Um pouco da minha aldeia: o Menino do Rancho
Érica Lima
Jeripankó e estudante de Geografia/UFAL, Campus Sertão
Quando
a Aldeia Jeripankó se formou, herdou os rituais de sua matriz ( Pankararu),
pois quando os indígenas que vieram da Aldeia Pankararu e formaram a Jeripanko,
eles começaram a praticar os mesmos rituais e os rituais foram importantes para a afirmação étnica do
povo perante o Estado. Foi a partir da
sua cultura que tivemos
forças para lutar e sermos reconhecidos como povo
indígena. Por estar associado às práticas religiosas e místicas, o ritual tem o
objetivo de estabelecer uma relação entre os seres humanos e os encantados. O
ser encantado é uma entidade que tem o poder de ajudar ou interferir em
questões no plano físico. O povo
acredita que um encantado foi uma pessoa que alcançou um alto grau de sabedoria,
tornando-se muito forte espiritualmente; então, essa pessoa em algum momento da
sua morte se encanta e passa a ser uma energia que faz parte da natureza.
Os
rituais são a essência, a base, o que
transforma todos os indígenas na aldeia, em irmãos; eles unem o povo, por que,
inclusive, são feitos em coletivo, onde todos trabalham juntos, desde a
preparação até a finalização, ou seja: somente são possíveis serem realizados
com o trabalho do povo : todos juntos. Dentre os Jeripankó, temos o Menino do
Rancho, a Dança do Cansanção, a Flechada do Umbu, a Puxada do Cipó, além das
promessas pagas no terreiro. Todos são de extrema importância; cada um tem o
seu significado e são essenciais para a nossa vida, pois exercem a função de
proteger a Aldeia contra qualquer nocividade, seja doença, pragas, questões
econômicas e até políticas. Só basta as pessoas crerem e terem fé.
Cada
um dos rituais tem o seu modo de ser executado, a sua especificidade. Como exemplo, tem a Dança do Cansanção, a Flechada
do Umbu e a Puxada do Cipó, que são rituais diferentes, no entanto são
celebrados em uma única festa, a Festa do Umbu.
O ritual é realizado anualmente e tem como objetivo pedir proteção aos
seres encantados e a graça de ter um ano prospero. O pajé e outros chefes de
terreiro, médiuns, conseguem identificar se o ano será bom ou não através do
que acontece na festa, o resultado disso é a satisfação dos Jeripankós, pois
ficam mais calmos e com mais confiança para se arriscarem, principalmente em
relação à agricultura, pois se ocorreu tudo bem na Festa do Umbu, vai ser um
ano produtivo para tudo, inclusive para safra dos alimentos que o povo planta.
Os demais rituais do povo Jeripankó podem ocorrer durante o ano todo, só basta
alguém que deva alguma promessa um Encantado e resolva pagar; geralmente as
promessas são pagas aos sábados.
Dentre
eles, rituais, daremos, nesta matéria, um destaque para o Menino do Rancho, um
ritual especial, que representa um momento de luta e glória. De luta, porque os
Encantados vão lutar para conseguir a graça pedida pelos Jeripankós, que nesse
caso seria a cura de uma criança doente; e glória, porque eles foram contra
seres malignos para conseguir alcançar a cura da criança. Essa crença aumenta a
devoção do povo pelos Encantados, isso porque o ritual é especial, ele
demonstra que qualquer pedido feito com muita fé pode ser alcançado.
Esse
ritual acontece quando uma criança – em específico uma criança do sexo
masculino, isso porque é tradição que vem desde nossos antepassados e nada foi
mudado no decorrer do tempo – fica muito doente na aldeia, e é uma doença que
aparece repentinamente e sem nenhuma explicação, a qual médico algum consegue
curar ou explicar, pois sempre que são feitos exames a criança aparece saudável
nos resultados, o que leva os responsáveis desta criança a buscarem
os benzedores/curandeiros da aldeia para rezar nela.
Quando
os pais já conhecem bem como funciona esse meio espiritual, levam o menino
diretamente para os benzedores, e estes darão a decisão final, se a doença é
doença espiritual que dê para curar com reza e remédios do mato ou se é doença
de médico. Quando acontece esse último caso, os benzedores aconselham os pais a
levarem seus filhos para o posto de saúde, já quando se refere ao primeiro
caso, os benzedores rezam na criança, e quando é algo bem grave mesmo,
aconselham os pais da criança a “entregarem[i]”
o menino aos Encantados.
Por
conseguinte, os pais fazem uma promessa, prometem o menino a um Encantado
escolhido por eles, para que esse Encantado seja o guardião do seu filho, o
protegendo e curando da doença, caso contrário, a criança poderá morrer. Há outra
forma também em que ocorre o ritual, nesse caso, acontece quando uma mulher grávida
tem complicações no parto, sabendo que o filho que está para nascer é menino,
essa mulher pode fazer uma promessa, prometendo o seu filho a algum encantado no
qual ela tem devoção; ela promete levar o menino para o rancho caso eles
sobrevivam, tanto ele quanto a mãe. Quando alcançam a graça, na qual o menino
fica saudável, os pais marcam um dia e pagam a promessa em qualquer final de
semana.
