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terça-feira, 26 de maio de 2020

José Vieira da Cruz* . ENTRE VERDADES, LIBERDADES E ACUSAÇÕES: MAIS UMA GOTA D'ÁGUA



ENTRE VERDADES, LIBERDADES E ACUSAÇÕES: MAIS UMA GOTA D'ÁGUA


José Vieira da Cruz*


Os desafios do presente, ao menos em parte, podem ser melhor compreendidos quando os situamos em relação ao passado e a dinâmica política, social e econômica que os envolvem. Dentro desta perspectiva, os acontecimentos da última sexta-feira, 22 de maio de 2020, sacudiram, para não dizer inundaram, o turbilhão de incertezas do cenário político brasileiro. Desta feita, o desdobrar das tensões está centrado na repercussão de partes do vídeo da reunião ministerial ocorrida em 22 de abril do corrente. A autorização para exibição do vídeo, por Celso de Mello, ministro decano do Supremo Tribunal Federal (STF), é parte dos desdobramentos do processo relativo as denúncias do ex-ministro Sérgio Moura de que o Presidente da República teria praticado crime de responsabilidade ao tentar interferir no comando da Polícia Federal.

Não obstante o impacto das falas divulgadas, menos pelos palavrões e mais pelos conteúdos explicitados, não se sabe ainda a extensão das consequências que o conteúdo dessa reunião terá para o citado processo e para a política nacional. A respeito, persiste nas redes sociais e em protestos de rua – ainda que de modo cada vez mais reduzido, com argumentos frágeis e posturas extremistas –, uma certa base de apoio ao governo, mantida animada e em ritmo de palanque eleitoral.  Esta postura política, não desarmada pós eleições de 2018, mantém em mira as eleições presidenciais de 2022 e tensiona as relações institucionais com o STF, o Congresso Nacional, a imprensa, a oposição e com aqueles que o governo denomina como adversários: críticos, antigos aliados, grupos de esquerda e a oposição em geral. Amparado por essa compreensão e estratégia o atual grupo político que administra o país trata todos que não o apoiam como inimigos internos, o conhecido “nós” contra “eles”.

Faço aqui um parêntese para lembrar de um acontecimento histórico retratado por Euclides da Cunha, em “Os Sertões”, publicado em 1902. No qual o autor descreve a Guerra de Canudos, embate entre militares contra civis, ocorrido no Sertão da Bahia, entre 1896-1897. O mencionado conflito, após quatro expedições militares, terminou com o massacre de milhares de pessoas que buscavam terra, cidadania e dignidade, mas que na época foram descritos como fanáticos, agitadores e sediciosos. A respeito, uma crônica da carnificina ocorrida no Arraial de Canudos, publicada em um jornal da época, cuja autoria se atribui a Machado de Assis, referiu-se a esse massacre com a significativa frase: “coitados eram brasileiros”. Mas não é preciso recuar tanto no tempo, a morte do menino João Pedro, 14 anos, negro, pobre, morador da periferia do município de São Gonçalo, no Rio Janeiro, assassinado, enquanto brincava com os primos em casa, por uma operação militar, no último 18 de maio, revela mais um contraste do legado de desigualdades herdada pela sociedade brasileira. Na guerra do “nós” contra “eles”, ideologias, símbolos e discursos, em lugar de compreender, podem justificar o ódio, a injustiça e o genocídio, tanto no campo quanto nas cidades. Uma vida é uma vida, e enquanto tal não pode ser banalizada.  Deste modo, sejam jovens ou idosos, ricos ou pobres, moradores de condomínios, favelas ou de ruas, seja por conta de doenças negligenciadas, saturamento do sistema de saúde ou pandemias descontroladas, todo(a)s têm direito à vida.

Neste sentido, é importante compreender que a sociedade brasileira tem enfrentado diferentes conflitos, disputas e antagonismos. Entretanto, reduzir essas tensões a dualidade “nos” contra “eles”, seja em tempos de ditaduras seja em tempos de “incompreensões democráticas”, alimenta o ódio, a violência, o revanchismo e toda forma de embates, como expresso na infeliz frase, dentre outras: “já colocamos uma granada no bolso do inimigo”, proferida na fatídica reunião ministerial em relação aos servidores públicos. Enfim, tratar o outro, o diferente e aquele que diverge como inimigo, é uma solução simplista, antidemocrática, antiliberal, antissocial, bélica e desumana. E, como tem sido frequentemente evocado, por motivos outros, é significativo, em tempos de pós-verdades, o versículo de João 8:32, “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. O problema central é que verdade cada um decide aceitar.

Voltando a reflexão quanto aos impactos suscitados pelo mencionado vídeo, observam-se posições de apoio e de rejeição a seu conteúdo e, sobretudo, dúvidas quanto ao alcance de suas consequências jurídicas, econômicas e políticas. Alguns noticiários e postagens nas redes sociais parecem cautelosos quanto aos efeitos e notam que o referido vídeo revela mais elementos para tensionar o já turbulento cenário sanitário, político e econômico do país. Deste modo, de uma forma ou de outra, o conteúdo da infausta reunião de 22 de abril deve suscitar outras discussões, debates e polêmicas.

Em meio a essa tensão política, o agravamento da pandemia e da crise econômica colocam para a sociedade discussões sobre a dignidade humana, a democracia e soberania nacional. Frente a este panorama os movimentos que a representam a sociedade – políticos, partidos, igrejas, sindicatos, corporações, associações, imprensa, movimentos sociais, coletivos culturais, redes sociais e cidadãos de um modo geral –, precisam ampliar o seu olhar em relação ao Brasil. Uma sociedade organizada, soberana e que se autoavalia precisa de lideranças e de projetos políticos. Mas tantos as lideranças quanto os projetos políticos devem ter como horizontes a dignidade humana, as liberdades democráticas e o desenvolvimento sustentável, ético e socialmente responsável. Evidentemente a realidade nem sempre está próxima do ideal, do desejado e do esperado. E, como sabemos, ela, a realidade, com sua dinâmica, complexidade e ritmo, nem sempre se encaixa nas previsões, projeções e prescrições de dogmas, discursos e teorias. Contudo, afasta-se destes princípios – como a defesa da dignidade humana, da cientificidade, da liberdade e da democracia, já mencionados –, é flertar com a intolerância, com a injustiça social, com o genocídio e com a banalização da vida.

Assim, ao escrever esta reflexão sobre mais uma gota d’água no atual cenário político brasileiro, espero ter reforçado a percepção da necessidade de coesão, solidariedade e altruísmos da sociedade na construção de um projeto em defesa da economia nacional, da ciência, do meio ambiente, da ética, da democracia, da tolerância e da vida. 

* Professor da UFAL, Doutor em História pela UFBA, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE) e da Academia Alagoana de Educação (ACALE).

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