Cosme Rogério Ferreira
Sociólogo, professor de filosofia do Ifal / Campus
Batalha.
Agosto, o mês do desgosto.
Há variadas versões para a crendice de que o
mês oito seja o mais agourento do ano. Não há dúvida, porém, de que agosto de
1915 foi o mais triste da história da cidade de Palmeira dos Índios, por mor de
um surto de peste bubônica que dizimou a população no período.
A doença é um dos três tipos de peste causada
pela bactéria Yersinia pestis, transmitida pelas pulgas que parasitam
ratos. Desde a Idade Média, quando tornou a morte mais presente no cotidiano da
população europeia, a peste afeta o imaginário do cristianismo, no qual a
cultura brasileira também é embebida. São Sebastião, um dos santos mais
populares do catolicismo, é invocado na defesa dos três maiores tormentos
terrenos que estremecem de medo o cristão: a fome, a peste e a guerra.
Em Palmeira dos Índios, o mal que flagelou a
cidade há mais de um século resiste fortemente na memória do povo através de expressões
linguísticas que são comuns no Nordeste. Se uma coisa não funciona direito, foi
porque “deu a peste” ou “deu a bubônica”. Se se quer mandar alguém para algum
lugar inconveniente, ordena-se que “vá para a casa da peste”. Se se quer xingar
(ou elogiar, dependendo da situação) alguém referenciando a sua genitora:
“filho da peste”. Se se quer chamar alguém de doido: “Está com a peste (no
couro)”. Se se quer apenas interjecionar contrariedade: um simples e aborrecido
“peste” é suficiente. Se se quer interjecionar a contrariedade com mais ênfase:
“eita, bubônica da peste” (ah, a boca cheia de farinha...). Tais expressões são
mais recorrentes entre os palmeirenses do que em outros lugares.
Relatos da época dão conta de que morriam de três
a quatro pessoas por dia, e os defuntos eram enterrados imediatamente. Esse
dado nos faz calcular que devem ter morrido, no mínimo, entre 93 e 120 pessoas
durante a epidemia. O médico Osvaldo Sarmento, enviado à cidade para coordenar
o combate à doença, adotou como primeira medida evitar mosquitos nos interiores
das moradias. Determinou-se então que os moradores queimassem, à porta de casa,
mato verde ou bosta de vaca, para que a fumaça espantasse os possíveis transmissores.
No dia 25, o boticário (assim era chamado o dono da farmácia) e então intendente
(assim era chamado o prefeito) Tobias Costa enviou um telegrama ao industrial
Batista Acioli, então presidente da Província (e assim era chamado o governador
do Estado) no qual informava que os gastos despendidos no combate à epidemia –
confirmada, por carta, pelo médico Aurélio Brandão – somavam 1.637$920 (um
conto, seiscentos e trinta e sete mil, novecentos e vinte réis) e que competia
ao Estado indenizar o Município, que não dispunha de mais recursos para
empregar em ações profiláticas, devido ao seu colapso sanitário e financeiro.
Bibiano Goivinho, encarregado do cemitério, pediu exoneração por causa do
aumento da carga de seu insalubre trabalho e por temer ser contaminado. Em
substituição, o intendente nomeou o coveiro Sebastião Ferreira da Silva.
O receio do contágio fez o comércio cerrar as
portas, os moradores se entocarem em casa e muitas famílias irem embora da
cidade. À crise sanitária, somou-se a crise econômica, agravada pela seca que
assolou o Nordeste e arruinou as plantações de algodão, base da economia local,
e a crise política, que deteriorou as relações entre Tobias Costa e o major
Vieira de Brito, tesoureiro municipal, depois que o primeiro descobriu, no ano
seguinte, que o segundo desfalcara o erário em mais de 700$000 (setecentos mil
réis). Vieira de Brito nunca devolveu o dinheiro e Tobias Costa terminou
renunciando.
O jovem escritor Graciliano Ramos estava
vivendo no Rio de Janeiro, centro gravitacional para todo aquele que almejava
seguir carreira jornalístico-literária, quando três irmãos e um sobrinho seus
faleceram vitimados pela doença, que ainda deixou abaladas as saúdes de sua
mãe e de mais duas irmãs. Entre o dilema de ser útil aos familiares e levar
adiante a tão sonhada carreira, Graciliano assinalou a primeira opção: “Não me
tenta a Palmeira. Mas acredito que com o sacrificar-me não sacrificarei grande
coisa”, confessou em carta. Em setembro, ele já estava de volta para se dedicar
novamente às atividades comerciais na loja do pai. Acabou reatando o
relacionamento amoroso com Maria Augusta de Barros, a costureira a quem seus
pais não viam com bons olhos, dadas as condições sociais da moça. Desestimular
o namorico entre Graciliano e a filha de humildes lavradores foi um dos motivos
de o coronel Sebastião Ramos e a dona Mariquinha apoiarem a partida do rapaz
para a então capital federal. Sabendo que Maria Augusta arriscou a saúde para
cuidar de seus parentes durante o surto de peste, Graciliano viu nesse gesto a
prova de que era a mulher com quem deveria se casar. Contraíram núpcias em
outubro. Pouco mais de quatro anos depois ela faleceu, devido a complicações no
parto.
Quando
Graciliano se tornou prefeito, exercendo o mandato entre 1928 e 1930, zelou, de
modo exemplar e inédito, pelas condições sanitárias das áreas urbana e rural da
cidade construindo postos de higiene, urbanizando áreas degradadas, recolhendo
os montes de lixo tradicionalmente mantidos nos logradouros públicos e o cisco
preciosamente guardado nos quintais das casas, eliminando possíveis focos de
contaminações. Em um dos seus famosos relatórios, ele escreveu: “Pensei em
construir um novo cemitério, pois o que temos em pouco será insuficiente, mas
os trabalhos a que me aventurei, necessários aos vivos, não me permitiram a
execução de uma obra, embora útil, prorrogável. Os mortos esperarão mais algum
tempo. São os munícipes que não reclamam”.
A
lotação do cemitério São Gonçalo prestes a esgotar, problema persistente até
hoje em Palmeira dos Índios, é a triste herança iniciada com uma epidemia de
peste bubônica de quase 105 anos passados, a nos lembrar a catástrofe que pode
nos acontecer quando não tomamos os cuidados mais básicos de higiene.
Projeto Memória da
Pandemia nas Alagoas
Coordenação
Luiz Sávio de Almeida
e José Carlos Silva de Lima
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