Victor Mélo
- Jornalista, coordenador do GloboEsporte.com em
Alagoas
Eu ainda me pergunto quando foi a
primeira vez que ouvi o nome da doença. Sei que foi nas primeiras trovoadas de
janeiro, mas não lembro bem se dei alguma importância.
Vi em filmes, e concordo, que só
podemos expulsar os demônios, principalmente os nossos, se chamá-los pelo nome.
Não tinha nem ideia do mal que o vírus poderia causar. Normalmente, esses casos
aparecem e somem rapidamente. De qualquer forma, no fim de janeiro, viajei
preocupado para Minas, coloquei álcool em gel nas mãos e passei a confiar numa
resposta rápida da ciência. Ela não veio.
Sei que a pandemia ficou cada vez
mais perto durante o carnaval, quando a Covid-19 chegou à Itália. Depois, o avanço
foi rápido, barulhento e mortal.
A partir do primeiro caso em
Alagoas, o medo fez a rotina levar um tranco. Medo de perder o tempo que nos
resta. Medo de deixar as coisas por fazer. O medo de tudo perder o sentido.
A rotina, nossa rede de proteção,
deixou de existir por volta de março e tivemos que medir, dali pra frente, cada
passo com cuidado. Sabe a corda-bamba? Pois é.
No último dia antes de iniciar a
quarentena, meus movimentos foram mais lentos. No trabalho, o tempo passou a
correr diferente. Foi estranho.
Sabia, por dentro, que a rotina
seria estilhaçada. Lembro que arrumei a minha gaveta como quem se despede de um
velho amigo. Confesso que não sei nem como ela está hoje. Provavelmente, cheia
de certezas mofadas.
No caminho do trabalho para casa,
dia 19 de março, vi as cores mudarem. As luzes, na minha cabeça, se apagavam
quando o carro passava. Para trás, ficaram apenas os sinais fechados.
Diferente, abri, enfim, o portão da frente de casa. A dúvida atravessou a sala
antes de mim. Não foi fácil dormir naquela noite.
Nos primeiros dias, tive muita
dificuldade para organizar as ideias. Não sabia escolher direito nem a cadeira
para trabalhar. Precisava, antes de qualquer coisa, aprender a lidar com a
incerteza. Em casa, dividi a quarentena e tantos medos com minha esposa e
enteada. No início, não dava para prever como seria o dia seguinte. Pode
imaginar?
As duas primeiras semanas foram
as mais complicadas. A adaptação ao novo às vezes come parte do nosso
cérebro.
No Whatsapp, estouravam quase
todos os dias as notícias sobre a morte de amigos ou de pessoas próximas deles.
Essa proximidade deu rostos à pandemia. Números distantes logo se transformaram
em pessoas, nomes, e isso abriu um clarão no peito. Mesmo assim, precisava
trabalhar.
Entre maio e junho, veio a onda
enorme de casos em Alagoas, rompendo tudo, e trouxe com ela o pior das pessoas.
Na lama. A negação e a insensatez de tanta gente me implodia por dentro. Covas
comuns foram abertas nos cemitérios de Maceió.
Eu precisava fazer chegar às pessoas
informações que valessem vidas. Tinha que me concentrar nos exemplos. O
futebol, pensei, seria uma lanterna para muita gente. Ele cumpre essa função no
Brasil. Clareia os caminhos.
No trabalho, o recolhimento virou
instinto de sobrevivência. Saí de casa apenas uma vez entre março e julho. Fui
ao supermercado, me espantei com o negacionismo nos rostos e voltei mais triste
para o isolamento.
Passei a confundir casa com
trabalho. Mudei também, aos poucos, o modo de pensar a pauta. No esporte, com
tudo parado por mais de três meses, o jeito foi voltar no tempo. Sim, essa foi
a saída do labirinto. Eu e os colegas pensamos em contar histórias que
explicassem a importância do esporte na vida dos alagoanos. Relatos sobre toda
essa construção.
A internet, tão jovem, precisava
de memória sobre fatos marcantes das décadas de 30,40, 50... Escrevi alguns
especiais em busca de encantamento. O tema de Cinema Paradiso, de Ennio
Morricone, ajudava a compor o ambiente na nova sala de trabalho. Música
inspira.
