Esta matéria foi publicada no número 61 de O Dia,
correspondendo à semana de 27 de abril a 3 de maio de 2014.
Pedro Cabral
Dois dedos de prosa. Eu
conversaria horas sem parar com Sereníssima, a mulher que se revela na harmonia
de um rosto quase em levitação. Sereníssima se faz em mim, mas a Bandinha da
Viçosa carrega-me para ela. Descubro que sou móvel e descubro também, que a
pintura de Pedro Cabral é feita de revelação sobre o mais comum do que existe
no universo: o cotidiano. Mas é também um excelente tempo de permanente
descoberta.
Pedro
Cabral é professor universitário, mestre na área acadêmica, arquiteto de
prancheta cheia de ângulos e contra-ângulos, quase Quebrangulos – embora ele
seja de outro lugar –, de uma versatilidade imensa pois é poeta, contista e
homem da comunicação. Toda esta riqueza seria um denada se ele não fosse
pessoa muito querida.
Todos os nossos momentos são bons, desde nossa faixa incolor
do Karate- Dóiiiiiiiiiiiii à corda de caranguejos que ele soltou em um
ônibus, meia noite, que vinha do Recife para Maceió. Contei estas coisas para
que se saiba: que dentro do pintor mora um anjo e é, para meu orgulho, um anjo
de minha guarda.
Pedrinho esta não é uma homenagem a você e nem à sua
pintura. Nem de longe Campus chegaria lá. É apenas um tributo aos seus olhos e
seu carinho vendo Alagoas, vendo a nossa gente.
Luiz Sávio de Almeida
Nasci às margens da Lagoa Mundaú. Por isso, sou formado em
vida. Depois virei arquiteto. Por isso, sou formado em sonhos. Depois resolvi
ser professor. Por isso, sou estudante. Perambulo pelas cores. Por isso, sei da
escuridão. E vez em quando escrevo ideias. Nem por isso sou poeta. Pedro Cabral
O castelo de areia pronto,
imediatamente desconstruído
Pedro
Cabral
1. A arte:
primeiros olhares, primeiros sentimentos
Se você me provoca, amigo Sávio Almeida, acerca da arte
em minha vida, o pouco que tenho a dizer derramarei aqui. Não sei se foram os
lápis-de-cores ou se foi um quadro na parede o responsável pela primeira
percepção do que hoje eu chamo de arte. Só sei que quando meus pais me
trouxeram de presente uma caixa de lápis e papel de desenho eu me encantei pelo
colorido. O amarelo e a cor laranja, os dois tons de verde, o vermelho, os dois
tons de azul, o marrom, o roxo, o preto e o branco, sim, o branco. Mas pra que
o branco, se o papel já era branco? Seria essa a primeira percepção da arte? E
a sensação do prazer de toda criança em desenhar casinhas, o sol e a lua,
árvores, ruas, crianças e carros. Desenhar aquele mundo do nosso olhar.
Não me recordo se este sentimento antecede ao quadro
exposto na parede da pequena mercearia dos meus tios Eraldo e Emerita que
mostrava a Divina Comédia de Dante. O Inferno, na parte inferior da tela, com
suas cores vermelhas, sorrisos sarcásticos, corpos doloridos, danças
prazerosas, a meu ver. No meio da tela um lugar curioso: o Purgatório, à meia
altura de uma montanha. Um lugar nem lá nem cá. Sem cor definida. Talvez um
verde tímido de esperança. Talvez o lugar mais otimista que se conhece.
Engraçado, parece-me que Nietzsche dizia ser a felicidade aquela paradinha no
meio da montanha e não a chegada ao topo. E, finalmente, no topo, o doce, puro
e delicado azul do Céu, com aquela paz celestial; paz demais. Hoje o que tanto
procuro. Só sei que este quadro me atraía fortemente, tanto pela mensagem
disciplinadora, quanto pelo colorido. Creio que o artista caprichou no Inferno,
pois havia algo animado nas ruas que hoje sonho pintar. Ou seja: ruas
precisamente alegres com música, algazarras e tudo mais. Sim, o vermelho forte
e primário do fogo abrasador, o amarelo das ruas movimentadas, ligadas às
farras. Essas cores do quadro que me levavam à ideia de Inferno, hoje eu as
quero no meu Céu.
