ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA DE ALAGOAS: ETNIA, TRABALHO E
GÊNERO
Amaro Hélio Leite da Silva
Por que uma
Especialização em História de Alagoas no Ifal?
A primeira graduação em história é relativamente recente em Alagoas, data de 1952, antes mesmo da criação da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), em 1961[1]. Entretanto, a pós-graduação é muito recente, tendo como marco os primeiros anos do século XXI, quando a Ufal criou duas pós-graduações Latu sensu (uma em História do Nordeste e a outra em História do Brasil – já extintas) e um mestrado em história em 2012 (um dos mais recentes do país) [2]. Já a Universidade Estadual de Alagoas (Uneal) criou, apenas em 2018, o primeiro curso de Especialização em História do Brasil, no agreste alagoano (no campus Palmeira dos Índios) e, em 2010, o curso de Licenciatura Indígena. Embora essas instituições tenham contribuído, ao longo desses anos, para formação de especialistas na área de história, ainda é grande a carência de instituições formadoras de profissionais pós-graduados em Alagoas, sobretudo no que diz respeito às especificidades sociais, culturais e históricas da nossa formação, em especial, a história de Alagoas.
Já o Instituto Federal de Alagoas (Ifal), embora tenha surgido do Centro Federal de Educação Tecnológica – voltado apenas para o ensino médio e tecnológico (Cefet) –, quando é criado em 2008, passa a agregar também pesquisa e extensão, tanto no ensino médio-técnico-integrado como no ensino superior. A partir de então, o Ifal criou vários cursos de licenciatura, passando a formar professores nas áreas de humanas, exatas e ciências da natureza. Nesse contexto, a demanda por especialização desses profissionais aumenta muito no estado, sobretudo na área de humanas, tanto dentro como fora do instituto. Daí a importância do curso de Especialização em História de Alagoas, por considerarmos uma base fundamental para os egressos de licenciatura, sobretudo enquanto pós-graduação voltada à nossa formação espacial, étnica e nossas relações produtivas e de gênero; buscando contribuir para uma formação especializada desses profissionais, na prática pedagógica e na pesquisa.
Um projeto coletivo
A ideia de uma pós-graduação em História de Alagoas nasce de uma proposta do professor Luiz Sávio de Almeida ao Grupo de Estudo Memória, Tecnologia e Etno-história, do Instituto Federal de Alagoas (Gemteh-Ifal), formado, inicialmente, pelos professores Amaro Hélio Leite da Silva, Daniela Ribeiro de Bulhões Jobim e Maurício dos Santos Correia. Na verdade, o professor Sávio já havia estruturado a proposta em torno das linhas de pesquisa e do seu eixo teórico-metodológico. Coube a nós desenvolvê-la em forma de projeto de curso latu sensu, de acordo com as necessidades do grupo e do Ifal. Para tanto, formamos um comissão de professores especializados na área, dentro e fora do instituto.
Com o apoio da Coordenação de Ciências Humanas (campus Maceió) formalizamos a Comissão de Construção do Curso de Especialização em História de Alagoas, no ano de 2018, composta por docentes desta coordenação, além de outros campus e de outras instituições de ensino superior. Estes docentes atuam em várias áreas de estudo e pesquisa, a exemplo de história, geografia, sociologia, filosofia, educação, entre outros. Todos especialistas – inclusive com mestrado e/ou doutorado concluídos ou em fase de conclusão – nas suas áreas de atuação e nas disciplinas componentes da grade curricular do curso.
O projeto de Especialização em História de Alagoas é fruto de um trabalho coletivo, dialógico e participativo de todos os membros da Comissão, embora tenha sua base fundamental na proposta do professor Sávio de Almeida. Neste sentido, construímos uma proposta de pós-graduação latu sensu destinada a profissionais de educação básica (da rede pública estadual e federal), com carga horária de 360h distribuído em oito meses, na modalidade presencial. Ou seja, o curso visa capacitar professores e profissionais da educação a compreender a história de Alagoas, com ênfase em temas ligados a sociedade e a cultura do povo alagoano, a exemplo da afro-brasileira, indígena, periférica e de gênero.
Para tanto, buscaremos refletir sobre a formação do espaço, da história e da diversidade sociocultural de Alagoas, contribuindo para uma abordagem em história de Alagoas onde se reconheça e se valorize o protagonismo das diversas etnias e grupos periféricos formadores da nossa sociedade e cultura, especialmente indígenas, negras/os, proletárias/os e de gênero.
