A
pandemia, o outro e eu
Luciano Araújo de Castro
Não
seria exagero dizer que testemunhei o mundo mudar no dia e lugar onde tudo
começou.
Depois
de semanas ininterruptas de estudos em Lisboa, minha esposa e eu planejamos
aproveitar um feriado para regressar à Itália, país de nossa lua de mel, agora
com nossas crias. Aliando turismo e aprendizado do italiano, retornaríamos de
lá com histórias, uns quilos a mais, vinhos e livros jurídicos na bagagem.
Nada
disso aconteceu.
Desembarcamos
na Lombardia em 22 de fevereiro de 2020. No aeroporto, uma recepção por agentes
trajados tal qual astronautas para medição da temperatura corporal dos
passageiros. Até então, ninguém esperava ser recebido na Bota assim. Sabíamos que havia um vírus causando preocupações na
China, mas ali, naquele momento, percebemos que o perigo estava próximo. À
noite, o noticiário italiano atualizava de hora e hora o número de infectados e
mortos e isso era quase tão assustador quanto as cifras em si. O governo
italiano já decretara o isolamento de algumas cidades. Decidimos retornar no
dia seguinte. Compramos as últimas quatro passagens para Lisboa.
Foi
um voo diferente. Poucos sem máscaras, provavelmente porque não as conseguiram.
Era um fim de tarde aprazível, mas quase não se conversou, mesmo quem se
conhecia. Os olhos arregalavam-se e as orelhas abriam-se ao som de uma leve tossida,
agora prenúncio de ameaça. Nenhum de nós poderia adivinhar, mas além da encantadora
Itália, era o próprio o mundo como o vivenciávamos que ia ficando para trás.
Dali
a alguns dias não restou outra alternativa aos humanos a não ser aceitarmos a
existência de um novo, grave e global problema, causado por um vírus do qual
muito pouco conhecíamos. Conforme acontece de tempos e tempos, uma realidade
inesperada impusera-se uma vez mais, fazendo pouco caso de projetos, cálculos
e, há que se admitir, da velha soberba de esquecermos de nossa irremediável
transitoriedade.
E
assim foi que presenciei, pela primeira vez nos meus 40 anos, na quase
velocidade de um filme, cenas outrora de pura ficção: séries de caminhões
transportando caixões; estádios e shoppings
transformados em hospitais; aeroportos fechados mundo afora; crianças, jovens e
adultos sem aulas; Veneza vazia de gente, mas com golfinhos; rostos mascarados proliferando
por todos os lados.
Permito-me
acrescentar à essa lista um acontecimento do meu micromundo, revelador do novo
momento: os mesmos idosos desconhecidos que antes acorriam para tocar e abraçar
minhas filhas agora atravessavam a rua ou evitavam dividir o elevador. Foi algo
doloroso no início (imagino que para eles idem), porém os compreendi totalmente,
afinal, faziam parte do grupo de risco do COVID e as crianças eram a maioria
dos sortudos infectados assintomáticos.
Na
nossa humana ânsia de definir o porvir, os dias de 2020 são em parte consumidos
em especulações de como será o pós-COVID. Espero que haja mais acertos que
erros. Para minha paz (e alheia também), não me arrisco nesse exercício.
Prefiro compartilhar uma lição crescentemente impregnada no meu espírito, extraída
de tudo que ora nos ocorre: necessitamos do “outro”! É curioso isso porque,
neste primeiro quarto de século, a voz do “outro” incomoda profundamente e o
medo dele faz vencer eleições e pôr em xeque um sonhado projeto de união entre
nações.
Por
que as ruas vazias de Nova Iorque e as vielas desertas de Veneza chocam tanto?
Porque falta ali alguém que não eu mesmo. Ninguém anda desejoso de transitar naqueles
locais sozinho. Qual a razão de, havendo shows
gravados na internet, aguardar-se ansiosamente o dia e horário das lives? Provavelmente por ser
reconfortante saber que existe gente do outro lado, vivos comigo. Por que não é
suficiente ficar em casa com as pessoas que nos são mais próximas? Não seria a
falta do diferente a explicação? E, a propósito, não é unicamente a conduta do
outro que, somando-se à minha, permitirá a contenção do vírus enquanto não
chega a vacina ou o remédio? Por fim, não é a ausência dos demais que tem
feitos os velórios tão mais tristes?
Não
sei o caro o leitor que me acompanhou até aqui, mas, de minha parte, quando
vier o pós-COVID, se eu for um dos agraciados de lá estar, eu quererei mais é
ver, ouvir e vivenciar o outro, esse alguém que tanto me terá faltado.
Projeto Memória da
Pandemia nas Alagoas
Coordenação
Luiz Sávio de Almeida
e José Carlos Silva de Lima
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ou não, em parte e no todo, com a matéria publicada