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domingo, 3 de maio de 2020

Luiz Sávio de Almeida. O virus enquanto espero o tempo passar (I). Memória da pandemia em Alagoas (XXVI)









O virus enquanto espero o tempo passar (I)


Luiz Sávio de Almeida


 

A cabeça de um isolado


Faz tempo que me encontro na condição pública de isolado, algo difícil a satisfazer, mas insistem em chamar assim, como falam constantemente em distanciamento social. Como isolar, viver numa bolha asséptica se a sociedade é montada em rede? Como distanciar-me socialmente sem morrer, findar-me, se apenas posso ser eu, existir, se estiver em relação, o que me permite ser historicamente? Na certa são imagens que possibilitam o conselho  ou mesmo, em alguns lugares, a invocação da força legal do poder de mando: evite a ágora, o público, seja o máximo possível um homem do domus, como se a salvação passasse obrigatoriamente pelo  recolhimento como se pensa em algum convento.

De uma hora para outra, as ruas e avenidas, os becos e as vielas não estavam boas, povoados por um inimigo chamado virus e que, pela sua origem latina, nos faria o medo de que estivessem envenenadas. Gosto dos textos de João do Rio e sobretudo de um seu achado magnífico: as ruas têm alma.  Penso no tempo em que ele teve a pachorra para escrever isto, não muito distante do Cosme Velho de Machado de Assis; meus tempos são outros, as coisas mudaram e noto tais mudanças em pequenos detalhes e em grandes composições como a parede de arranha-céu à minha frente. A minha rua é estreita mas tem alma?  Na certa que sim: é uma alma de velocidade, transações, farmácias, restaurantes, escritórios e, ao mesmo tempo, da calma anônima do que ficou sendo chamado de prédios residenciais.

Logo nos primeiros dias do tal isolamento, como já narrei e publiquei em Campus/ O Dia, ela ficou deserta e depois, pouco a pouco, foi  ganhando movimento, mas jamais voltou ao que era. O interessante é que um casal de bem-te-vi continua com seu ninho em uma árvore em frente à minha casa e um casal de sibite, toda manhã bem cedo, aparece e fica ali, na tela que foi posta para impedir um malfeito do Joaquim, meu neto.

Antes de vir morar aqui, eu residia no Stela Maris; foi uma das primeiras casas de minha rua: eram quatro quando cheguei, bem pelos fundos do loteamento. Eu tinha um pequeníssimo orquidário, com uma cobertura,  lugar fresco, com sombra razoável e entranhado de plantas. E foi quando tive um presente tão belo quanto as orquídeas: ninhos e mais ninhos de rolinha caldo de feijão, e uma fogo-pagô me enchia o começo da manhã de alegria. A bem da verdade, nunca vi uma rolinha capim aqui em Maceio,  e é como se ela não soubesse romper com o campo.

Desde este tempo, fiquei interessado em ver passarinhos do campo pelos mundos da cidade. Descobri anum na praia, coisa esquisita pois sempre julguei que viviam por perto de boi e sempre passou na minha cabeça, o rebanho de canários no Engenho Paul em Palmares, do seu Lauro; o bando de galo de campina no sertão e passarinhos e mais passarinhos que nunca mais vi. Minha cabeça é um arquivo de passarinhos, desde os tristes gaiolões de feira à plena liberdade no campo.

Vi seu Joel que fazia belíssimas gaiolas de barba de bode, aprontar torreões para galo de campina que é bom quando canta de açoite e não vale nada quando corruchia; canário bom de estalo e que dobra e por aí vai. No fundo do quintal,  rente com o rio Una, tinha um imenso pé de sabonete, onde ei deixava comida para os que comiam duro e para os que comiam mole. No apartamento, não tenho passarinho para ver, nem, mesmo os pardais, exóticos,  que não deixavam de dar o ar da graça.

Hoje, depois de uma negociação com uma construtora, passei para um apartamento e o jardim se transformou em poucos vasos de cactos e suculentas. No entanto, está cheio de passarinhos de madeira vindos da Ilha do Ferro e de Delmiro Gouveia. Uma das esculturas é de um dos passarinhos que mais gosto: casaca de couro e, também, adoro a música que conheço em algumas versões, sendo uma delas de Zé Gonzaga,  irmão do Luiz Gonzaga e melhor sanfoneiro do que o Rei do Baião.

