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quinta-feira, 7 de maio de 2020

Mariana de Carvalho. No início senti.´Memória da pandemia em Alagoas.


No início senti
Mariana de Carvalho
Vivente das Alagoas

É surreal esse momento que estamos atravessando. Piora quando paro para pensar que isso está ocorrendo no mundo inteiro, que as pessoas em todas as nações estão tendo que se isolar, desconectar das outras para sobreviver. Que o abraço, o beijo, todas as demonstrações íntimas de afeto, tornaram-se perigosas e potencialmente letais. No início senti como se a minha vida tivesse “pausado” por tempo indeterminado, como se assistisse a um filme ou protagonizasse um pesadelo digno dos roteiros de Hollywood.

Estudamos história desde a infância, e eu sempre me perguntava como as pessoas se sentiram naquela ocasião... Como eu me sentiria vivendo aquilo. Hoje falei com meus filhos
que estamos vivendo um evento histórico importante, que será relatado às gerações futuras, que está transformando o mundo como o conhecemos, as relações humanas, a relação do ser humano com o meio ambiente.

Minha rotina mudou às vésperas do meu aniversário de 40 anos. Uma ocasião programada há muito tempo, com carinho, para rever as pessoas que eu amo e que normalmente não encontrava tempo de encaixar no cotidiano louco em que vivia. 

A interação com meus filhos se dava no carro, na ida ou retorno da escola, pois meu tempo se esvaía entre o trabalho, os estudos e o cansaço exponencial que não me deixava levantar da cama nos .raros momentos em que estava em casa. Os livros que eu queria ler se acumulavam ao lado da cama, aguardando um momento que nunca chegava.

Repentinamente tudo parou. Eu não tinha mais que perder tempo no trânsito, não tinha mais que me ausentar para as aulas, e o horário do trabalho reduziu. Agora eu estava em casa. Tinha tempo. Não tinha os amigos. Não tinha abraços e beijos. Não podia sair para ver o mar, a lua, mas tinha muito tempo para pensar.

Aos poucos a rotina foi mudando. Chegaram as videoconferências, as aulas à distância, a necessidade de adquirir novas habilidades, resgatar outras. Aprender a ensinar as crianças, aprender a reaprender. Quem me conhece sabe que não costumo ter medo. Mas passei a senti-lo todas as
vezes que preciso sair de casa para trabalhar ou fazer compras. Não medo de adoecer ou da morte, mas medo de perder alguém que eu amo, medo de ser um transmissor assintomático, medo de não poder voltar pra casa e estar no meu lar. Medo ao ver meus colegas de trabalho expostos nas ruas todos os dias.

O momento mais tenso foi ver alguém muito próximo contaminado pelo vírus. Foi quando tudo se tornou assustadoramente real. Mas nessa roleta russa universal, tive também o mais profundo alívio de tê-lo visto recuperado, o que, é muito doloroso pensar, não aconteceu com tantas famílias que estão enterrando as pessoas que amam.

Aprendi que a vida não para. Nós precisamos nos readaptar aos cenários que ela apresenta. Compreendi finalmente que o tempo é fugaz, e que os momentos, sejam eles alegres ou tristes, passam. Que todos os planos e projetos podem ser alterados da noite para o dia, e que novas prioridades surgirão. Aliás, o maior ensinamento que vou levar dessa Pandemia, é que Saint-Exupéry tinha absoluta razão: “o essencial é invisível aos olhos”. Que o que importa de verdade não se  pode comprar. E que lar não é um lugar.




Maria Augusta Tavares. De medo também se vive. Memória da pandemia em Alagoas. (XXXVI)




De medo também se vive
Maria Augusta Tavares
Professora Doutora e vivente das Alagoas


