Degrau
Por Degrau
Maclém
Carneiro
Músico, compositor e cantor
Eu não saberia precisar quando comecei
o meu isolamento social. Só lembro que foi no dia seguinte ao primeiro decreto
do governo do Estado, que estabeleceu a prerrogativa de pessoas “sexes”, como
eu, serem liberadas do trabalho presencial. Imediatamente, vislumbrei uma das
poucas vantagens de ter a tal de DNA e fui logo requerer essa ”benesse.” Nem me
dei conta de que não era nenhuma bondade palaciana, e sim o fato de eu já estar
no grupo de risco preconizado pela OMS. Ocorre que me tornei um misantropo de
carteirinha, como cortejava há bastante tempo, porém, sem o sabor involuntário
e amargo de uma pandemia. Enfim, não lembro quando comecei minha espera do
tempo passar, porque uma das coisas que mais me chamam a atenção nesses dias é
o fato deles parecerem absolutamente iguais, mesmo que estabeleçamos uma rotina
diferente para cada dia da semana.
No começo, em meados de março,
resolvi radicalizar e só saia da toca para subir e descer nove andares pelas
escadas do meu prédio e respirar outros ares, um tanto poluídos de odores
amoníacos. Certamente, incentivaram minha ligeireza escada a baixo e a
convicção de que pra descer todo santo ajuda. Mesmo assim, no primeiro dia, só
consegui duas vezes. É bem verdade que ao final da atividade receei estar com
um dos sintomas do coronavírus, de tanta dificuldade que eu tinha para
respirar. Porém, fui resiliente, porque o que me impressiona na espécie humana
é a capacidade de adaptação, para cima ou para baixo. Por isso, atualmente,
desço e subo os nove andares seis vezes, todos os dias. O que dá um tempo
razoável de atividade física, ao passo que, literalmente, me preparo para o
campeonato dessa modalidade esportiva, bastante valorizada nos USA, antes do
Osama detonar as Torres Gêmeas. Por enquanto, aqui, são 154 degraus, cada um
com sua personalidade e detalhe específico. Às vezes, alguns me olham de baixo
para cima, claramente apreensivos, à espera da pisada inclemente. No entanto,
minutos depois, se vingam maldosamente, quando os miro do meu ângulo inferior,
com o coração na boca, e eles riem de mim, gélidos em sua concretude, a espera
do piripaque letal.
Embora já se configure um longo tempo
sem o convívio e o abraço afetuoso dos poucos amigos e parentes queridos, a
monotonia ainda não se abateu sobre mim e nem ameaçou minha rotina, com suas
garras de lesma e bafo de preguiça paralisante, no meu latifúndio de poucos
metros quadrados. Além disso, mesmo que os dias sejam miméticos em sua
essência, a cena política do país e seus protagonistas ridículos não permitem
monotonia. A não ser que não houvesse mais nenhuma possibilidade de contato com
o mundo alheio ao 904, num blecaute das redes sociais e meios de comunicação.
Aí sim, de bom grado, com muito mais intensidade, eu iria esperar o meu amor
chegar, aprofundaria os meus colóquios diários com o Jipe (um felino manhoso
que, espaçosamente, coabita meu espaço) e reforçaria a leitura e a escrita
inconsequente, tão atávicas a mim e pré-pandêmicas.
Pensando bem, talvez fosse esse o mundo
ideal para mim. Um mundo pós-pandemia, onde as pessoas estariam a salvo dos
fatos inusitados e acontecimentos esdrúxulos, escancarados pelas personagens em
voga nesse nosso país dilacerado e sob o desabrigo de um excrementíssimo
presidente virulento, tão letal quanto é o covidis-19 à vida humana.
Exatamente agora, quando estou
chegando ao ponto final desse escrito, sem precisar abrir a porta, me atinge o
mais recente boletim da pandemia em Alagoas, que aponta 777 casos confirmados e
36 óbitos, num crescimento exponencial a caminho do pico. Penso em todos os
mais pobres e vulneráveis, que ainda serão atingidos. Penso em todas as
famílias que pranteiam seus mortos. Penso nas classes de trabalhadores que
estão arriscando a vida no combate a essa pandemia e nos que garantem a
comodidade do nosso recolhimento social e, finalmente, rogo para que esse
desastre mundial sirva ao menos como ponto de partida para uma coexistência
menos desumana, porque não creio mais na reinvenção da humanidade.
Mácleim (29/04/2020)
Esta série tem por objetivo
publicar depoimentos sobre como se pensa e se lida com o Corona em
Alagoas. Está aberta a toda e qualquer
pessoa, de qualquer tendência. É uma documentação organizada, sobretudo, para
um futuro estudioso de como a epidemia foi vista e vivida em Alagoas. O
material será publicado paulatinamente
no suplemento Campus do jornal O Dia. Está sendo organizado por Carlos Lima, Mestre em
História pela Universidade Federal de Alagoas e Luiz Sávio de Almeida. O blog
pode discordar de parte ou do todo da matéria por ele publicada.