Estão eles e uma gaiola de porta aberta, para que se veja o mundo sem prisões. Os passarinhos mudaram e minha rua mudou. Voltará a ser a mesma?  Eu mesmo voltarei? Na certa não, mas jamais estarei isolado em minha casa, pois nem eu consigo largar o mundo e nem o mundo a mim, mormente agora pela parafernália de comunicação moderna.

Este passeio entre rua, isolamento e passarinhos mostra uma coisa simples: mesmo que o movimento físico esteja negado, não está a memória e a persistência de condições. O mundo não está em um lado e eu aqui em meu apartamento, estamos juntos nesta trama e estamos, também, no fato de que não posso estar trancado e livre do mundo que ficou dual nas proposições e jamais nas situações reais de vida. Por onde entraria o virus em minha casa? Porta de entrada? Agarrado em quê?  Tenho de falar sobre ele.

O entranhamento pessoal ou a trama de todos nós

Não sei se foi a rua quem me chamou ou se foi a consciência, mas mundo e consciência somam-se; neste caso,  seria de esperar que estamos diante da rua e das interrogações sobre a pandemia.  Elas perguntam incessantemente. Difícil pensar que alguém escreva gratuitamente e isto  de modo especial  quando se trata de  uma situação de cunho trágico e parte do que vamos chamar de a história do horror, à qual Alagoas se encontra acostumada.  Trata-se de uma história que normalmente se encontra associada à ideia de catástrofe ao desastre em alta dimensão.

Em um caso deste tipo, é impossível vagabundear sobre dor, tristeza e sofrimento que, em nosso modo de ver a história, supera a visão meramente estrutural, lógica e das grandes evidências, no que estamos nos aproximando de Thompson em sua percepção de que existe uma história que pode aflorar, uma history from below, a mesma das cartas do soldado nas guerras napoleônicas. .
Por outro lado, devemos insistir, que não é possível andar impune por ruas e avenidas, como mais um flaneur a vagabundear por este mundo vasto mundo do poeta; isto equivaleria a desumanizar a história quando o tema, seu assunto é dor, sofrimento, morte, todos assumidos por uma coletividade que intitula-se – talvez até sem saber a razão – de Alagoas, o que preferimos, pelo nosso gosto à antiga, de chamar das Alagoas.

Uma continuidade de trabalho

Sempre tive  vontade de  continuar o trabalho iniciado com o livro sobre o cólera e tratar do conjunto das epidemias que se deram no século XIX, também passando pela ada gripe espanhola nos começos dos XX.  Nisto estaria perto dos sofrimentos diuturnos de nossa população, como se os tempos de hoje chamassem insistentemente os de ontem e, numa espécie de mágica,  tudo se encontrasse nos caminhos do Corona, espécie de síntese que carrega as indicações do que vivemos e recordamos no famoso xingamento: “Vá para a casa da peste!”.  

Aliás, em Alagoas nos tempos do Colera destacamos que em Alagoas se sabe onde fica a casa do horror, das angústias e dos mistérios. A maior parte de nossos xingamentos são nomes de doenças ou invocação do maligno que tem nomes e mais nomes como o fute, o Caim, caperoto, até que se chega à categorias elevadas como o Cão com a dor de banda, o Cão chupando manga e outras peculiaridades nestas revelações que temos sobre o Inferno.

É neste universo do maligno, que a tuberculose criou assombração como a da Mulé das Costa ôca.  Entre a doença e o infernal sempre foi articulada uma ligação, onde não raro estaria uma corja demoníaca de diabos e diabas, irmãs de íncubus e súcubos que passearam nos tempos inquisitoriais do Malleus Maleficarum. Aliás, de muito a Igreja Católica peleja com o diabo e atentados à alma, como se pode ver nas orações do antigo vestatarius e depois Papa Leão III. E um outro Leão, o XIII, entrou na mesma seara, tudo no caminho de combater o diabo insidioso que, dentre outros malefícios, pensando nos tempos de hoje, nos trouxe esta agenda histórica do Coronavirus.

Ilustração: Eduardo Bastos. 


Projeto Memória da Pandemia nas Alagoas
Coordenação
Luiz Sávio de Almeida e José Carlos Silva de Lima

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