História da pandemia em Alagoas: jornalistas
Coordenação: Elen Oliveira
DIÁRIO DA PANDEMIA. Breve relato dos 108 primeiros dias
Paula Barreto, jornalista
No almoço, falamos sobre a Itália, que
bateu o próprio recorde de mortos por dia. Digo que é a segunda população mais
idosa do mundo. Minha filha, com 12 anos, pergunta: - A Itália tem pouco bônus
demográfico, né mãe? - Silencio. Bônus Demográfico? Nunca ouvi falar. Pergunto:
- O que é bônus demográfico, filha? Ela: - É quando tem mais pessoas produtivas
do que pessoas idosas. - Aprendo. Acho graça.
A peste se avizinha e penso nas
proporções que tomará por aqui, neste Brasil tão extraordinário quanto absurdamente
desigual. Nos trabalhadores sem emprego fixo, em como vão aguentar o
confinamento sem dinheiro e sem trabalho. É mais fácil vencer uma pandemia
quando temos janelas abertas ao mundo, conexão trazida pelas possibilidades
tecnológicas. Mas isso é para poucos.
Vejo o vídeo potente do Berinjela, um
trabalhador negro, no lotado metrô de São Paulo, dizendo: - Isso aqui é o povo,
vocês fecharam o cinema, fecharam o teatro? Sabe quem frequenta isso aí? É
rico. - Começa a discussão sobre a necessidade de uma renda emergencial para a
população mais vulnerável.
Na Itália, chegam médicos cubanos para
combater o vírus. No Brasil, o presidente convoca as pessoas às ruas. Carreatas
com carros de luxo, em várias cidades, incluindo Maceió, com a classe alta e
parte da classe média pedindo que os trabalhadores, seus empregados, voltem ao
trabalho. Com este mandatário, e com a trama que o mantém, me pergunto se elite
brasileira seguirá, sem inconvenientes, contribuindo para o grotesco espetáculo
diário? Temo que sim. O atual governo começou terminando com o Programa Mais
Médicos, que deixou histórias maravilhosas de pessoas que nunca haviam tido um
atendimento médico. E talvez não tenham outro.
Com o isolamento, há um aumento de
borboletas voando pela cidade. Cuido das plantas. Não fossem outras mãos,
estariam desidratadas. Sinto que estamos quase todos inquietos, nervosos,
trancados em casa. Todo mundo com medo. Escrevo aos amigos distantes. Quero
saber se estão bem. Pedir que se cuidem, que cuidem dos seus, que aguentem
firmes. Trabalho remoto. Ouço Sérgio Sampaio: Simples, meu pai; faça um samba enquanto o bicho não vem; saia um
pouco, ligue o rádio, meu bem; não ligue, que a morte é certa...
Noites mal dormidas. Desolação.
Inércia. Prostração. Fazendo o indispensável. O trabalho é o marcador do tempo
- deste que a cada instante nos deixa
mais próximos da morte - e organiza parte da rotina; me ocupa a cabeça; no modo
automático, com um grau mínimo de eficiência a que me imponho. Tenho ojeriza à
ideia de fazer parte da estatística de servidores públicos nos velhos moldes.
Sinto uma espécie de luto antecipado
pelo que virá. Evito ler noticiosos. Saio de alguns grupos de WhatsApp. Dos
memes. Da hipocrisia. Tento me distrair. Entre poucas e diferentes amigas,
trocamos livros deixados nas portarias. Numa das devoluções, recebo um
pacotinho de sementes de amor-perfeito. Enterneço. Ainda não plantei.
Começo a ler um livro e vários ao
mesmo tempo. Termino um. Tento me conectar com o que, ao fim e ao cabo, nos
humaniza e nos salva: arte. Vejo a divertida série espanhola La Casa de Papel. O bella ciao, bella ciao, bella ciao, ciao,
ciao; questo fiore del partigiano; morto per la libertà. Pena que o
matriarcado durou pouco!
A peste se acerca. Está com um amigo com
85% dos pulmões comprometidos, agora em casa; com os pais do colega de
trabalho; com meus sobrinhos. Não vejo minha mãe há meses. Idosa e com Alzheimer.
Nos falamos todos os dias. Optamos pelo isolamento. Por nós, por todos.
Nossa filha retorna às aulas, agora
online. Evito pensar sobre. Serão algumas horas a menos de outras conexões.
Estamos todos viciados. Nas últimas semanas, em dias intercalados, fazemos
bolo, gelatina, brigadeiro; e assistimos juntas, com alguma má vontade minha, e
sob protestos, algum dos infinitos vídeos de k-pop. Absoluta em nossas
distrações domesticas é nossa gatinha. Entre os três, temos uma acirrada
disputa por sua atenção. Mesmo com todos os carinhos, brincadeiras e
bajulações, nos ignora solenemente.
Escuto Paco Ibáñez: Y había también un príncipe malo, una bruja
hermosa, y un pirata honrado. Todas estas
cosas había una
vez, cuando yo
soñaba un mundo al revés.
Quero acreditar que a solidariedade é
mais contagiosa que o vírus. Que a epidemia talvez seja uma oportunidade para a
sociedade olhar para si mesma e repensar a nossa existência, para que tomemos
consciência do que disse Olga Tokarczuk, falando sobre a pandemia: Que a nossa ‘humanidade’ e excepcionalidade
não nos separam do mundo. Permanecemos emaranhados nele como numa espécie de
rede enorme, interligados aos outros seres através de invisíveis fios de
dependências e influências. E que existem correlações entre todos nós. Não
importa de que países longínquos provimos, que língua falamos e qual é a cor da
nossa pele. Todos, igualmente, contraímos doenças, sentimos o mesmo medo e
morremos do mesmo jeito. O vírus nos conscientizou de que não importa o quanto
nos sentimos fracos e vulneráveis perante o perigo, há sempre, ao nosso redor,
pessoas ainda mais fracas que precisam de ajuda.
Revejo o filme Bacurau, numa live do
YouTube, com mais de 250 mil expectadores. Assisto ao filme Piedade, do Cláudio
Assis. Salve o cinema pernambucano! Um amigo ganha o prêmio Sesc de literatura
na categoria romance. Fico feliz! Vejo parte da live dos 78 anos Gilberto Gil. Anda com fé eu vou. A fé não costuma falhar.
Primeiro de julho de 2020. Greve dos
entregadores por aplicativos. Lembro do filme Você não estava aqui, do Ken
Loach, que vi no Arte Pajuçara, um pouco antes do início da quarentena. Triste,
oportuno, necessário. Fala sobre a uberização da vida, dominada pela
tecnologia, sobre a falsa ilusão de liberdade. Aceito o pedido inusitado do
professor Sávio para fazer um breve diário da pandemia. Escrevo.
O blog pode discordar no todo ou em parte do material que publica
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