Urbanismo: Paisagem e cotidiano: Maceio: Periferia:
Sexta-feira, 30 de dezembro de 2011
_____________________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
[URBANISMO: periferia: arquitetura: Maceió (Al)]
Vanine Borges Amaral
Umas
poucas palavras
Luiz Sávio
de Almeida
Vanine
é jovem pesquisadora em formação. Ela aceitou um desafio que fiz: discutir uma
aparente dualidade na arquitetura, no que diz respeito à carência e à
abundância. Foi ao Feitosa, conversou com o povo, sentiu que se elaborava uma
estética e uma prática associada à carência e explorou o assunto nesta matéria.
É uma aproximação do saber acadêmico à
realidade da pobreza de um país que Octávio Ianni considerava inacabado. Não deixa de
ser um ajuste de contas do saber com o poder. Para a publicação deste texto, ela
contou com observações críticas do Professor Dr. Leonardo Salazar Bittencourt.
Um
dos ponto altos do texto é a incorporação da fala do povo, o que é um sinal de
modernização da pesquisa. É necessário reforçar que Espaço trabalha uma linha que soma os cacoetes
acadêmicos e a divulgação. O assunto é sobejamente importante e lida com a
possibilidade de se discutir a existência de uma arquitetura de carência e uma
arquitetura de abundância ou, em linguagem popular, construir e se virar.
Vanine
Borges Amaral, graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de
Alagoas. FAU/UFAL(2007). Durante a graduação participou do Programa de Educação
Tutorial de Arquitetura e Urbanismo,
PETARQ e do Grupo de Pesquisa em Iluminação. GRILU. Atualmente é mestranda
do Programa de Pós-Graduação Dinâmicas do Espaço Habitado - DEHA/UFAL e
participa do Grupo de Estudos Representações do Lugar, RELU, atuando na linha
de Percepção e Conceituação do Espaço Habitado. Escreveu este artigo para a
disciplina intitulada Formação do Espaço Alagoano, ministrada pelo Professor
Luiz Sávio de Almeida e sob sua orientação.
Iluminação Natural e Componentes
Arquitetônicos: nas Janelas da Pobreza
O presente artigo discute a utilização
dos recursos arquitetônicos para o aproveitamento de luz natural pela população
de baixa renda. Longe de chegar a uma conclusão, almeja traçar apontamentos sobre
a questão, a partir do exame de uma área da cidade de Maceió. Tomou-se como
área de estudo uma pequena extensão do bairro do Feitosa, em que se verificou o
uso da janela nas autoconstruções, a partir de visitas, registros fotográficos
e entrevistas com os residentes, levantando- se a hipótese de que este universo
iria repetir-se nas diversas áreas urbanas do mesmo nível de renda.
A maneira pela qual a luz penetra nos
ambientes, a orientação do edifício, a tipologia das aberturas, localização e
dimensão, a existência ou não de elementos de proteção e de transição para o
ambiente interno, interferem na interação entre o espaço e o homem, e no modo
pelo qual o primeiro é sentido, apreendido e percebido pelo segundo. Esses elementos
também determinam as relações entre o meio interior e exterior à construção e
entre o meio natural e o construído.
O uso de janelas tem sido bastante empregado
nas edificações por atender, além das exigências de iluminação, às necessidades
de ventilação e de visão do exterior. Sua tipologia foi se modificando ao longo
da história de acordo com as necessidades humanas, bem como das técnicas
construtivas disponíveis em cada época. O tamanho e a disposição das janelas variam
de acordo com as condições locais. Por exemplo, enquanto em climas frios as
janelas são projetadas a fim de admitir uma maior quantidade de radiação solar,
garantindo ganho térmico no interior da edificação, nos climas áridos as
janelas servem para eliminar calor, acolhendo uma menor quantidade de luz.
