão.
Para entendermos um pouco sobre o caos
que estamos vivendo nesse momento epidêmico, é preciso voltar um pouco no tempo;
é preciso considerar pouco mais de 500 anos de luta, história, massacre,
genocídio e resistência indígena. Refletir sobre o passado nos faz compreender
melhor como se deu as contaminações de diversas doenças, desde a invasão do
território brasileiro até hoje. Dessa forma, fica mais fácil falar sobre o COVID-19.
Resistir ao colonizador não foi tarefa fácil, mas éramos muitos, nossos arcos e
flechas chegaram a vencer os invasores em muitas batalhas.
Nesse contexto, nossos ancestrais
lutavam bravamente em defesa de nossas terras, de nosso povo e pela própria
sobrevivência. Resistir foi preciso, vencer o colonizador se tornou impossível,
pois nossos parentes tinham que lutar contra o opressor e contra as doenças
trazidas por eles, essas abriram espaço para os invasores, destruindo povos
inteiros. Poucos conseguiam escapar, os sobreviventes ou eram capturados, ou buscavam
abrigos junto aos grupos aliados.
As histórias de lutas dos povos
indígenas do Brasil contra as doenças que assolavam as etnias, remontam aos
primeiros contatos com os europeus. Com eles, entranhados em seus corpos sujos veio
uma arma mortífera invisível, o vírus. Este, através dos contatos com os
colonizadores, transmitiu a nós povos indígenas diversas doenças infecciosas:
sarampo, gripe, catapora, varíola, pneumonia... dizimando vários povos
originários que aqui habitavam. A colonização do Brasil, se fez possível ou
pelo menos de forma mais acelerada, devido ao contágio de doenças que reduziu
drasticamente a população indígena.
As doenças trazidas pelos europeus, que
assolavam nossos ancestrais séculos atrás, atravessavam continentes, e continuam
atravessando ainda hoje. Os indígenas foram os que mais sofreram com as
diversas pandemias (e ainda sofrem); isso porque a forma de vivência dos povos
indígenas é bem diferente da vida cotidiana dos não indígenas. Essa forma de
vida fica bem clara quando uma doença contagiosa chega às aldeias, como é o caso
do COVID-19. Esta doença, transmitida através do contato, logo ganha proporção
diante de um povo cujo costume é estar sempre junto, pois somos uma família
onde compartilhamos tudo: as rodas de conversas frequentes com os mais velhos
em baixo de uma árvore, ou envolta de uma fogueira, ou no Ouricuri, nosso lugar
sagrado dos momentos de orações e dos nossos cantos, o Toré.
O coronavírus que apareceu lá na China,
hoje se encontra em meio aos indígenas de todas as aldeias do Brasil. Há muitos
indígenas infectados, isentos de recursos médicos, sem acompanhamento adequado
das equipes de saúde, precisando urgentemente de medidas que os ajudem a passar
por esse momento de caos pandêmico. As aldeias mais afetadas se encontram na
Amazônia, lá os recursos médicos são mais escassos, isso porque não podemos
contar com o atual governo que pouco se importa com a saúde indígena. A
Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), deveria ser mais atuante, no
entanto, estamos à mercê do novo coronavírus até que algo seja feito.
A aldeia indígena Ilha de São Pedro,
etnia Xokó, está localizada no município de Porto da Folha, Sergipe. Tem uma
população aproximadamente de 400 habitantes. Os Xokó estão com as portas da
aldeia fechadas para os não índios, uma decisão da comunidade para evitar que o
COVID-19 entre na aldeia. Não é inesperado que os Xokó estejam com medo dessa
doença, pois as notícias que a mídia traz a cada dia é alarmante. Então, a fim
de conscientizar a população indígena, o Polo Base de Saúde da Aldeia organizou
uma equipe e montou uma barreira sanitária; essa equipe de saúde foi formada
somente por integrantes da aldeia, com uma enfermeira, dois agentes indígenas
de saúde (AIS), dois agentes indígenas de saneamento (AISAN), dois técnicos de
enfermagem, um técnico em saúde bucal, e pessoas que não fazem parte da equipe
de saúde, mas estavam prontas para ajudar.
Essa equipe foi formada com o seguinte
propósito: monitoramento, orientações de prevenção, busca ativa de sinais e
sintomas para o COVID -19. A enfermeira de saúde local, da própria aldeia, com
sua equipe, passava em todas as casas dando instruções e orientações de como
evitar o contágio do novo coronavírus. Essas medidas preventivas ajudavam no
entendimento e a encarar a realidade de forma mais segura; no entanto, mesmo
com uma equipe bem preparada na conscientização dessa nova doença, era
impossível olhar nos olhos das pessoas e não sentir o medo em seus olhares,
elas estão assombradas, como se não houvesse palavras que as confortassem. O
medo ficava estampado na cara dos indígenas, e piorava quando chegavam notícias
que parentes de outras aldeias, haviam perdido sua vida para o COVID-19.