Isso
tudo acontece porque o menino foi pego pelo “Bicho do Mato” ou “Caipora” como é popularmente conhecido, este
que ao ver algum menino que lhe desperte algum interesse tenta levar essa criança para
seu plano espiritual, para isso, ele leva a alma da criança e ela vai
desfalecendo até morrer, com isso o Caipora fica totalmente com a alma da
criança.
Desta
forma, quando os responsáveis do Menino o entregam para o encantado, ele vai em
busca da a alma do menino. O Encantado responsável pela criança, junto com seu
batalhão, vai atrás do Bicho do Mato; ao se encontrar com ele, trava-se uma
batalha pela alma da criança até algum sair vencedor; se o Caipora ganha, a criança morre e se o Encantado
vence, a criança volta a ficar saudável. Na maioria das vezes, os Encantados ganham.
Essa luta acontece no plano espiritual e se materializa na forma do ritual do
Menino do Rancho.
A
forma como acontece esse ritual é bem complexa, pois é necessário muito cuidado
para nada sair errado, pois caso dê algo errado, o menino poderá adoecer novamente. Sendo
assim, os pais do menino convidam outros participantes importantes na festa,
que são: a noiva e as madrinhas que
estarão junto com o menino. Os preparativos para o pagamento da promessa iniciam-se
com um outro ritual, porém, ele é mais reservado, somente para familiares: esse
ritual é o Trabalho de Mesa.. É nesse momento
em que o Encantado dono da festa diz os detalhes de como será paga a promessa,
concorda com o dia marcado; o que será necessário, é uma forma de assegurar que
tudo irá ocorrer bem e de acordo com o que foi proposto.
Logo
após, geralmente dois dias depois do Trabalho de Mesa, começa o Menino do Rancho;
a festa dura dois dias: começa em um sábado e perdura até domingo.
Inicia-se no sábado a noite, mas antes de entrarem no terreiro, todos os
participantes são obrigados a tomarem um
banho de ervas que serve para purificação do corpo e para se concentrarem
melhor; após isso, o pajé leva os Praiás
(são a representação material do Encantado) para o terreiro (local onde
acontecem os rituais com os Praiás); lá eles dançam por algumas horas. Geralmente
ficam dançando até ultrapassar um pouco a meia noite; depois de um certo tempo,
todos vão embora descansar; os Praiás vão para o Poró (local sagrado onde ficam
guardados os Praiás) e o restante das pessoas para suas casas, pois no outro
dia começam os serviços bem cedo.
No
domingo de manhã, os Praiás vão buscar o menino que irá para o rancho na casa
dele; lá todos tomam o café e dançam em um terreiro improvisado pelo dono da
casa. Após feito o trabalho na casa do menino, todos vão para a casa da noiva,
tomam garapa e dançam, em seguida repetem o mesmo processo na casa das
madrinhas. Ao terminar tudo, os participantes vão para o terreiro principal,
onde ocorrerá o resto do ritual.
Dançam
no terreiro até o almoço ficar pronto; quando pronto, todos vão almoçar e após o
término do almoço irão descansar um pouco. Por volta das 15:00 horas, começa o
ápice da festa, que são as “peitadas”[ii]
no terreiro. Nesse meio tempo, os padrinhos, a noiva, as madrinhas, o menino e
os Praias dão voltas no terreiro ao som dos toantes[iii].
Esse processo é repetido nove vezes, ou seja, são três voltas dadas em torno do
terreiro a cada toante (música entoadas pelos cantadores), resumindo, são três
toantes. Na última volta quando
suspendem o toante, começa a correria.
Os
padrinhos correm com o menino enquanto são perseguidos pelos Praiás, estes tentam
de toda forma capturar o menino das mãos dos padrinhos, qualquer objeto que o
menino esteja carregando é válido (o chapéu ou o cordão de fumo), ao pegarem
esses objetos os Praiás vencem. Nesse momento, eles passam por cima de tudo,
não veem mais nada em frente que não seja o menino; a vontade e a fé em pegar a
criança é tão grande que os Praiás são capazes de fazer coisas absurdas para um
simples humano. Essa situação representa o plano espiritual: os Praias são os Encantados
e os padrinhos representam o Bicho do Mato, Caipora que tem em suas mãos a criança. Por
fim, quando a criança é pega pelos Praiás, a festa termina.
Desta
forma acontece um dos principais rituais do povo Jeripankó; para alguns, este é
o melhor, pois tem mais emoção, na hora das “peitadas” o pessoal que está
assistindo fica em êxtase, é como se a emoção sentida pelo Praias atravessassem
suas vestes e fluíssem para o corpo de todos que estão assistindo ao redor do
terreiro; nesse momento, todos os problemas somem. Tudo que o povo quer é
aproveitar cada segundo do ritual.
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Essa imagem mostra o momento no qual os praias e padrinhos dançando estão no terreiro improvisado na casa do menino, foram buscá-lo para começar o ritual, além disso, foram tomar o café da manhã. |
Estes são os folguedos, que são as vestes dos praias guardadas poró, estas vestes são produzidas com as fibras do caroá (uma planta da caatinga que fornece um tipo de fibra bem forte). |
A imagem está mostrando o momento final do ritual, quando um dos praia pegam o menino. E nessa hora o pajé está entregando o menino para o praia que conseguiu pegar a criança |
Está
imagem mostra o menino que vai para o rancho sendo acompanhado pelo padrinho,
que irá correr com ele (pois ele é pequeno e não pode correr sozinho, é
perigoso), e também do Praiá que é seu dono.
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