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quarta-feira, 22 de julho de 2020

Victor Mélo. Um tempo de certezas mofadas



Um tempo de certezas mofadas

 Victor Mélo
- Jornalista, coordenador do GloboEsporte.com em Alagoas


Eu ainda me pergunto quando foi a primeira vez que ouvi o nome da doença. Sei que foi nas primeiras trovoadas de janeiro, mas não lembro bem se dei alguma importância.

Vi em filmes, e concordo, que só podemos expulsar os demônios, principalmente os nossos, se chamá-los pelo nome. Não tinha nem ideia do mal que o vírus poderia causar. Normalmente, esses casos aparecem e somem rapidamente. De qualquer forma, no fim de janeiro, viajei preocupado para Minas, coloquei álcool em gel nas mãos e passei a confiar numa resposta rápida da ciência. Ela não veio.

Sei que a pandemia ficou cada vez mais perto durante o carnaval, quando a Covid-19 chegou à Itália. Depois, o avanço foi rápido, barulhento e mortal.

A partir do primeiro caso em Alagoas, o medo fez a rotina levar um tranco. Medo de perder o tempo que nos resta. Medo de deixar as coisas por fazer. O medo de tudo perder o sentido.

A rotina, nossa rede de proteção, deixou de existir por volta de março e tivemos que medir, dali pra frente, cada passo com cuidado. Sabe a corda-bamba? Pois é.

No último dia antes de iniciar a quarentena, meus movimentos foram mais lentos. No trabalho, o tempo passou a correr diferente. Foi estranho.

Sabia, por dentro, que a rotina seria estilhaçada. Lembro que arrumei a minha gaveta como quem se despede de um velho amigo. Confesso que não sei nem como ela está hoje. Provavelmente, cheia de certezas mofadas.

No caminho do trabalho para casa, dia 19 de março, vi as cores mudarem. As luzes, na minha cabeça, se apagavam quando o carro passava. Para trás, ficaram apenas os sinais fechados. Diferente, abri, enfim, o portão da frente de casa. A dúvida atravessou a sala antes de mim. Não foi fácil dormir naquela noite.

Nos primeiros dias, tive muita dificuldade para organizar as ideias. Não sabia escolher direito nem a cadeira para trabalhar. Precisava, antes de qualquer coisa, aprender a lidar com a incerteza. Em casa, dividi a quarentena e tantos medos com minha esposa e enteada. No início, não dava para prever como seria o dia seguinte. Pode imaginar?

As duas primeiras semanas foram as mais complicadas. A adaptação ao novo às vezes come parte do nosso cérebro.  

No Whatsapp, estouravam quase todos os dias as notícias sobre a morte de amigos ou de pessoas próximas deles. Essa proximidade deu rostos à pandemia. Números distantes logo se transformaram em pessoas, nomes, e isso abriu um clarão no peito. Mesmo assim, precisava trabalhar.

Entre maio e junho, veio a onda enorme de casos em Alagoas, rompendo tudo, e trouxe com ela o pior das pessoas. Na lama. A negação e a insensatez de tanta gente me implodia por dentro. Covas comuns foram abertas nos cemitérios de Maceió.

Eu precisava fazer chegar às pessoas informações que valessem vidas. Tinha que me concentrar nos exemplos. O futebol, pensei, seria uma lanterna para muita gente. Ele cumpre essa função no Brasil. Clareia os caminhos.

No trabalho, o recolhimento virou instinto de sobrevivência. Saí de casa apenas uma vez entre março e julho. Fui ao supermercado, me espantei com o negacionismo nos rostos e voltei mais triste para o isolamento.

Passei a confundir casa com trabalho. Mudei também, aos poucos, o modo de pensar a pauta. No esporte, com tudo parado por mais de três meses, o jeito foi voltar no tempo. Sim, essa foi a saída do labirinto. Eu e os colegas pensamos em contar histórias que explicassem a importância do esporte na vida dos alagoanos. Relatos sobre toda essa construção.

A internet, tão jovem, precisava de memória sobre fatos marcantes das décadas de 30,40, 50... Escrevi alguns especiais em busca de encantamento. O tema de Cinema Paradiso, de Ennio Morricone, ajudava a compor o ambiente na nova sala de trabalho. Música inspira.