O que todas essas possibilidades significam
para a classe pobre? No Feitosa, assim como nos demais bairros de periferia de
Maceió, a população de baixa renda adquire ou se apropria e ocupa um pequeno
lote, sem infra-estrutura, e inicia um extenso processo de autoconstrução de casa,
geralmente no tempo livre entre as jornadas de trabalho. Devido à carência de
recursos, modelos construtivos, participantes da experiência comum, são
repetidos. Deste modo, por exemplo, as casas geminadas provenientes da herança
colonial portuguesa são as formas mais comuns nas áreas periféricas da cidade.
O modelo conhecido como casa de meia-morada
ou casa de porta e janela organiza a residência unifamiliar em uma sala de
estar ladeada por corredor que dá acesso aos quartos de dormir . também
chamados de alcovas, na literatura especializada, por não possuírem janelas . e
leva à cozinha e ao banheiro, na parte posterior da casa. Um pequeno quintal aos
fundos completa a ocupação do lote.
Diante
desse padrão residencial se apresentam muitas questões acerca do conforto
ambiental, já analisadas por diversos pesquisadores como Reis Filho e Philips
Derek. O fato de as casas serem geminadas impede a disposição de janelas
laterais, exigindo instalação de grandes janelas verticais na fachada, a fim de
iluminar ao máximo a extensão longitudinal da edificação. A escuridão nas
alcovas é minimizada com o uso de domos e paredes descoladas do teto, artifícios que além de
proverem alguma iluminação, proporcionam a circulação do ar entre os ambientes.
A ausência de forro sob a coberta em estrutura de madeira e telha do tipo canal
também influencia no movimento de ar interno.
Ao
observarmos os modos de construir no bairro do Feitosa, percebemos a extensa
utilização da casa de meia-morada, independentemente da orientação do terreno
ou das condições ambientais de uma maneira geral. A
aparente similitude
entre as residências é desfeita a partir de uma maneira mais atenta de olhar o
lugar, que expõe as adaptações realizadas pelos moradores, adequando o modelo construtivo
conhecido às realidades individuais, onde se somam necessidade e estética.
Durante as entrevistas, não houve relato de uso das janelas para observar o
exterior. Tal fato é compreensível, já que esta parcela da população da cidade
ainda tem o hábito de conversar nas portas de casa, ficar nos quintais, ir às
casas dos vizinhos, enquanto as crianças brincam soltas na rua.
O ventorzinho na casa de baixo |
Na
casa de Cristina, havia a possibilidade de abrir uma janela lateral, pois,
situada no topo de uma encosta, a casa é geminada em apenas uma das laterais.
Isso permitiria a ilumina ção de outros ambientes da casa. No entanto, neste
caso, foi dado prioridade ao caráter plástico-espacial, a fim de concretizar a
idéia que se tem de casa:
Porque essa janela assim, a gente
pensou pela questão da frente da casa, né? Como geralmente é usado nas casas,
geralmente tem a janela em vista e a porta, pra identificar que é uma casa. A
gente queria que a janela fosse no corredor, mas ele achou melhor que a janela
ficasse na frente da casa. (grifo nosso)
Nesta casa, só há uma janela horizontal,
em ferro e vidro, na sala de estar. A porta de acesso, feita com os mesmos
materiais da janela, funciona também para iluminar o interior da residência. Os
dois quartos possuem as paredes descoladas do teto e não apresentam janelas,
mas este fato não chega a ser um incômodo aos moradores. Ao final do corredor,
tem-se a cozinha, também sem janelas. Para permitir iluminação ou ventilação em
seu interior, é preciso abrir a porta dos fundos. A segunda abertura
encontra-se no banheiro, preenchida por cobogós, tipo de elemento vazado
bastante utilizado nas aberturas das casas visitadas. Além de possuir baixo
custo, o cobogó funciona como protetor solar, amenizando a radiação direta do
sol no interior do ambiente e permitindo a ventilação natural.
O emprego de um modelo de edificação
pela baixa renda, como é o caso da meia-morada, denota a existência de uma
teoria subjacente a este processo de repetição. Além de as estratégias
utilizadas proporcionarem uma satisfação mínima aos usuários, seja do ponto de
vista do conforto ambiental, seja do plástico-espacial da residência, é
fundamental destacar a inteligência existente no processo de autoconstrução.