Desse modo, a partir de uma proposta pedagógica interdisciplinar no seio das Ciências Humanas, pensamos numa formação de professores para a abordagem qualificada das realidades históricas e contemporâneas do povo alagoano. Nosso propósito é oferecer referenciais conceituais-metodológicos para conhecimento da formação social e histórica de Alagoas, destacando as de temáticas da história e cultura afro-brasileira e indígena, bem como a dos grupos operários e periféricos da realidade alagoana. Desse modo, justificamos nossas linhas de pesquisa em três grandes eixos:
a) História e cultura dos povos indígenas e afro-brasileiros de Alagoas.
Entendemos que não há como estudar a história de Alagoas sem passarmos, necessariamente, pela história e cultura afro-brasileira e indígena. As histórias desses povos constituem a base formadora da nossa história e sociedade, mas, paradoxalmente, ainda é pouco conhecida ou tratada numa perspectiva do passado, carregado de estereótipos e preconceitos sociais e culturais; por isso, buscaremos contribuir para superação das concepções eurocêntricas, discriminatórias presentes no senso comum e no próprio espaço da vida acadêmica e escolar.
Conforme afirmamos em nosso projeto, “Nosso propósito é construir uma linha de pesquisa para o conhecimento da dinâmica histórica e cultural dos índios e negros de Alagoas, seu processo de resistência, sua diversidade, seus ritos e saberes”[3].
b) Trabalho, periferia e sociedade
O trabalho está na base estruturante da nossa formação econômica, social e cultural, enquanto ação humana que transforma a natureza e a si próprio, sem qualquer determinismo economicista ou qualquer ortodoxia marxista. Daí a necessidade de se estudar o nosso processo histórico de formação a partir do trabalho, analisando suas contradições econômicas e políticas, que levam a marginalização do trabalho assalariado. Ou seja, é uma linha de pesquisa que buscará compreender o processo de estabelecimento das hierarquizações sociais, a valoração da propriedade privada, os juízos de valor da sociedade alagoana ao longo da história e seus reflexos na organização da sociedade atual e na exclusão e resistências periféricas.
c) Poder, gênero e sociedade
A sociedade alagoana tem como fundamento de sua organização relações sociais de produção profundamente marcadas pela concentração de renda e de poder nas mãos das famílias tradicionais. Estas foram constituídas a partir da exploração do trabalho escravo, da concentração de terras e de capital, o que deu origem ao poder de mando senhorial exercido pela figura do patriarca – que geralmente era branco, senhor de escravo, de engenho, coronel, grande proprietário – que subjugava todos da “casa grande” e da “senzala”: lavradores, moradores, pobres, índios, negros e mulheres. Esta é a base da nossa formação colonial-capitalista e, consequentemente, das nossas relações sociais e de gênero.
É por isso, que esta linha de pesquisa terá como objetivo estudar as relações de gênero constitutivas das sociedades humanas, focando o olhar para o formato que elas assumem na sociedade capitalista e seus impactos para a especificidade das relações produtivas e culturais de/em Alagoas.
Marcos teóricos do curso
Percebe-se, então, que a história de Alagoas não se fez apenas de grandes fatos e heróis. É uma história que pode e deve ser “vista de baixo”, na perspectiva dos marginalizados pela sociedade e pela escrita. Parafraseando E. P. Thompson, na história oficial de Alagoas essa história emerge como problema que o governo tem de lidar (2001, p. 185). Segundo Sharpe, a “história vista de baixo” significa “compreender o povo no passado à luz de sua própria experiência e suas próprias reações a essa experiência” (1992, p. 42). Nesse sentido, consideramos necessário refletir melhor sobre a historiografia e a história do povo alagoano, destacando sobretudo as relações e o cotidiano do trabalhador, do índio, do negro, da mulher e da periferia – marcado pela resistência política e cultural, além das relações de gênero desiguais. Para tanto, estamos propondo o curso de especialização em história de Alagoas.
