sábado, 14 de junho de 2014
Memória: Os grandes amigos também morrem: Anilda Leão
Texto publicado em Contexto de 22 de janeiro de 2012 em
Tribuna Independente. Para este blog, estamos utilizando material
digitalizado e com gerenciamento das imagens realizado por Kellyson
Ferreira, com a coordenação do Professor Antônio Daniel Marinho.
Os grandes amigos também morrem
Luiz Sávio de Almeida
Acabo
de chegar do cemitério. Ontem mesmo, eu soube do falecimento. Estava
almoçando na estrada e a participação fúnebre foi realizada pelo Homero
Cavalcanti e Ronaldo de Andrade em um posto de gasolina na área de
Messias, antigamente chamada de Curralinho, coisa que o povo detestava.
Os dois foram comprar picolé e me encontraram. Pesou! Mas continuei
rindo, na companhia de duas amigas, com as quais fui visitar um
assentamento.
Cheguei
sorumbático em casa. Afinal de contas, Anilda Leão era uma referência
de carinho em minha vida e eu acredito piamente que ela morreu. São 88
anos que se passaram naquele sorriso bonito.
Deles,
fomos ligados pelo menos uns 40, até mesmo pela amizade que eu tinha
com o Carlos Moliterno, seu esposo, e que foi inaugurada pelo Theo
Brandão em sua casa, ao tempo uma construção solitária em um pedaço de
praia que o próprio Theo batizou de Jatiúca, palavra indígena que
significa carrapato.
Fomos
confidentes: Anilda e eu. Pouca gente sabia da profunda intimidade que
tínhamos; talvez seus filhos e alguns poucos amigos. Sabíamos
particularidades, dessas que a gente diz: Nunca contei a alguém.
Conversávamos pouco e raramente, mas quando a gente se via, abria-se a
torneira do tempo.
Não
vou falar'de sua presença no movimento feminista, nem sobre seus dotes
literários, sua importância na vida de Alagoas. Quero somente falar do
tradicional cumprimento dito - pé de ouvido - para ninguém ouvir. Eu a
abraçava com força e soltava: “Diga, sua doida!” A resposta era
infalível: “Diga, seu maluco!”
E
precisava mais do que isso para celebrar um amor de amigo, cantigas de
persistência medieval nas duas cucas alagoanas? Depois, quando havia
espaço, a gente se afastava: “Você tá bem, amor?” Era um sim ou era um
não; se era um não, vinha uma carícia na cabeça; se era um sim, o
sorriso se abria em duas bandas de abacate sem caroço.
Eu
nunca esqueci Anilda, tenho uma foto dela em meu escritório. Foi o
Isaac, aquele que tirou a foto, bateu a chapa como se dizia. Assim que
recebi o instantâneo, fui comprar um porta-retrato, dos baratinhos, para
não estourar o cheque especial pois professor não pode comprar qualquer
porta cara, especialmente quando porta um retrato. Estou partilhando a
foto com vocês; gostaria que notassem quanto a protejo e quanto ela se
aninha, uma Sinhá Aninha, uma sianinha em minha vida.
Não
fui vê-la no caixão. Fiquei de longe. Sentei numa cadeira, dentre
muitas cansadas de bundas que veloriorizaram naquelas capelas.
Egoisticamente, pensei na minha própria morte e no quanto deve ser chato
a gente ser enterrado. No meio do assuntamento, procurei pela música
que eu gostaria de cantar, um defunto alegre e ao mesmo tempo
resistente. Lembrei de um frevo que eu costumava sair pulando no
carnaval, com uma garrafa de cachaça pendurada na cintura e uma chupeta
furada no gargalo. Veio à cena, o velho bloco Barril de Óleo em
Palmares, Pernambuco. O frevo dizia assim - e te juro sua doida, que
cantei para você ao ver passar aquela caixa de madeira onde lhe
guardaram
Eu não vou,
vão me levando
Vão me empurrando
E desse jeito, eu tenho que ir,
Vocês vão me desculpando
Mas eu não vou,
Vão me levando!
Vão me levando!
Eu
quero ser enterrado na folia. A Zana Vilela tem todas as instruções;
ela sabe tintim por tintim como quero meu enterro; passei uma tarde de
cerveja dizendo a ela e ela rindo do protomoribundo. Mas, não havia
razões para estar de gargalhada, não havia mesmo! Espero que mesmo
rindo, ela tenha tomado nota. Faltou assentar uma coisa no papel. Assim
que eu desencarnar (expressão que você gosta, Anildinha) ou desossar
como prefiro, quero ser recebido por você devidamente pastorizada mas de
azul. Azul é o céu, azul é o mar, azul é a Anilda que nós vamos coroar.
E por falar a verdade, nem sei se você é do encarnado.