O confinamento de atletas foi
outro tema importante. Um treino solitário, uma corrida limitada, na varanda,
exigiam reflexões de quem vive para competir. Cadê o espaço? Não queríamos
desempenho, queríamos sentimento.
O diário dos jogadores espalhados
pelo mundo também nos interessava. Alagoanos contaram, dos quatro cantos, como
culturas tão diferentes enfrentaram a pandemia.
É instigante ainda acompanhar o
compasso do tempo para pessoas que se movem mais rápido. O relógio dos atletas
tem ponteiros inquietos. Desde março, eles perderam o ritmo, a forma e adiaram
até o projeto olímpico. Tóquio, em silêncio, teve que esperar.
Esses relatos e imagens
compuseram nosso mosaico. Livraram, por minutos que fossem, a imaginação dos
leitores da rotina hostil que se impôs na quarentena.
Em julho, veio a flexibilização
do isolamento social em Alagoas. Achei muito cedo. O caminho estreito da volta
tem cacos de vidro espalhados. Depois de quatro meses de confinamento, ainda
guardo todas as incertezas do início.
Nunca pensei que, no mito de
Platão, a caverna fosse mais atraente do que o mundo real. Hoje, antes do
anúncio do remédio, afirmo aos prisioneiros que se acham livres: prefiro não
deixá-la.
Quem é
Formado pela Universidade Federal
de Alagoas (Ufal), Victor Mélo iniciou a carreira no jornalismo em 1999. Foi
editor de esportes de O Jornal-AL por quase dez anos, ganhou prêmios, foi
subeditor geral e fez trabalho de correspondente e de assessoria política em
Minas Gerais. Assinou ainda colunas sobre esportes, economia e política, montou
um blog e integrou a equipe do site Mais.AL. No fim de 2012, assumiu o cargo de
coordenador do GloboEsporte.com em Alagoas. Implantou e desenvolveu o portal no
estado, cobriu a Copa do Mundo de 2014 e foi editor também do Globo Esporte no
Rio de Janeiro, durante as Olimpíadas de 2016. Aos 42 anos, continua no portal
da Globo, gosta de escrever e nunca deixou de acreditar no jornalismo ético,
responsável e transformador.
Memória da Pandemia
nas Alagoas
Elen Oliveira
Quando eu ingressei na Ufal, em 1991, o professor Luiz Savio
de Almeida já era uma lenda. Nos corredores do antigo CHLA, hoje ICHCA
(Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Arte), ele se postava a dar
conversa a quem se aproximasse com a mesma atenção que dedicava a palestras,
mesas de discussão e entrevistas. Entre 2008 e 2009, trabalhamos junto no
antigo O Jornal, onde ele propôs a abertura de um espaço dialógico da
universidade com a sociedade, por meio da publicação de artigos acadêmicos.
Entusiastas do debate e da pluralidade, o então diretor, Gabriel Mousinho,
e o então editor-geral, Roberto Tavares, cederam espaço ao Espaço,
nome dado ao suplemento quinzenal publicado entre setembro de 2008 e 2012,
quando o veículo foi extinto. À época editora-executiva e de Suplementos,
eu editei a publicação até 2009 com Alexsandra Vieira, que era editora do
caderno de Cultura, o Dois. Reformulado, tornou-se posteriormente Contexto,
no jornal Tribuna Independente, até materializar-se em Campus, o
suplemento semanal que é veiculado no jornal O Dia e reproduzido n’o Campus do Savio, o blog de múltiplas
falas com o qual colaboro esporadicamente.
O longo parágrafo de introdução foi escrito para contar como
chegamos a Jornalistas e a Pandemia, proposto pelo professor Savio
como parte do projeto Memória da Pandemia nas Alagoas, que ele está
a construir desde abril e que reúne relatos vindos de representantes dos povos
indígenas, artistas, intelectuais e integrantes de áreas diversas sobre o atual
momento. Ele propôs, e eu aceitei, que organizássemos uma seção para compor
essa construção feita a muitas mãos. “Quero deixar um imenso painel para um
pesquisador no futuro”, informa o pesquisador, que há tempos constrói
fundamental acervo da memória sobre Alagoas.
O blog pode discordar no todo ou em parte do material que publica