O desconhecido costuma exercer fascínio e medo. Para o bem e para o mal nem sempre o medo predomina.
Não fossem os curiosos, os ousados, os aventureiros, os que são movidos pelo fascínio do novo, em lugar desse mundo global, onde hoje vivemos, as pessoas estariam segregadas, vivendo em pequenos grupos, isoladamente. Isso é bom ou mau? Alguém poderá listar, nesse mundo hipotético e ensimesmado, inúmeras vantagens. Provavelmente, essas vantagens tenham como  primeiro objeto o coronavírus. Nesse suposto isolamento, não haveria risco de contágio e de disseminação rápida de qualquer doença, uma vez que cada povo já vivia distanciado um do outro.
Que ideia louca! A meu favor, o tempo não está para normalidades. A minha hipótese por certo implicaria condenar cada pequeno povo ao isolamento para todo o sempre. Convenhamos que, dadas as imensas conexões promovidas pelo desenvolvimento, é impossível conceber um modo de vida com essas características. Hoje, nem os indígenas, apesar das políticas de preservação, conseguem viver completamente isolados da sociedade global.
Voltamos ao começo: apesar de todo o desenvolvimento, apesar de o mundo ter-se tornado uma aldeia global, onde as descobertas estão acessíveis a todos os que podem pagar por elas, estamos diante de um desconhecido, que a ninguém faz concessão. Não diria que pobres e ricos o enfrentam da mesma maneira, mas não vou enveredar pela discussão de classe, porque é outro o foco. Interessa-me falar do medo que esse desconhecido nos causa. Arrisco-me a dizer que a maioria – de pobres e ricos –  está com medo.
Traiçoeiramente, o que parecia conhecido sofreu mutações e ao assumir uma nova identidade colocou a humanidade diante de perguntas para as quais, até agora, não se tem resposta. O coronavírus, segundo os cientistas, é um velho mutante, uma espécie de juiz, que se torna ministro com o propósito de aumentar a abrangência de sua letalidade. Combatê-lo requer, novamente, muita pesquisa, muitas tentativas e erros, até que se descubra uma vacina, tal como aconteceu com tantas outras doenças. Mas, até lá, ou adotamos o medo como companhia ou morremos.
Covardemente, eu tenho morrido todos os dias. Há dias em que morro uma vez, há outros em que morro tantas vezes, que até confundo o personagem. A mim, o coronavírus se apresenta de diferentes formas, nunca sozinho, sempre aos bandos: a Coronamãe  à frente, a abrir caminho para milhares de coroninhas, que não pedem licença para invadir minha cama, minha mesa, minhas compras, minhas roupas, minha comida, meu corpo.
Sei que, objetivamente, não podemos culpar ninguém por essa invasão, tampouco podemos brigar com um parasita, cuja existência está condicionada à disponibilidade dos nossos corpos, para que possa encarnar-se sucessivas vezes e banquetear-se como lhe aprouver. Eu só posso ser frontal a ele, se deixar que ele exista em mim. Na melhor das hipóteses, eu posso me prevenir contra ele, embora não seja fácil, pois, como num ritual de posse do vodu africano, o coronavírus transforma o homem possuído no seu cavalo. E monta, sem pedir licença.
         O desconhecido costuma exercer fascínio e medo. Para o bem e para o mal nem sempre o medo predomina.

Não fossem os curiosos, os ousados, os aventureiros, os que são movidos pelo fascínio do novo, em lugar desse mundo global, onde hoje vivemos, as pessoas estariam segregadas, vivendo em pequenos grupos, isoladamente. Isso é bom ou mau? Alguém poderá listar, nesse mundo hipotético e ensimesmado, inúmeras vantagens. Provavelmente, essas vantagens tenham como  primeiro objeto o coronavírus. Nesse suposto isolamento, não haveria risco de contágio e de disseminação rápida de qualquer doença, uma vez que cada povo já vivia distanciado um do outro.
Que ideia louca! A meu favor, o tempo não está para normalidades. A minha hipótese por certo implicaria condenar cada pequeno povo ao isolamento para todo o sempre. Convenhamos que, dadas as imensas conexões promovidas pelo desenvolvimento, é impossível conceber um modo de vida com essas características. Hoje, nem os indígenas, apesar das políticas de preservação, conseguem viver completamente isolados da sociedade global.
Voltamos ao começo: apesar de todo o desenvolvimento, apesar de o mundo ter-se tornado uma aldeia global, onde as descobertas estão acessíveis a todos os que podem pagar por elas, estamos diante de um desconhecido, que a ninguém faz concessão. Não diria que pobres e ricos o enfrentam da mesma maneira, mas não vou enveredar pela discussão de classe, porque é outro o foco. Interessa-me falar do medo que esse desconhecido nos causa. Arrisco-me a dizer que a maioria – de pobres e ricos –  está com medo.
Traiçoeiramente, o que parecia conhecido sofreu mutações e ao assumir uma nova identidade colocou a humanidade diante de perguntas para as quais, até agora, não se tem resposta. O coronavírus, segundo os cientistas, é um velho mutante, uma espécie de juiz, que se torna ministro com o propósito de aumentar a abrangência de sua letalidade. Combatê-lo requer, novamente, muita pesquisa, muitas tentativas e erros, até que se descubra uma vacina, tal como aconteceu com tantas outras doenças. Mas, até lá, ou adotamos o medo como companhia ou morremos.
Covardemente, eu tenho morrido todos os dias. Há dias em que morro uma vez, há outros em que morro tantas vezes, que até confundo o personagem. A mim, o coronavírus se apresenta de diferentes formas, nunca sozinho, sempre aos bandos: a Coronamãe  à frente, a abrir caminho para milhares de coroninhas, que não pedem licença para invadir minha cama, minha mesa, minhas compras, minhas roupas, minha comida, meu corpo.
Sei que, objetivamente, não podemos culpar ninguém por essa invasão, tampouco podemos brigar com um parasita, cuja existência está condicionada à disponibilidade dos nossos corpos, para que possa encarnar-se sucessivas vezes e banquetear-se como lhe aprouver. Eu só posso ser frontal a ele, se deixar que ele exista em mim. Na melhor das hipóteses, eu posso me prevenir contra ele, embora não seja fácil, pois, como num ritual de posse do vodu africano, o coronavírus transforma o homem possuído no seu cavalo. E monta, sem pedir licença.



[1] Professora Doutora. Vivente das Alagoas.

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