Mesmo diante da reprodução de um modelo
que associado à escassa renda diminui as possibilidades construtivas, ao
observar um pouco mais de perto tais moradias percebe-se a variedade de
soluções encontradas para responder às situações cotidianas no que vamos chamar
de arquitetura da carência, fundada na ausência de meios e de recursos em
geral. Deste modo, a população ajusta a arquitetura ao seu próprio modo de
vida, construindo a sua própria ordem de conhecimento e de construção, havendo,
sem dúvida, uma engenharia e uma arquitetura absolutamente diferenciadas da
versão acadêmica e fundadas na necessidade angustiante de sobreviver. A carência
e a sobrevivência fundam um modo de perceber a vida e, nele, aparecem formas
específicas de estar na construção do espaço.
Na casa de D. Carmela, que está em fase
de construção há algum tempo, o menor comprimento do lote levou a locar um dos
quartos na frente da casa. Deste modo, a janela que seria da sala de estar,
passou a ser do quarto. Todas as aberturas ainda estão fechadas com tábuas ou
panos, mas D. Carmela já define os horários que acredita serem os ideais para
abrir as janelas:
Quando é no quarto eu sempre num abro
ela, só vez em quando, agora quando taí numa sala, a sala assim, tem que abrir,
né, um pouco, né?, assim, pra num ficar...mas quando é pro quarto,né?, eu
sempre deixo fechado. Só abro assim um momento que eu vou fazer limpeza.
Atualmente, têm-se definido os níveis de
iluminação adequados para os espaços construídos conforme a atividade desempenhada
no recinto. De acordo com a atividade desenvolvida, são exigidas diferentes
iluminâncias, que aumentam em função dos requisitos da visão. No entanto, estas
normas baseiam-se apenas em condições de iluminação artificial, desconsiderando
as variações inerentes à iluminação natural, bem como à subjetividade do ato de
percepção por parte dos usuários.
Mais do que normas estabelecidas, é o
cotidiano que orienta a quantidade de
iluminação necessária no interior da residência. Sendo a moradia um contínuo
processo de construção, a população vale-se das experiências adquiridas no
dia-a-dia para intervir no espaço. A influência do cotidiano é percebida na
casa de D. Branca. Para ela, que é aposentada e tem o hábito de cochilar
durante um período da tarde, o ideal é que não houvesse janela em seu quarto,
contrariando qualquer normalização ou padrão construtivo ensinado nos cursos de
arquitetura. Já acima do fogão, em sua sala-cozinha, há urgente precisão de uma
abertura, a fim de permitir, com a entrada de mais luz, a perfeita visualização
do conteúdo das panelas.
Abrir uma janela na parede onde se
encontra o fogão de D. Branca é possível devido à existência de uma passagem externa
entre esta e a casa vizinha, que permite o acesso às edificações situadas na
encosta, abaixo do nível da rua. Uma janela semelhante a esta foi aberta no
pavimento inferior da casa de D. Branca e Seu Joaquim, que o alugam para outra
família. A janela serve para iluminar a cozinha e fica na base da parede
lateral, ao lado do caminho de acesso. No entanto, seu Joaquim discorda da
esposa sobre a instalação do ventorzinho, priorizando a segurança do casal e
sugerindo a instalação de uma telha transparente. A discussão entre o casal
continua, e D. Branca afirma ser muito melhor um .ventorzinho., pois a telha
.enloda. e nenhum dos dois tem condições
de realizar a limpeza periódica.
REFERÊNCIAS
BITTENCOURT, Leonardo Salazar. Uso das Cartas Solares:
Diretrizes para arquitetos. 4ª ed. rev. e ampl. Maceió: EDUFAL,
2004
DEREK, Philips. Lighting Historic Buildings. Oxford:
Architectural Press, 1997.
REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da Arquitetura no Brasil.
10ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2004