Cólera-morbo, coronavírus e governo mórbido
Lúcio Verçoza
[1] Doutor em Sociologia pela
UFSCar, professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
UFAL e autor do livro “Os homens-cangurus dos canaviais alagoanos: um estudo
sobre trabalho e saúde” (Edufal-Fapesp, 2018).
O vibrião era
andejo. Corria a notícia de que o cólera já havia se espalhado pela Europa.
Para impedir a entrada do mal que vagava pelo mundo, os países do outro lado do
Atlântico reforçavam o controle dos portos. Mas o vibrião não tinha rosto, ele
poderia entrar escondido no corpo de qualquer passageiro de navio ou até mesmo
camuflado em um vaso de flores. O livro sobre As flores do mal ainda não existia, só seria publicado dois anos
depois e logo em seguida estaria na lista de censurados. No entanto, ninguém
precisava ler a poesia moderna de Baudelaire para desconfiar das flores ou do
vento. Naquele tempo, tão distante e tão próximo, o medo falava por si. O
miasma do cólera podia estar em qualquer lugar.
Foi
pelo porto do Pará que o cólera entrou. A embarcação, que partiu de Portugal
com 322 passageiros, aportou no Brasil com 36 mortos. Rapidamente o vibrião
errante desceu do navio e se espalhou pela cidade de Belém. As mortes começaram
em questão de poucos dias. De Belém, o vibrião embarcou no vapor Imperatriz e
desceu no cais do porto da Bahia. Na Bahia, a marcha do cólera-morbo foi de
cidade em cidade até cruzar a fronteira de Sergipe. Os jornais noticiavam os
passos fúnebres da doença em direção ao rio São Francisco. Diariamente era
publicado o número de mortes que crescia de povoado em povoado, de légua em
légua. Na outra margem do rio, os viventes das Alagoas o aguardavam. O cólera
era o senhor do tempo, e as pessoas se amortalhavam antes mesmo da sua chegada.
Antecipando-se
ao maligno vibrião do cólera-morbo, o poder público da província agiu
rapidamente. Dentre as primeiras providências tomadas pelas autoridades, estava
a de abrir covas e ampliar os cemitérios. A população observava o “local das
covas sendo abertos, numa espera do que se viveria”[1]. O
primeiro caso confirmado em Alagoas foi o de um operário da indústria vegetal
na cidade de Penedo, situada na margem do São Francisco. Os prefeitos das
cidades vizinhas se apressaram ainda mais na conclusão da ampliação dos
cemitérios. Após a confirmação do primeiro caso, o governo da província tentou
isolar o cólera pelos lados do rio São Francisco. Foi traçada uma linha
imaginária que proibia a circulação de pessoas em determinada altura da região
de Coruripe. Todavia, o cólera não respeitava limites imaginários e,
rapidamente, a epidemia se espalhou pelo restante de Alagoas.
Somente
em Penedo, que tinha uma população de aproximadamente 15.000 pessoas, estima-se
que ocorreram cerca de 1.300 mortes. Os sinos pararam de dobrar, pois eram
muitas mortes para poucos sinos. E mesmo assim, se insistissem em dobrar, o som
quase ininterrupto dos badalos não deixaria a cidade dormir. Os velórios foram
interrompidos, porque o vibrião continuava vivo nos corpos dos mortos. As covas
tinham que ser profundas, de oito a nove palmos, para o cólera ser enterrado em
local distante. O ritual das covas fundas consistia em enterrar o mal de um
modo que ele nunca mais voltasse. Soldados eram requisitados para o transporte
dos corpos em quantidade. A morte, antes vista como algo individual, assumia
uma dimensão coletiva. Fermina Daza ainda não existia. Gabriel García Márquez
ainda não havia nascido. Essa travessia do cólera pelas águas do rio São
Francisco se deu nos fins de 1855.
O
ano seguinte começaria com a morte se espalhando de modo exponencial. A
população escrava e de trabalhadores livres era a mais exposta ao cólera, no
entanto, ao contrário do que imaginavam alguns senhores, o vibrião não era
seletivo. Logo correram as notícias da morte de senhores de engenho, sinhás e
crianças da casa-grande. Seus corpos, sem vida, ficavam tão murchos quanto os
dos escravos que morriam desidratados no chão das senzalas. A marcha do vibrião
não se orientava por cor de pele, posses ou sobrenome.
