Memória: minha vida e as águas do São Francisco
Um pouco sobre a vida e sobre as
águas de um rio
José Medeiros
Nasci numa fazenda, no município de Traipu, que era um
santuário ecológico. Ao amanhecer, acordava ouvindo verdadeira orquestra de
pássaros canoros. Mesmo no verão, o sol
não chegava a cauterizar toda a vegetação, na qual se escondiam teiús, perdizes
e codornas.
Como era a
minha pequena cidade
O que era Traipu? Uma cidade à moda antiga, de ruas
estreitas, calçadas com pedra rachão, ou mantidas em
terra batida e poeirenta; casas de biqueira, janelas de madeira maciça, sem
venezianas. Nas ruelas secundárias predominavam residências de taipa, nem
sempre rebocadas. Os nomes das ruas de outrora eram bem diferentes das atuais:
Rua das Flores, Rua da Igreja, Rua Grande, Rua do Papouco. Os nomes dos amigos
de infância guardavam sempre relação de origem com seus pais: Mitinho do
Américo, Luizinho da Santinha, Zequito da Luizinha, Aurinha da dona Carminho.
São retratos sem retoques e recordações de uma cidade do interior, de vida
pacata e mansa, porém imagens bem vivas em minha memória.
Nas noites de lua cheia, coincidência ou não, o motor
elétrico sofria defeito. A cidade ficava às escuras, e as famílias sentadas nas
calçadas, colocavam em dia as modestas novidades e acontecimentos locais.
Dentro da casa, os lampiões de querosene, os candeeiros e velas, garantiam as
arrumações na hora de deitar.
A poucos metros dali, o rio São Francisco deslizava
mansamente, voluptuosamente, e uns poucos afoitos arriscavam tomar banho à
noite. Predominava o medo de piranhas (peixes vorazes) alicerçado nas muitas
histórias de pessoas desaparecidas, nunca mais encontradas.
A cidade de Traipu, nos idos de 1940, foi testemunha de
minha infância alegre e feliz. Durante o dia, após as obrigações da escola,
braçadas no rio, em disputa de distâncias a serem alcançadas. Emolduravam esse
cenário canoas com velas infladas, traquetes coloridos, canoas de tolda assim
eram conhecidas. Para quem viajava nesses transportes fluviais a alimentação
era especial, uma feijoada de tão bom
paladar que celebrizou a expressão ribeirinha: "tão gostosa quanto
feijoada de popa de canoa".
Esse quadro não estaria completo se não fosse citado o
novenário da festa da padroeira da cidade, Nossa Senhora do Ó, durante o qual
transbordava religiosidade, animado por foguetórios, zabumbas, dobrados
musicais e leilões.
Uma aventura no
rio
Neste verão, lembrei-me de um episódio ocorrido em minha
adolescência. Morávamos (eu e meu irmão Rui Medeiros) na fazenda Mata Verde, à
margem do Rio São Francisco. Além de futebol, nossos esportes favoritos eram a
pesca – como eram fartos os peixes e pitus àquela época! – e a natação à
distância, sempre tentando superar limites anteriormente conquistados. Éramos
adolescentes, vivíamos uma crise paranóica de auto-suficiência, cada um querendo
ser dono do próprio nariz, sem medo de enfrentar riscos e obstáculos. A cidade
mais próxima ficava a uma légua de distância (6 km) de onde nos encontrávamos,
e o percurso era feito em canoas.
Julgávamos conhecer os segredos do rio e tínhamos
confiança em sermos exímios canoeiros. Certa tarde comuniquei à minha mãe que
íamos à cidade fazer compras, pilotando uma canoa à vela. Um “Não” foi a
resposta; um “Não” redondo e definitivo. Explicou, que em algumas horas cairia
uma trovoada; o céu já se tomava de uma coloração azul-chumbo e o rio ficaria
perigoso durante a chuvarada. Tentamos convencê-la, em nada resultavam os
argumentos.
Desobedecemos, rumamos à cidade. Na
volta – e já estávamos no meio do rio – desabou uma chuva torrencial, seguida
de ventos fortes, que mais pareciam um furacão; os raios e trovões se sucediam.
A vela foi arrancada violentamente, inteiramente destroçada. Desesperados,
remamos com todas as nossas forças para alcançar a margem do rio. Entretanto,
isso já parecia impossível. De repente, julguei ouvir a voz de minha mãe que me
orientava: “Filho, tenha calma, deixe a canoa ser arrastada pela correnteza; é
o melhor que você pode fazer”. Parei o que estava fazendo e segui o conselho
recebido. O barco foi levado pela corrente impetuosa e depois jogado em terra
firme, em local bem distante.
O pensamento positivo e a energia da
preocupação de minha mãe haviam transmitido uma mensagem à minha mente. Uma
mensagem telepática.