E sabia das esculturas religiosas que adornavam retábulos
da Igreja. Mas as entendia mais como algo sacro do que artístico. E sabia das
artes em ferro que meu pai habilmente transformava em algo útil, criando,
torneando e soldando um portão metálico com belas figuras geométricas ou
desenhando um carrinho de rolimãs para eu bagunçar o silêncio da vizinhança. A
foto de Getúlio Vargas na parede e a do casal emparelhado que não sorria, eram
para mim apenas uma lembrança na parede não vinculada à arte.
Nada disso eu entendia como arte. Arte até então era a
pintura, mesmo sendo uma reprodução em série de um quadro naturalista, a
representar a paisagem primaveril colorida de um lugar longínquo que vez em
quando eu me pegava olhando, comprado por meus pais na loja 4-400. O meu
conceito intuitivo de criança para o que eu poderia chamar de arte era algo feito
diferentemente da função utilitária. Mas artista mesmo era o cantor ou o ator
de cinema. Meu mundo sem lições era assim. E a infância e adolescência
conviveram com essa limitada compreensão. Hoje, entendo haver arte também no
poema. Só não chamo o poeta de artista porque me agrada mais a palavra poeta.
Foi preciso uma convivência acadêmica em arquitetura para
ouvir sobre Estética, sobre o Belo, a Harmonia. Sobre a riqueza e a
versatilidade da arte e seu papel transformador da sociedade. Foi preciso
ler História escrita no Chão, de sua autoria, amigo Luiz Sávio
Almeida, para me conscientizar que folclore, feito da veia popular não é mito.
É tão história dita verdadeira quanto à registrada nos livros de História, que,
aliás, nem sempre trazem a veracidade dos fatos. Foi preciso ler Edgar Morin
para entender que arte não pode ser dualizada em erudita e popular. Tudo é
arte. E notar, muito tempo depois, visitando um museu árabe, que artesanato é
tão arte quanto um quadro de Monet.
2. Os primeiros
impulsos artísticos ou botando a mão na massa
A arte não me apareceu como profissão. Não me sentia
capaz, mesmo se procurasse uma escola de arte com um pintor renomado. Até hoje
ainda me sinto assim. Talvez por ser um autodidata e pensar ser necessária uma
formação acadêmica. Será mesmo que é assim? Tantos tiveram formação superior e
nada produziram. Quantos outros foram ou são grandes profissionais providos da
genialidade das grandes obras, sem a necessidade da Academia? Minha história
caía numa geração que exigia ser médico ou engenheiro. Ser arquiteto foi um
desapontamento para os meus pais, que investiram toda a sua pobreza financeira,
vivendo espartanamente, para me dar nome. Ser arquiteto foi um passo para me
aproximar fortemente da arte.
Enveredei profissionalmente pela arquitetura, mas na
condição de professor. Oportunidade dada por um concurso público federal para
se alcançar certa segurança na vida. Vez em quando, elaborava ou elaboro
projetos demandados por clientes gentis que me ajudavam e ajudam, nessas
práticas, a compartilhar melhor meus ensinamentos com meus alunos. E enquanto
exercitava arquitetura, ensaiava desenhos tímidos a bico de nanquim, na
intenção mais de praticar o traço, presentear colegas ou ornar as paredes nuas
da casa de um recém-casado sem dinheiro para comprar obras de arte.
O começo foi mais de observações, de leituras, de visitas
sonhadoras a museus e galerias. E o tempo passou, com a teoria acercando-me
mais do que a prática. Medo maior: a busca desesperada por um estilo e o
desconhecimento de técnicas de pintura a óleo.
Projetar e construir a sua própria casa é um grande
alento. Pode-se executar seu sonho sem ter medo de uma reclamação do cliente
que lhe paga. E feita a casa, sente-se obrigado a ter suas paredes cobertas por
obras de arte coloridas. Foi o que aconteceu, mestre Sávio, depois de muita
labuta. E mais uma vez sem medo de expor em sua casa suas próprias obras.
E assim, eu me vi, nos anos 90, pintando a tela incólume.
Aquele branco virginal. Aquele branco aterrorizador a ser enfrentado sem base
técnica e apenas se alimentando do colorido e composições guardados na memória
de tantas belas obras de arte de tantos fabulosos e consagrados pintores. Em
quem basicamente se inspirar? No impressionismo, no neoimpressionismo,
expressionismo, no fauvismo. Em nenhum artista especificamente. A corrente era
mais importante do que o artista. Os princípios de cada escola. E, sobretudo, o
colorido que anima paredes. Vi nos fauvistas essa força. A princípio, uma tela
era uma escola. Ali, havia um desesperado caminho de extremada limitação a
respeito de um Matisse ou de um Derain.
