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sábado, 25 de abril de 2020

Memória da Pandemia nas Alagoas (XI): Maria Augusta Tavares. Morrer é um ato absolutamente solitário



Morrer é um ato absolutamente solitário

Maria Augusta Tavares


Professora Drª., vivente das Alagoas

Morrer é um ato absolutamente solitário, em qualquer época, em qualquer lugar. Contudo, por mais realista que sejamos, lidamos muito mal com a ideia de mortos amontoados em carros frigoríficos (Nova York), ou largados em calçadas (Equador), tal como já testemunhamos nessa pandemia do coronavírus.
Embora o morto esteja absolutamente impedido de interagir com os vivos, raramente estes lhe negam um cortejo fúnebre. Diante da morte, sem que o declaremos, todos os vivos tendem a regozijar-se com o fato de não estar no lugar do morto. Assim, até para que fiquemos em paz com a nossa consciência, parece-nos justo dar ao morto a oportunidade de sair de cena com delicadeza.  Seja num prédio público, numa igreja, num salão de festa ou na mísera sala duma casa de taipa, costuma-se prestar homenagens a quem morre.
Para os uns, esse momento tem um caráter religioso, (no sentido do religare), para outros, é a rara oportunidade de receber os elogios que jamais merecera em vida e, para muitos, é tão somente uma festa de despedida. Para o morto não é nada. Ainda assim, quando nos imaginamos no papel do morto, mesmo que dispensemos as cerimônias tradicionais, preferimos imaginar que as nossas cinzas serão jogadas num lugar bonito, onde estarão reunidas as pessoas que julgamos  nos amar.
Se isso nos parecia sólido, desmanchou-se no ar. O fantasma do coronavírus ronda o mundo e subverte essas regras. Ora, todos temos os nossos fantasmas, velhos conhecidos que até dormem conosco. Esse, no entanto, afora a sua invisibilidade, difere dos outros pelo caráter universal e pelo ardente desejo de tornar-se tangível. Numa velocidade e numa abrangência que escapam à nossa imaginação, esse fantasma está a materializar-se em muitas vidas de carne e osso, apenas para destruí-las e, sucessivamente recuperar essa corporeidade, até que todos sejam atingidos.

Muitos morrerão. Mas o fantasma é vingativo, sua sanha assassina não se contenta apenas em matar alguns. A condição para reduzir as mortes é o isolamento, é obrigar os vivos a ignorar os seus mortos. É como se estivesse a dizer “esses são meus, afastem-se se não querem também morrer!” Nada de cerimônias, festas, despedidas. Se alguém quer chorar o seu morto, faça-o na solidão do isolamento, ao qual cada um deve agarrar-se se quiser manter-se vivo. Fomos todos silenciados pelo medo.
De repente, eu que, até então, associara solidão à liberdade, senti-me presa. Tudo era tão somente solidão. Ainda incapaz de elaborar teoricamente os meus sentimentos, recorro ao saudoso Jorge Cooper[1] para dizê-los:

A solidão em que a morte
deixa o morto
é maior que a solidão da lua
Minha solidão soma
a solidão do morto
e a solidão da lua
- Sou mais só que um louco.

Esta série tem por objetivo publicar depoimentos sobre  como se pensa e se lida com o Corona em Alagoas.  Está aberta a toda e qualquer pessoa, de qualquer tendência. É uma documentação organizada, sobretudo, para um futuro estudioso de como a epidemia foi vista e vivida em Alagoas. O material será publicado  paulatinamente no  suplemento Campus do jornal O Dia. Está sendo  organizado por Carlos Lima, Mestre em História pela Universidade Federal de Alagoas e Luiz Sávio de Almeida. O blog pode discordar de parte ou do todo da matéria publicada.



[1] Poema 34, Poesia Completa. Imprensa Oficial Graciliano Ramos, Maceió.

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