O virus enquanto espero o tempo passar (I)
Luiz Sávio de Almeida
A cabeça de um isolado
Faz tempo que me encontro na condição pública de isolado,
algo difícil a satisfazer, mas insistem em chamar assim, como falam
constantemente em distanciamento social. Como isolar, viver numa bolha
asséptica se a sociedade é montada em rede? Como distanciar-me socialmente sem
morrer, findar-me, se apenas posso ser eu, existir, se estiver em relação, o
que me permite ser historicamente? Na certa são imagens que possibilitam o
conselho ou mesmo, em alguns lugares, a
invocação da força legal do poder de mando: evite a ágora, o público, seja o máximo possível um homem do domus, como se a salvação passasse
obrigatoriamente pelo recolhimento como
se pensa em algum convento.
De uma hora para outra, as ruas e avenidas, os becos e as
vielas não estavam boas, povoados por um inimigo chamado virus e que, pela sua
origem latina, nos faria o medo de que estivessem envenenadas. Gosto dos textos
de João do Rio e sobretudo de um seu achado magnífico: as ruas têm alma. Penso no tempo em que ele teve a pachorra
para escrever isto, não muito distante do Cosme Velho de Machado de Assis; meus
tempos são outros, as coisas mudaram e noto tais mudanças em pequenos detalhes
e em grandes composições como a parede de arranha-céu à minha frente. A minha
rua é estreita mas tem alma? Na certa
que sim: é uma alma de velocidade, transações, farmácias, restaurantes,
escritórios e, ao mesmo tempo, da calma anônima do que ficou sendo chamado de
prédios residenciais.
Logo nos primeiros dias do tal isolamento, como já narrei e
publiquei em Campus/ O Dia, ela
ficou deserta e depois, pouco a pouco, foi
ganhando movimento, mas jamais voltou ao que era. O interessante é que
um casal de bem-te-vi continua com seu ninho em uma árvore em frente à minha
casa e um casal de sibite, toda manhã bem cedo, aparece e fica ali, na tela que
foi posta para impedir um malfeito do Joaquim, meu neto.
Antes de vir morar aqui, eu residia no Stela Maris; foi uma
das primeiras casas de minha rua: eram quatro quando cheguei, bem pelos fundos
do loteamento. Eu tinha um pequeníssimo orquidário, com uma cobertura, lugar fresco, com sombra razoável e
entranhado de plantas. E foi quando tive um presente tão belo quanto as
orquídeas: ninhos e mais ninhos de rolinha caldo de feijão, e uma fogo-pagô me
enchia o começo da manhã de alegria. A bem da verdade, nunca vi uma rolinha
capim aqui em Maceio, e é como se ela
não soubesse romper com o campo.
Desde este tempo, fiquei interessado em ver passarinhos do
campo pelos mundos da cidade. Descobri anum na praia, coisa esquisita pois
sempre julguei que viviam por perto de boi e sempre passou na minha cabeça, o
rebanho de canários no Engenho Paul em Palmares, do seu Lauro; o bando de galo
de campina no sertão e passarinhos e mais passarinhos que nunca mais vi. Minha
cabeça é um arquivo de passarinhos, desde os tristes gaiolões de feira à plena
liberdade no campo.
Vi seu Joel que fazia belíssimas gaiolas de barba de bode,
aprontar torreões para galo de campina que é bom quando canta de açoite e não
vale nada quando corruchia; canário bom de estalo e que dobra e por aí vai. No
fundo do quintal, rente com o rio Una,
tinha um imenso pé de sabonete, onde ei deixava comida para os que comiam duro
e para os que comiam mole. No apartamento, não tenho passarinho para ver, nem,
mesmo os pardais, exóticos, que não
deixavam de dar o ar da graça.
Hoje, depois de uma negociação com uma construtora, passei
para um apartamento e o jardim se transformou em poucos vasos de cactos e
suculentas. No entanto, está cheio de passarinhos de madeira vindos da Ilha do
Ferro e de Delmiro Gouveia. Uma das esculturas é de um dos passarinhos que mais
gosto: casaca de couro e, também, adoro a música que conheço em algumas
versões, sendo uma delas de Zé Gonzaga,
irmão do Luiz Gonzaga e melhor sanfoneiro do que o Rei do Baião.