No dia seguinte (ela ainda estava
uma “arara”) contou-nos que, no momento da trovoada, ajoelhou-se e pediu a Deus
que orientasse seus filhos. Como penitência, acompanharia a “via-sacra”, de
joelhos, nas semanas santas dos anos seguintes na cidade de Traipu.
As brincadeiras
e seus encantamentos
Na minha infância tinha
a curiosidade de conhecer a fazenda de meus avós, chamada de "Saco dos
Medeiros", situada à margem do Rio São Francisco, 10 km rio acima do
local que nasci. Durante um verão inesquecível, a bordo de um barco à vela,
viajei até lá. Quedei-me mudo de emoção diante de uma casa grande no alto de
um penhasco, de onde se divisa as curvas do trajeto do rio. Entro na sala:
quanta emoção nas lembranças e reminiscências familiares. Ali, reside um pouco da história
de meus antepassados. Minha avó teve 16 filhos; não sei se reclamava da
extensão dessa tarefa. Ela era doce e meiga. O amor era a vitamina para todos
os males do corpo e da alma. Renovava energias no contínuo trabalhar.
Brincadeiras infantis na fazenda: “Boca de forno, forno!”
“Tirando bolo, bolo!” “Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar...” “O cravo
brincou com a rosa, a rosa...” Eram cantigas entoadas nas brincadeiras infantis
preferidas pelas meninas, ao anoitecer. A bola que os garotos jogavam
interrompia as brincadeiras femininas, acredito que por ciúme de terem sido
isolados dos folguedos. O rio corria lá em baixo, no barranco, uma imensa
caudal de águas claras e de fortes correntezas.
Se a tristeza do
entardecer emergia mística, de imediato palavras-mágicas eletrizavam a garotada
com o anúncio: “Venham, a sopa vai esfriar!” E eles, por graça, repetiam: “Café
com pão, bolacha não!”.
São inesquecíveis imagens que povoaram minha infância nos
idos da década de 1940. O rio, ainda intocado, guardava as características da
época do descobrimento. Não havia hidrelétricas, nem represas. Durante as
enchentes anuais, as águas se expandiam por quilômetros e quilômetros além das
margens, e, nesses alagadiços, plantava-se o arroz que garantia a subsistência
de muitas famílias. E aí, veio a primeira grande agressão. As hidrelétricas de
Sobradinho, Xingó e Itaparica absorveram parte das águas do rio. Era o
progresso, levando iluminação a cidades e vilas, energia necessária ao consumo
e à modernização industrial. Quem arriscaria insurgir-se contra o progresso?
Entretanto, a partir daí, o rio minguou em largura e volume de água. Em algumas
partes virou riacho. Nessa época, a melhor alternativa de locomoção dos
ribeirinhos do baixo São Francisco era o transporte fluvial. O rio era o
caminho natural; as poucas estradas existentes eram quase veredas.
A importância de Traipu e de Penedo
Traipu e Penedo marcaram
minha formação e delas guardo recordações que me sensibilizam. Repito sempre de
memória: O tempo não para, para onde eu vou, ele me segue, traçando meu destino,
fascinante, imprevisível.
Nessa época, não havia escola secundária em Traipu, e os
adolescentes emigravam para a cidade de Penedo. "Quem desce de barco o rio
São Francisco, a poucos quilômetros de sua foz, tem a agradável surpresa de
avistar, sobre enorme penhasco, uma fileira de casas coloniais de variadas
cores, realçando sobre as águas verdes-amareladas do rio. É a cidade de Penedo,
uma das mais antigas do Brasil, fundada por Duarte Coelho Pereira, que lhe deu
esse nome, devido à sua situação geográfica. Perto do cais, destaca-se sobre o
casario antigo a bonita igreja de Nossa Senhora da Corrente, preciosa jóia da
arquitetura setecentista, com suas torres arredondadas e seu frontão
barroco".
Faço minhas essas palavras da amiga Nilza Megale, porque
assim vi Penedo nos idos da minha infância. Ali, aportei no navio Comendador
Peixoto, uma embarcação a motor de médio calado, que realizava semanalmente o
trajeto fluvial entre Penedo e Piranhas. Vim para Penedo a fim de fazer o curso
ginasial. As estradas para Maceió eram precárias. Assim, o rio era o grande
caminho, a via móvel dos ribeirinhos que buscavam complementos de instrução na
cidade de Penedo, conhecida como "capital civilizatória do baixo São
Francisco".
Já estávamos instalados nessa cidade, quando recebemos a
visita de parentes há muito tempo residentes no Rio de Janeiro. Fui incumbido
de passear de canoa com um jovenzinho carioca, recém-chegado. Ao voltar todos
queriam saber se ele havia gostado da pequena viagem. A resposta foi breve e
clara: "gostei, mas estranhei os marinheiros (canoeiros) sem farda,
descalços, sem boné...".
A herança
religiosa
Em um lar cristão
tradicional, na cidade de Penedo, onde fiz os estudos do antigo 1° grau, as
quintas e sextas-feiras da Semana Santa eram motivo de
respeito conforme os ensinamentos religiosos.