A ciência mostrava o índice de
mortalidade, tanto para índios como para brancos, indicando que os mais velhos
eram os mais vulneráveis ao vírus. Então, olhar para nossos anciãos e saber que
a qualquer momento poderíamos perdê-los, era angustiante. O COVID-19 nos
reprimiu de muitas coisas: como o futebol – por ser um esporte bastante
praticado por quase toda juventude da aldeia –, as rodas de conversas embaixo
das árvores durante o dia ou a noite sob o brilho da lua. Por se tratar de uma
doença transmissível através do contato, ela nos afastou também do nosso ponto
de encontro mais importante da aldeia, nosso Ouricuri, lugar sagrado onde
cantamos e dançamos o Toré.
Numa determinada sexta-feira, um índio
Xokó se assusta e deixa a comunidade inquieta ao receber a notícia de que um
colega de trabalho não indígena foi diagnosticado com o novo coronavírus; para
a tranquilidade do povo Xokó, ele testou negativo para COVID -19. Outro dia,
não muito distante desse acontecido, uma índia que reside numa cidade próxima à
aldeia, e que no momento se encontrava na comunidade, teve notícia que seu
cunhado testou positivo para o novo coronavírus. Ela havia tido contato com ele
há poucos dias, isso deixou a comunidade tensa, mas a tranquilidade veio logo,
após ela testar negativo. Os casos não pararam por aí. Um homem não índio,
casado com uma índia, morador da comunidade, havia tido contato com um colega
de trabalho que testou positivo para o novo coronavírus, ele estava doente e
todos os sintomas nos levavam a crer ser o COVID-19. Ele foi isolado em sua
própria casa, com os cuidados da equipe de saúde local, foi examinado e testado
negativo.
Esses fatos e relatos marcaram nossa
aldeia. Foi como se nos preparassem para o que estava por vir. Os Xokó estavam
muito apreensíveis, tensos com a nova situação. O medo dos anciãos, das crianças e de todos da
comunidade era percebido através do olhar. E como foi previsto por quase todos
da aldeia, o novo coronavírus chegou à comunidade no dia 12/06/2020, com um
parente que testou positivo para o coronavírus. A preocupação do povo e o medo
aumentaram ainda mais, mas a equipe de saúde fez todo o monitoramento da pessoa
infectada, dando orientações aos familiares, esposa e filhos, a fim de evitar o
contágio nos mesmos. O paciente ficou isolado em sua própria casa com sua
família, e não apresentou sintomas graves que viesse a interná-lo.
Após o primeiro caso confirmado, em
menos de quinze dias já havia sete casos confirmados; a equipe de saúde tentou
conter o contágio, mas parece ser inevitável, pois até esse momento a SESAI não
havia mandado uma equipe de saúde especializada para combater o COVID-19. Só
depois dos sete casos, a SESAI enviou no dia 22/06 uma equipe composta por três
profissionais, uma enfermeira e duas técnicas de enfermagem para dar suporte a
nossa comunidade; a partir daí, os cuidados foram redobrados. No dia 02/07 de
2020, a Universidade Federal de Sergipe (UFS) veio à comunidade realizar testes
sorológicos que identificam os anticorpos do novo coronavírus. Dos 194 testes
realizados em indígenas Xokó, 47 apresentaram resultados positivos para
anticorpos do novo coronavírus. Antes desses testes realizados pela UFS, havia
sete casos apenas confirmados pela secretaria municipal de Porto da Folha/SE. O
teste sorológico não detecta o novo coronavírus, apenas os anticorpos
produzidos pelas pessoas ao ter contato com o vírus, diz a UFS.
Dos resultados obtidos pela UFS, foram
141 negativo, 34 apresentaram IgG + e estão possivelmente curados, 10 estavam
com IgM + e poderia estar na fase inicial da infecção, 7 foram indeterminados,
e 3 apresentaram IgM +, que pode estar em fase de recuperação. Com esses
resultados, o povo Xokó entraram em desespero e todos passaram a temer o novo
coronavírus. Alguns tentam esconder o medo que sentem, outros preferem não
acreditar. Estamos lidando com uma ameaça invisível, enfrentar o vírus que
assombra toda a população não é nada fácil, e há quem diga que essa doença não
existe, que é uma farsa; porém, essas mesmas pessoas que dizem não acreditar no
coronavírus, são as que mais fazem uso de máscaras e álcool em gel.
Podemos sentir o medo nos mais velhos e
nas crianças. Esse medo ficou mais evidente quando a equipe de saúde passava
nas casas dos indígenas dando o resultado dos testes, e mesmo aquelas que não apresentavam
sintoma algum, ainda assim sentiam medo. Uma criança com aproximadamente 11
anos de idade, ao receber o resultado que estava com anticorpos do novo
coronavírus, supostamente curado, correu para o seu quarto chorando com medo do
COVID-19. Só depois dos resultados divulgados pela UFS, a SESAI envia outra
equipe de saúde, dessa vez junto com enfermeiras e técnicas de enfermagem e um
médico. Até este momento, foram 28 casos confirmados e todos curados. Segundo a
enfermeira Jéssica (Xokó), o monitoramento foi realizado pela equipe da SESAI
durante 14 dias. A nossa comunidade continua lutando até que esse vírus esteja
totalmente controlado em todo o território nacional.