No livro Memórias das Ciências Sociais em Alagoas, já chamávamos atenção para o silêncio criado pelos clássicos da historiografia alagoana, que negavam qualquer protagonismo indígena na construção da nossa história. O índio era considerado primitivo, selvagem, parte de um passado distante. Alguns até o concebia, muitas vezes, “como matriz de nossa cultura, mas encoberto pelas ruínas das aldeias (extintas oficialmente pelo decreto de 1872); ou igaçabado nas guerras de conquistas dos ‘homens bons’ (do poder local); ou desaparecido completamente no processo de ‘integração’ ao mundo do branco” (SILVA, 2018, p. 24-25).
Esta mesma postura ocorreu com relação a história afro-brasileira em Alagoas, considerada apenas objeto de estudos e curiosidade dos folcloristas. A historiografia alagoana se limitava apenas aos estudos da escravidão e da resistência quilombola – como parte de um passado colonial e selvagem que deveria ser superado. As manifestações afro-brasileira eram tomadas como sobrevivência desse passado.
Embora a historiografia oficial manipule, silencie ou, simplesmente, acabe com as nossas raízes populares e étnicas, a sua história está ligada ao tipo de sociedade que é formada em Alagoas. A escrita da história de Alagoas não pode ser dissociada do lugar e contexto de sua produção. No caso da historiografia alagoana, ela nasce do poder e é escrita pelos seus representantes, os homens bons (ALMEIDA, 2004, p. 11). Em 1872, a Revista do Instituto Archelogico e Geographico Alagoano – que depois se transformaria em Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas – inicia o seu primeiro número chamando atenção para “as coisas do passado, memória de suas grandezas e justiça da gente de sua terra”[4], que por serem atos de “grandezas” e “justiça” não poderia ser a “gente das matas”, e sim a “gente do poder”. Essa revista funda uma tradição historiográfica que se mantém hegemônica até a década de setenta do século XX. Ela constrói a imagem de uma sociedade ideal, que não precisa das “gentes” indígenas, negras e pobres para existir.A sociedade senhorial das Alagoas tinha a necessidade de contar os seus feitos e amarrá-los a um modo de saber pretensamente “científico” e “verdadeiro”, a história. Segundo Maciel, esta forma de escrita marca a escrita do passado, que necessariamente vai falar do grande jogo de poder das elites, e que jamais pode ser ameaçado pelas formas alternativas de poder e saber do povo (MACIEL, 2004, p. 25-26).
Reafirmamos aqui a proposta do projeto do curso, pois acreditamos que possa “estimular os novos campos de pesquisa em história de Alagoas, fazendo com que os alunos conheçam as bases econômicas, sociais, culturais e étnicas da nossa formação histórica”[5]. Desse modo, estimulamos a curiosidade do estudo das ciências humanas – à pesquisa – contribuindo para aprimoramento e qualidade dos profissionais em educação e dos cursos do próprio Ifal, tanto no nível técnico integrado, quanto nas Licenciaturas. Enfim, é uma proposta que visa ir além daquelas já proposta nos projetos pedagógicos dos cursos de pós-graduação em história existentes no estado, apontando para um outro campo de conhecimento e atuação pedagógica, no âmbito da historiografia alagoana.
Neste sentido, concordamos com Dirceu Lindoso quando afirma que a escrita cumpre um papel fundamental na construção da sociedade. Símbolo da violência, a escrita transforma os “cárceres da vida em cárceres do texto” (LINDOSO, 2005, p. 34). Isto significa dizer que os silêncios da historiografia oficial de Alagoas ou sua conotação ideológica senhorial contribuem para a imagem de uma sociedade excludente e violenta, construindo uma escrita que – desde a Guerra dos Cabanos (1831-1835) e o estabelecimento do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (1872) – passou a excluir as “sociedades alternativas” ou “rebeldes” da história oficial, estabelecendo a diferença social entre aqueles que tem o poder de mando (e escrita da história) e os outros que tem o poder da resistência (LINDOSO, 2005, p. 48-49).
A ruptura com essa tradição historiográfica veio com os historiadores da Cabanada. Em A Guerra dos Cabanos, Manuel Correia de Andrade foi o primeiro a chamar atenção para a necessidade de estudo sobre a gente cabana de Alagoas e Pernambuco. Destacando protagonismo político dos cabanos, ele afirma que este movimento foi visto, durante muitos anos, “como revolta de bandido, de escravos fugidos do cativeiro e olvidada pelos estudiosos” (ANDRADE, 2008, p. 20). Este destaque é dado também por Décio Freitas em Os Guerrilheiros do Imperador, Dirceu Lindoso em Utopia Armada, Luiz Sávio de Almeida em Memorial Biográfico de Vicente de Paula, Marcus Carvalho em Hegemony and rebelion in Pernambuco (Brasil), 1832-1835, entre outros.
