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quarta-feira, 22 de julho de 2020

Érica Lima. Um pouco da minha aldeia: o Menino do Rancho



 
Um pouco da minha aldeia: o Menino do Rancho
Érica Lima
Jeripankó e estudante de Geografia/UFAL, Campus Sertão




Quando a Aldeia Jeripankó se formou, herdou os rituais de sua matriz ( Pankararu), pois quando os indígenas que vieram da Aldeia Pankararu e formaram a Jeripanko, eles começaram a praticar os mesmos rituais  e os rituais  foram importantes para a afirmação étnica do povo perante o Estado.  Foi a partir da sua cultura que tivemos forças para lutar e sermos reconhecidos como povo indígena. Por estar associado às práticas religiosas e místicas, o ritual tem o objetivo de estabelecer uma relação entre os seres humanos e os encantados. O ser encantado é uma entidade que tem o poder de ajudar ou interferir em questões no plano físico.  O povo acredita que um encantado foi uma pessoa que alcançou um alto grau de sabedoria, tornando-se muito forte espiritualmente; então, essa pessoa em algum momento da sua morte se encanta e passa a ser uma energia que faz parte da natureza.
Os  rituais são a essência, a base, o que transforma todos os indígenas na aldeia, em irmãos; eles unem o povo, por que, inclusive, são feitos em coletivo, onde todos trabalham juntos, desde a preparação até a finalização, ou seja: somente são possíveis serem realizados com o trabalho do povo : todos juntos. Dentre os Jeripankó, temos o Menino do Rancho, a Dança do Cansanção, a Flechada do Umbu, a Puxada do Cipó, além das promessas pagas no terreiro. Todos são de extrema importância; cada um tem o seu significado e são essenciais para a nossa vida, pois exercem a função de proteger a Aldeia contra qualquer nocividade, seja doença, pragas, questões econômicas e até políticas. Só basta as pessoas crerem e terem fé.
Cada um dos rituais tem o seu modo de ser executado, a sua especificidade.  Como exemplo, tem a Dança do Cansanção, a Flechada do Umbu e a Puxada do Cipó, que são rituais diferentes, no entanto são celebrados em uma única festa, a Festa do Umbu.  O ritual é realizado anualmente e tem como objetivo pedir proteção aos seres encantados e a graça de ter um ano prospero. O pajé e outros chefes de terreiro, médiuns, conseguem identificar se o ano será bom ou não através do que acontece na festa, o resultado disso é a satisfação dos Jeripankós, pois ficam mais calmos e com mais confiança para se arriscarem, principalmente em relação à agricultura, pois se ocorreu tudo bem na Festa do Umbu, vai ser um ano produtivo para tudo, inclusive para safra dos alimentos que o povo planta. Os demais rituais do povo Jeripankó podem ocorrer durante o ano todo, só basta alguém que deva alguma promessa um Encantado e resolva pagar; geralmente as promessas são pagas aos sábados.
Dentre eles, rituais, daremos, nesta matéria, um destaque para o Menino do Rancho, um ritual especial, que representa um momento de luta e glória. De luta, porque os Encantados vão lutar para conseguir a graça pedida pelos Jeripankós, que nesse caso seria a cura de uma criança doente; e glória, porque eles foram contra seres malignos para conseguir alcançar a cura da criança. Essa crença aumenta a devoção do povo pelos Encantados, isso porque o ritual é especial, ele demonstra que qualquer pedido feito com muita fé pode ser alcançado.
Esse ritual acontece quando uma criança – em específico uma criança do sexo masculino, isso porque é tradição que vem desde nossos antepassados e nada foi mudado no decorrer do tempo – fica muito doente na aldeia, e é uma doença que aparece repentinamente e sem nenhuma explicação, a qual médico algum consegue curar ou explicar, pois sempre que são feitos exames a criança aparece saudável nos resultados,  o  que leva os responsáveis desta criança a buscarem os benzedores/curandeiros da aldeia para rezar nela.
Quando os pais já conhecem bem como funciona esse meio espiritual, levam o menino diretamente para os benzedores, e estes darão a decisão final, se a doença é doença espiritual que dê para curar com reza e remédios do mato ou se é doença de médico. Quando acontece esse último caso, os benzedores aconselham os pais a levarem seus filhos para o posto de saúde, já quando se refere ao primeiro caso, os benzedores rezam na criança, e quando é algo bem grave mesmo, aconselham os pais da criança a “entregarem[i]” o menino aos Encantados.
Por conseguinte, os pais fazem uma promessa, prometem o menino a um Encantado escolhido por eles, para que esse Encantado seja o guardião do seu filho, o protegendo e curando da doença, caso contrário, a criança poderá morrer. Há outra forma também em que ocorre o ritual, nesse caso, acontece quando uma mulher grávida tem complicações no parto, sabendo que o filho que está para nascer é menino, essa mulher pode fazer uma promessa, prometendo o seu filho a algum encantado no qual ela tem devoção; ela promete levar o menino para o rancho caso eles sobrevivam, tanto ele quanto a mãe. Quando alcançam a graça, na qual o menino fica saudável, os pais marcam um dia e pagam a promessa em qualquer final de semana.
Isso tudo acontece porque o menino foi pego pelo “Bicho do Mato”  ou “Caipora” como é popularmente conhecido, este que ao ver algum menino que lhe desperte  algum interesse tenta levar essa criança para seu plano espiritual, para isso, ele leva a alma da criança e ela vai desfalecendo até morrer, com isso o Caipora fica totalmente com a alma da criança.