Na época, Alagoas
contava com 22 médicos, 14 acadêmicos, 3 cirurgiões e 4 farmacêuticos. Eles
também não estavam imunes ao cólera. Combatiam um inimigo desconhecido munidos
de receitas de gotas de cânfora dissolvidas em colheres de sopa com água.
Naquele momento a medicina ainda não conhecia a causa do cólera. Somente anos
depois seria descoberto que o vibrião estava na água.
O
historiador Luiz Sávio de Almeida, em seu magistral estudo sobre Alagoas nos tempos do Cólera[2],
afirma que a lembrança do cólera foi sendo apagada em seus contornos, a
experiência vivida ao longo do tempo foi perdendo nitidez. Porém, em
contrapartida, essa memória foi ficando mais firme na medida em que foi
incorporada à cultura. É que, no fundo, “quanto mais a doença interfere no
viver coletivo mais estará associada na memória, na recordação, e mais
densamente estará na cultura que lhe é pertinente”[3]. É
por isso que em Alagoas um rol de doenças ainda fazem parte do vocabulário
cotidiano, como “peste bubônica”, “bexiga-lixa”, “gota serena”, “febre do rato”
e tantas outras. A expressão “casa da peste” sobrevive como sinônimo de
maldição, de lugar em que ninguém quer morar ou visitar. Trata-se de uma forma
insólita de permanência do passado, de um passado tão horrendo e traumático que
não pode ser completamente apagado.
Após o cólera vieram
ainda outras epidemias. Graciliano Ramos nasceria décadas depois, no ano de
1892. Em 1915 ele perdeu três irmãos e um sobrinho, vitimados por um surto de
peste bubônica. Hoje, é muito provável que alguns de seus descendentes usem
“boba da peste” como interjeição e não saibam o porquê.
Para muitos povos
indígenas o tempo é circular, como são os ciclos da natureza. Como bem nos
lembram as avós e avôs de Julieta Paredes e de Adriana Guzmán: o passado está a
nossa frente e o futuro está atrás de nós[4].
Nessa outra perspectiva de temporalidade, a epidemia do cólera de 1855 se
entrelaça à pandemia do coronavírus de 2020. A história se repete, dessa vez,
ao mesmo tempo como tragédia e como farsa.
Conforme argutamente
apontou Luiz Sávio de Almeida, toda a impressionante força desorganizadora do
cólera, nem de longe, conseguiu arranhar a conformação do mando da época. Os
senhores de escravos e de terras continuaram governando mesmo após a passagem
devastadora do cólera-morbo. No entanto, em 2020, existe um novo elemento: não
é possível combater os horrores da pandemia sem se contrapor a farsa do
neoliberalismo e do estado mínimo. Não é possível lutar contra o avanço do
coronavírus sem enfrentar o governo mórbido de Bolsonaro. Até seus ministros já
perceberam isso e lhe desobedecem. Como dizem os povos Aymara e Quechua, o
passado está a nossa frente. E, ainda que de modo tardio, chegou a hora de
vencermos a tragédia e de nos libertarmos da farsa. Não fazer isso é ser aliado
da morte.
[1]ALMEIDA, Luiz Sávio de. Alagoas nos tempos do Cólera. 3. Ed.
Arapiraca, Eduneal, 2019 (citação da página 34).
[2]ALMEIDA, Luiz Sávio de. Alagoas nos tempos do Cólera. 3. Ed.
Arapiraca, Eduneal, 2019.
[3]ALMEIDA, Luiz Sávio de. Alagoas nos tempos do Cólera. 3. Ed.
Arapiraca, Eduneal, 2019 (citação da página 87).
[4]PAREDES, Julieta C.; GUZMÁN,
Adriana A.. El tejido de la rebeldia. Qué es el feminismo comunitário? Ed.
Comunidad Mujeres Creando Comunidad. Moreno Artes Gráficas, La Paz, 2014.
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