E os primeiros filhos, digo, telas, foram surgindo. E
sempre o mais novo trabalho era o mais querido. Até ter uma meia dúzia e
deixá-los num baú de amadurecimento. E quando a mente descansada os retomava, o
olhar fazia uma nova valorização do que foi concebido. E havia um ou mais onde
o capricho foi mais forte. E em outros, a criação se perdeu na esquina de uma
rua. Alguns desses trabalhos foram repintados várias vezes. Era uma forma de
autocrítica. Camadas e camadas de cores e traços. A pintura a óleo permite
isso. Ufa! Tenho pena de jogar uma tela fora, mesmo que o trabalho seja
sofrível. Meu amigo arquiteto Alex Barbosa me sugeriu, certa vez, que fizesse
uma exposição com não mais de 30 quadros. E que não tivesse pena de esquecer
algumas telas pintadas. Isso me lembrou de uma conversa de Hemingway com
Gertrude Stein, que li em Paris é uma Festa, quando ela chamou
de inaccrochable um conto dele, ao explicar que o termo
significava uma situação em que o pintor não tem coragem de pendurar ou expor
um quadro seu. Nem um pretenso comprador também o fará, pois não terá coragem
de pendurá-lo.
Mas antes da coragem de dizer que estava pintando ou
quisesse expor, a velha e rigorosa autocrítica me alertava, como a Senhora
Stein fez com o grande escritor: certamente, nada que eu dissesse claramente:
está a contento. Inda mais imaginar: é um Pedro. Oh! Quanta pretensão minha,
amigo meu. E o quanto isso me angustiava – e ainda me angustia - não ter um
estilo - leia-se identidade -, sentimento que logo passava ao me apaziguar com
o fato de que todos os pintores tiveram suas escolas, suas influências e nada
acontecia de primeira. Tudo é um processo. Mas não era a teoria que garantiria
isso? Pura balela. Sem praticar, nada se completa. Hoje, mesmo sem estilo, já
não tenho medo de expor meus trabalhos. Não por domínio da arte, mas porque não
tenho nada mais a perder.
3. Onde pousa o
olhar agora
Enquanto não vejo os quatro cantos da tela pintados não
sossego. Antes, pintava num só fôlego. Telas grandes num só dia. Menos
afobado, já dedico dois ou três dias a uma tela. Claro, e há aquelas que,
passando por elas, timidamente caladas, sinto a necessidade de me envolver de
novo, repintando-as. Ainda tento me inserir numa escola. Pintar 13 telas para
interpretar os poemas de poetas alagoanos musicados por Mácleim, que ilustraram
o CD dele, me possibilitou enveredar por várias escolas. A cada poeta e
respectivo poema, eu atribuía uma cor predominante, uma tendência artística ou
identificação com um artista. Desse modo, fiz um pop art do meu jeito para um
poema de Paulo Renault, e assim por diante. O arranjo da música me apontava o
sentimento das cores.
Essa experiência aliada a um estudo na arquitetura sobre
desconstrutivismo me levou a pensar em adotar seus princípios na pintura. É o
que estudo agora. E como faço isso? Parto do figurativismo e, mediante os
traços adquiridos na escola de arquitetura, juntamente com as cores vibrantes,
eu tento desconstruir o real, na busca por um ponto situado nos limites entre
dois mundos: o figurativismo simbólico e o abstracionismo que tenta simbolizar
o mundo real. Essa desconstrução lembra o mesmo gesto de uma criança que monta
seu castelo de areia e, de repente, intempestivamente, ela o destrói, gerando
um novo desenho. Esse figurativismo tematicamente está baseado em desejos de
gente alegre nas ruas. Tem algo mais descontraído do que passear de bicicleta à
toa vendo a paisagem urbana? Gosto da alegria, apesar de também pintar a
denúncia da injustiça.
E por que uso esse conceito? Por entender que muitas
vezes é preciso transformar essa realidade que caminha sem o nosso sentimento
de que a vida da sociedade vai a contento. Algo construído precisa ser refeito.
Se não posso transformar o mundo com meus gritos, o faço na pintura. Pinto a
realidade e a refaço, ou a desfaço em meus sonhos. Sei que não é o mundo de
todos. É o meu, mas é pensando em tudo e em todos.