É na esteira desse movimento de ruptura que o Curso de Especialização em História de Alagoas pretende caminhar, contribuindo para a escrita de uma história plural, étnica e na perspectiva do trabalho. Em outras palavras, o curso rompe com a tradição historiográfica senhorial dos grandes temas e dos grandes personagens, e vai em busca da história do povo alagoano – das nossas matrizes étnicas, daqueles que vivem do trabalho –, que constrói as suas práticas sociais e representações culturais no cotidiano.
Para viabilizar essa perspectiva acadêmica, o curso foi pensado em cinco momentos: 1. Teórico, construído por teoria da história e temáticas ligadas à história de Alagoas; 2. Metodológico, destacando-se os métodos e técnicas de pesquisa em história; 3. Elaboração do projeto de pesquisa; 4. Orientação dos projetos de pesquisa; e 5. Seminário de qualificação[6].
Considerações finais
O curso de Especialização em História de Alagoas (no Ifal) não pretende dar conta dos problemas e carências teórico-metodológicas da historiografia alagoana (jamais poderia), mas buscará instigar e refletir sobre outros paradigmas de estudos e pesquisas dessa mesma historiografia, para além da história oficial-tradicional. É um olhar para a formação histórica dos espaços étnicos, periféricos e das relações produtivas e de gênero, que não são apenas físicos ou econômicos, são também simbólicos e políticos.
Referências
ALMEIDA, L. S. Dois Textos Exemplares. Maceió: FUNESA, 2004.
ANDRADE, Manuel Correia de Andrade. Um livro importante para o Nordeste. In: ALMEIDA, Luiz Sávio de. Memorial biográfico de Vicente de Paula, o capitão de todas as matas: guerrilha e sociedade alternativa na mata alagoana. Maceió: Edufal, 2008.
CAROATÁ, J. P. J. Crônica do Penedo; in ALMEIDA, L. S. de. (org.). Dois Textos Alagoanos Exemplares. Arapiraca: FUNESA, 2004.
INSTITUTO FEDERAL DE ALAGOAS. Projeto de Especialização em História de Alagoas. Maceió, 2018.
LINDOSO, D. A Utopia Armada: Rebeliões de pobres nas matas do Tombo Real. Maceió: Edufal, 2005.
MACIEL, O. B. A. Moreno Brandão e sua História de Alagoas: Alguns dados, uma outra leitura. In: BRANDÃO, Moreno. História de Alagoas. Arapiraca: EDUAL, 2004.
SILVA, Amaro Hélio Leite da. Memória das Ciências Sociais em Alagoas: índios, cotidiano e etno-história. Coleção Índios do Nordeste: temas e problemas. Maceió: Cba, 2018.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS. Instituto de Ciências Humanas Comunicação e Artes. História Licenciatura. Disponível em https://www.ufal.edu.br/unidadeacademica/ichca/graduacao/historia. Acessado em 25/11/2019.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS. Projeto Pedagógico do Curso de História – Licenciatura, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2015.
[1] Quando fazia parte da Faculdade de Filosofia de Alagoas, criada por Getúlio Vargas em 1950. Fonte: www.ufal.edu.br. Acesso em 25-11-2019.
[2] UFAL. Projeto Pedagógico do Curso de História – Licenciatura, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2015, p. 9. Há registro de outros cursos de história em instituições privadas de ensino, a exemplo do Centro de Estudos Superiores de Maceió (CESMAC), pelo menos até os anos 1990, mas sem muita regularidade – pois dependia de determinada quantidade de matrículas para o seu funcionamento –, o que levou a sua extinção.
[3] IFAL. Projeto de Especialização em História de Alagoas. Maceió, 2018.
[4] CAROATÁ, José Prospero Jehovah da Silva. Revista do Instituto Archeologico e Geographico Alagoano. Maceió, 02.12.1872, nº 1, p. 01.
[5] IFAL. Projeto de Especialização em História de Alagoas. Maceió, 2018.
[6] IFAL. Projeto de Especialização em História de Alagoas. Maceió, 2018.