Estão eles e uma gaiola de porta aberta, para que se veja o
mundo sem prisões. Os passarinhos mudaram e minha rua mudou. Voltará a ser a
mesma? Eu mesmo voltarei? Na certa não,
mas jamais estarei isolado em minha casa, pois nem eu consigo largar o mundo e
nem o mundo a mim, mormente agora pela parafernália de comunicação moderna.
Este passeio entre rua, isolamento e passarinhos mostra uma
coisa simples: mesmo que o movimento físico esteja negado, não está a memória e
a persistência de condições. O mundo não está em um lado e eu aqui em meu
apartamento, estamos juntos nesta trama e estamos, também, no fato de que não
posso estar trancado e livre do mundo que ficou dual nas proposições e jamais
nas situações reais de vida. Por onde entraria o virus em minha casa? Porta de
entrada? Agarrado em quê? Tenho de falar
sobre ele.
O entranhamento pessoal ou a trama de todos nós
Não sei se foi a
rua quem me chamou ou se foi a consciência, mas mundo e consciência somam-se;
neste caso, seria de esperar que estamos
diante da rua e das interrogações sobre a pandemia. Elas perguntam incessantemente. Difícil pensar
que alguém escreva gratuitamente e isto
de modo especial quando se trata
de uma situação de cunho trágico e parte
do que vamos chamar de a história do horror, à qual Alagoas se encontra acostumada. Trata-se de uma história que normalmente se
encontra associada à ideia de catástrofe ao desastre em alta dimensão.
Em um caso deste
tipo, é impossível vagabundear sobre dor, tristeza e sofrimento que, em nosso
modo de ver a história, supera a visão meramente estrutural, lógica e das
grandes evidências, no que estamos nos aproximando de Thompson em sua percepção
de que existe uma história que pode aflorar, uma history from below, a mesma das cartas do soldado nas
guerras napoleônicas. .
Por outro lado,
devemos insistir, que não é possível andar impune por ruas e avenidas, como
mais um flaneur a vagabundear por este mundo vasto mundo do poeta;
isto equivaleria a desumanizar a história quando o tema, seu assunto é dor,
sofrimento, morte, todos assumidos por uma coletividade que intitula-se –
talvez até sem saber a razão – de Alagoas, o que preferimos, pelo nosso gosto à
antiga, de chamar das Alagoas.
Uma continuidade de
trabalho
Sempre tive vontade de
continuar o trabalho iniciado com o livro sobre o cólera e tratar do
conjunto das epidemias que se deram no século XIX, também passando pela ada
gripe espanhola nos começos dos XX. Nisto
estaria perto dos sofrimentos diuturnos de nossa população, como se os tempos
de hoje chamassem insistentemente os de ontem e, numa espécie de mágica, tudo se encontrasse nos caminhos do Corona,
espécie de síntese que carrega as indicações do que vivemos e recordamos no
famoso xingamento: “Vá para a casa da peste!”.
Aliás, em Alagoas nos tempos
do Colera destacamos que em Alagoas
se sabe onde fica a casa do horror, das angústias e dos mistérios. A maior
parte de nossos xingamentos são nomes de doenças ou invocação do maligno que
tem nomes e mais nomes como o fute, o Caim, caperoto, até que se chega à
categorias elevadas como o Cão com a dor de banda, o Cão chupando manga e
outras peculiaridades nestas revelações que temos sobre o Inferno.
É neste universo do
maligno, que a tuberculose criou assombração como a da Mulé das Costa ôca. Entre a doença e o infernal sempre foi
articulada uma ligação, onde não raro estaria uma corja demoníaca de diabos e
diabas, irmãs de íncubus
e súcubos que passearam nos tempos inquisitoriais do Malleus
Maleficarum. Aliás, de muito a Igreja Católica peleja com o diabo e
atentados à alma, como se pode ver nas orações do antigo vestatarius e depois Papa Leão III. E um outro Leão, o XIII, entrou
na mesma seara, tudo no caminho de combater o diabo insidioso que, dentre
outros malefícios, pensando nos tempos de hoje, nos trouxe esta agenda histórica
do Coronavirus.
Projeto Memória da
Pandemia nas Alagoas
Coordenação
Luiz Sávio de Almeida
e José Carlos Silva de Lima
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