O confinamento de atletas foi outro tema importante. Um treino solitário, uma corrida limitada, na varanda, exigiam reflexões de quem vive para competir. Cadê o espaço? Não queríamos desempenho, queríamos sentimento.

O diário dos jogadores espalhados pelo mundo também nos interessava. Alagoanos contaram, dos quatro cantos, como culturas tão diferentes enfrentaram a pandemia.

É instigante ainda acompanhar o compasso do tempo para pessoas que se movem mais rápido. O relógio dos atletas tem ponteiros inquietos. Desde março, eles perderam o ritmo, a forma e adiaram até o projeto olímpico. Tóquio, em silêncio, teve que esperar.

Esses relatos e imagens compuseram nosso mosaico. Livraram, por minutos que fossem, a imaginação dos leitores da rotina hostil que se impôs na quarentena.

Em julho, veio a flexibilização do isolamento social em Alagoas. Achei muito cedo. O caminho estreito da volta tem cacos de vidro espalhados. Depois de quatro meses de confinamento, ainda guardo todas as incertezas do início.

Nunca pensei que, no mito de Platão, a caverna fosse mais atraente do que o mundo real. Hoje, antes do anúncio do remédio, afirmo aos prisioneiros que se acham livres: prefiro não deixá-la.

Quem é 

Formado pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Victor Mélo iniciou a carreira no jornalismo em 1999. Foi editor de esportes de O Jornal-AL por quase dez anos, ganhou prêmios, foi subeditor geral e fez trabalho de correspondente e de assessoria política em Minas Gerais. Assinou ainda colunas sobre esportes, economia e política, montou um blog e integrou a equipe do site Mais.AL. No fim de 2012, assumiu o cargo de coordenador do GloboEsporte.com em Alagoas. Implantou e desenvolveu o portal no estado, cobriu a Copa do Mundo de 2014 e foi editor também do Globo Esporte no Rio de Janeiro, durante as Olimpíadas de 2016. Aos 42 anos, continua no portal da Globo, gosta de escrever e nunca deixou de acreditar no jornalismo ético, responsável e transformador.

Memória da Pandemia nas Alagoas


Elen Oliveira 


Quando eu ingressei na Ufal, em 1991, o professor Luiz Savio de Almeida já era uma lenda. Nos corredores do antigo CHLA, hoje ICHCA (Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Arte), ele se postava a dar conversa a quem se aproximasse com a mesma atenção que dedicava a palestras, mesas de discussão e entrevistas. Entre 2008 e 2009, trabalhamos junto no antigo O Jornal, onde ele propôs a abertura de um espaço dialógico da universidade com a sociedade, por meio da publicação de artigos acadêmicos. Entusiastas do debate e da pluralidade, o então diretor, Gabriel Mousinho, e o então editor-geral, Roberto Tavares,  cederam espaço ao Espaço, nome dado ao suplemento quinzenal publicado entre setembro de 2008 e 2012, quando o veículo foi extinto. À época editora-executiva e de Suplementos, eu editei a publicação até 2009 com Alexsandra Vieira, que era editora do caderno de Cultura, o Dois. Reformulado, tornou-se posteriormente Contexto, no jornal Tribuna Independente, até materializar-se em Campus, o suplemento semanal que é veiculado no jornal O Dia e reproduzido n’o Campus do Savio, o blog de múltiplas falas com o qual colaboro esporadicamente.
 O longo parágrafo de introdução foi escrito para contar como chegamos a Jornalistas e a Pandemia, proposto pelo professor Savio como parte do projeto Memória da Pandemia nas Alagoas, que ele está a construir desde abril e que reúne relatos vindos de representantes dos povos indígenas, artistas, intelectuais e integrantes de áreas diversas sobre o atual momento. Ele propôs, e eu aceitei, que organizássemos uma seção para compor essa construção feita a muitas mãos. “Quero deixar um imenso painel para um pesquisador no futuro”, informa o pesquisador, que há tempos constrói fundamental acervo da memória sobre Alagoas.
O blog pode discordar no todo ou em parte do material que publica



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