Desta forma, quando os responsáveis do Menino o entregam para o encantado, ele vai em busca da a alma do menino. O Encantado responsável pela criança, junto com seu batalhão, vai atrás do Bicho do Mato; ao se encontrar com ele, trava-se uma batalha pela alma da criança até algum sair vencedor;  se o Caipora ganha, a criança morre e se o Encantado vence, a criança volta a ficar saudável. Na maioria das vezes, os Encantados ganham. Essa luta acontece no plano espiritual e se materializa na forma do ritual do Menino do Rancho.
A forma como acontece esse ritual é bem complexa, pois é necessário muito cuidado para nada sair errado, pois caso dê algo errado,  o menino poderá adoecer novamente. Sendo assim, os pais do menino convidam outros participantes importantes na festa, que são:  a noiva e as madrinhas que estarão junto com o menino. Os preparativos para o pagamento da promessa iniciam-se com um outro ritual, porém, ele é mais reservado, somente para familiares: esse ritual é o Trabalho de Mesa.. É nesse momento em que o Encantado dono da festa diz os detalhes de como será paga a promessa, concorda com o dia marcado; o que será necessário, é uma forma de assegurar que tudo irá ocorrer bem e de acordo com o que foi proposto.
Logo após, geralmente dois dias depois do Trabalho de Mesa, começa o Menino do Rancho; a festa dura dois dias: começa em um sábado e perdura até  domingo.  Inicia-se no sábado a noite, mas antes de entrarem no terreiro, todos os participantes são obrigados  a tomarem um banho de ervas que serve para purificação do corpo e para se concentrarem melhor; após isso,   o pajé leva os Praiás (são a representação material do Encantado) para o terreiro (local onde acontecem os rituais com os Praiás); lá eles dançam por algumas horas. Geralmente ficam dançando até ultrapassar um pouco a meia noite; depois de um certo tempo, todos vão embora descansar; os Praiás vão para o Poró (local sagrado onde ficam guardados os Praiás) e o restante das pessoas para suas casas, pois no outro dia começam os serviços bem cedo.
No domingo de manhã, os Praiás vão buscar o menino que irá para o rancho na casa dele; lá todos tomam o café e dançam em um terreiro improvisado pelo dono da casa. Após feito o trabalho na casa do menino, todos vão para a casa da noiva, tomam garapa e dançam, em seguida repetem o mesmo processo na casa das madrinhas. Ao terminar tudo, os participantes vão para o terreiro principal, onde ocorrerá o resto do ritual.
Dançam no terreiro até o almoço ficar pronto;  quando pronto, todos vão almoçar e após o término do almoço irão descansar um pouco. Por volta das 15:00 horas, começa o ápice da festa, que são as “peitadas”[ii] no terreiro. Nesse meio tempo, os padrinhos, a noiva, as madrinhas, o menino e os Praias dão voltas no terreiro ao som dos toantes[iii]. Esse processo é repetido nove vezes, ou seja, são três voltas dadas em torno do terreiro a cada toante (música entoadas pelos cantadores), resumindo, são três toantes.  Na última volta quando suspendem o toante, começa a correria.
Os padrinhos correm com o menino enquanto são perseguidos pelos Praiás, estes tentam de toda forma capturar o menino das mãos dos padrinhos, qualquer objeto que o menino esteja carregando é válido (o chapéu ou o cordão de fumo), ao pegarem esses objetos os Praiás vencem. Nesse momento, eles passam por cima de tudo, não veem mais nada em frente que não seja o menino; a vontade e a fé em pegar a criança é tão grande que os Praiás são capazes de fazer coisas absurdas para um simples humano. Essa situação representa o plano espiritual: os Praias são os Encantados e os padrinhos representam o Bicho do Mato,  Caipora que tem em suas mãos a criança. Por fim, quando a criança é pega pelos Praiás,  a festa termina.
Desta forma acontece um dos principais rituais do povo Jeripankó; para alguns, este é o melhor, pois tem mais emoção, na hora das “peitadas” o pessoal que está assistindo fica em êxtase, é como se a emoção sentida pelo Praias atravessassem suas vestes e fluíssem para o corpo de todos que estão assistindo ao redor do terreiro; nesse momento, todos os problemas somem. Tudo que o povo quer é aproveitar cada segundo do ritual.




[i] Deixar sob a proteção direta dos Encantados.
[ii] É o memento da carreira na qual os praias perseguem os padrinhos.
[iii] São as músicas entoadas durante os rituais.


Essa imagem mostra o momento no qual os praias e padrinhos dançando estão no terreiro improvisado na casa do menino, foram buscá-lo para começar o ritual, além disso, foram tomar o café da manhã.


Estes são os folguedos, que são as vestes dos praias guardadas poró, estas vestes são produzidas com as fibras do caroá (uma planta da caatinga que fornece um tipo de fibra bem forte).

 
Estas são as comidas que os Praiás e as pessoas que vão prestigiar as festas comem. As comidas são o pirão, arroz e carne (na maioria das promessas come-se carne de carneiro, mas no ritual do Menino do Rancho tem que ser carne de boi), no prato de barro.



A imagem está mostrando o momento final do ritual, quando um dos praia pegam o menino. E nessa hora o pajé está entregando o menino para o praia que conseguiu pegar a criança
Está imagem mostra o menino que vai para o rancho sendo acompanhado pelo padrinho, que irá correr com ele (pois ele é pequeno e não pode correr sozinho, é perigoso), e também do Praiá que é seu dono.
 





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