Numa quinta-feira da Semana
Santa, já não recordo o ano, fui sorteado, entre os ginasianos, para participar
da cerimônia católica do "lava-pés", em que o Bispo lavava os pés de
12 crianças que representavam os apóstolos de Cristo. Esse sorteio provocou
estranha agitação em nossa casa. Minha mãe, ciosa dos princípios higiênicos,
achou que meus pés de jogador de futebol de rua eram sujos, maltratados e não
estavam condizentes com esse ato religioso. Coitado de mim. Uma semana de
suplício por conta: suspensão dos jogos de rua e, diariamente, obrigado a lavar
os pés várias vezes com pedra-sabão; eles quase viraram espelho.
No grande dia, na igreja, calor
sufocante, metido em uma veste talar, aguardei o início da cerimônia. O bispo
aproximou os lábios de meus pés. Um arrepio percorreu meu corpo; a herança
religiosa falava mais alto.
A doação
“Quando partimos no vigor dos anos, / Da vida pela
estrada florescente,/As esperanças vão conosco à frente, / Vão ficando atrás os
desenganos!.../ Eu e o Rui, meu irmão, recitávamos esses versos do Padre
Antonio Thomaz, em nossa adolescência e juventude. Esperanças e bom astral eram
a tônica de nossos entusiasmos juvenis. Se a juventude não é apenas uma fase de
vida, e sim, um estado de espírito tangido pelo sabor da aventura e da vontade
de vencer, nós estávamos certos quando cultivávamos expectativas positivas de
futuro.
Minha
mãe contava uma história poética que tem sido transmitida de geração a geração,
cujo título é “Doação”. Não se conhecem o autor, a origem e o ano em que foi
publicada. Faz parte da crônica oral das famílias, contou-me minha mãe.
Decorei-a, e anos mais tarde, ensinei-a às minhas filhas, mantendo a tradição É
uma historieta cheia de simbolismo, emoção e sentimento. Vamos conhecê-la.
“Amigo, faze o bem, esse prazer compensa a maior
recompensa. Aqueles frutos saborosos que o teu vizinho colhe, às vezes, a
cantar, custaram, com certeza, o trabalho de alguém que já sabia que nunca em
sua vida os colheria, mas nem por isso deixou de plantar”. Minha mãe repetia
que essa historieta deveria servir de modelo em nossa vida.
Um eterno
retorno
Recentemente, voltei à cidade de Penedo. Cada vez que
volto a Penedo repito um roteiro de sentimento e de recordações, ao visitar
ruas, praças, igrejas e locais que povoaram minha infância e adolescência. São
muitas lembranças guardadas com carinho nas gavetas de minha memória. Na rua do
Rosário, continua intocada a residência do Monsenhor José Medeiros, Monsenhor
Medeiros como era conhecido, um sacerdote dedicado às letras, ao ensino e à
religião. Dele herdei o nome de batismo e o estímulo à leitura dos clássicos da
literatura brasileira. Foi exigente comigo e com meu irmão Rui Medeiros: era
obrigatória a leitura e compreensão de textos, que posteriormente deveriam ser
repetidos para ele. Muito aproveitamos com esse método que ele utilizava.
O
encaminhamento para medicina e os livros
Meu tio, o Monsenhor Medeiros, que sabia de meu interesse
em realizar o curso de Medicina, dizia que medicina é, antes de tudo, a ciência
do homem. Para ser um bom médico, seria necessário compreender a natureza
humana, abeberando-se na cultura geral e nos conhecimentos humanísticos.
Acrescentava: “Não
existe medicina sem cultura e sem filosofia”. De filosofia, nem imaginava o que
seria; de cultura, supunha livros e mais livros e a estante da residência do
Monsenhor Medeiros (tio do professor Medeiros Neto e meu tio) constituíam um desafio.
Aprendi a amar os livros. A biblioteca de Penedo era o refúgio dos fins de
tarde. E meu primeiro encontro foi com Monteiro Lobato: “Narizinho arrebitado”,
“O Saci Pererê”, “Caçada de Pedrinho” e Emília, Dona Benta e Tia Anastácia, entes
que povoaram minha imaginação.
Mas, devorador de
livros, percorri – na biblioteca – obras valiosas: de Érico Veríssimo a Jorge
Amado, de Machado de Assis a Eça de Queiroz, e tantos, tantos outros,
desfilaram nos anos de minha permanência em Penedo.
Hoje, minha maior lembrança
é o Rio São Francisco: canoas que dependiam do vento; minha linha e meu anzol
que fisgavam peixes pequenos e grandes; o plantio do milho em 19 de março, dia
de São José (chovia nesse dia); as festas coloridas de Bom Jesus dos
Navegantes.
Se recordar é reviver,
eu vivo as alegrias dessas lembranças.