Bianca Machado Muniz . PENEDO: O FORTE HOLANDÊS NÃO ERA DE PEDRA
Dois dedos de prosa sobre Bianca
Bianca Machado Muniz produziu uma bela dissertação de mestrado,
devidamente orientada por uma brilhante professora da Universidade Federal de
Alagoas: Maria Angélica. Este artigo é uma adaptação de parte do trabalho
mencionado e uma forma de chegar o que se produz na pós, à comunidade em geral.
Campus portanto agradece esta demonstração de cidadania.
O texto versa sobre Penedo, sem dúvida uma área diferenciada dentro da
formação do espaço alagoano; dentro de
Penedo, a autora trabalha o que se poderia chamar de arqueologia colonial
urbana e especialmente trata do caso do Forte Maurício de Nassau.
Luiz Sávio de Almeida
Penedo, Rua da Penha, 1950
Quem é quem
Bianca
Machado Muniz possui graduação em Arquitetura e Urbanismo e é mestra pelo
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de
Alagoas. Participou como pesquisadora do Inventário do Patrimônio Arquitetônico
do Município de Porto de Pedras e dos Trabalhos de Localização do Forte
Maurício em Penedo – AL. É membro do Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem
desde 1999, tendo participado de vários projetos, atuando tanto na área de
investigação bibliográfica e iconográfica, como realizando trabalho de campo,
voltados principalmente para a gênese das cidades Alagoanas de Penedo, Marechal
Deodoro e Porto Calvo. Possui experiência na investigação das relações entre
arquitetura e tecnologia. Também atua na área de projetos de arquitetura.
Atualmente é doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal de Alagoas, e faz parte do corpo docente da Fits
como professora do Curso de Tecnologia em Design de Interiores.
PENEDO: O FORTE HOLANDÊS NÃO ERA DE PEDRA
Quando
se pensa em fortificação, imagina-se logo uma construção rígida, feita de pedra
e capaz de atravessar os séculos e resistir às intempéries. É com base nesta
ideia que o Forte Maurício, construído pelos holandeses em Penedo no século
XVII, muitas vezes é representado atualmente. Num lugar onde a pedra sempre foi
tão presente, nos adornos das igrejas, na topografia da cidade – a Rocheira – e
até no nome do lugar – Penedo - como haveria de ser diferente? Os documentos e
evidências históricas porém, desmentem a crença geral, e revelam outras facetas
desta edificação marcante no imaginário da cidade, e ao mesmo tempo envolta em tantos mistérios.
Mas
antes de chegar ao forte, vejamos como os holandeses chegaram a Penedo.
Com
a União Ibérica, os holandeses ficaram impedidos de fazer negócios com o açúcar
brasileiro, sua principal fonte de riqueza. Por este motivo, resolveram se
apossar das zonas produtoras. Inicialmente, invadiram a cidade de Salvador, mas
em 1625 acabaram sendo expulsos da cidade. Em 1630, militares da Companhia
Holandesa das Índias Ocidentais – organização comercial e militar criada para
controlar os entrepostos comerciais nas Américas, ocuparam Olinda e Recife,
conseguindo estabelecer-se na região.
Em
1637, o nobre holandês João Maurício de Nassau, foi enviado ao Brasil para
organizar e governar as terras dominadas pelos holandeses no Brasil. Ao chegar,
Mauricio de Nassau travou os combates necessários para afastar os portugueses,
desde Olinda até o rio São Francisco.
Chegando
à vilazinha de Penedo, que também era chamada vila São Francisco no século
XVII, Maurício de Nassau julgou o lugar apropriado para a construção de uma
fortificação de grandes proporções.
Junto
a sua comitiva, Mauricio de Nassau trouxe vários artistas, entre eles Frans
Post e Jorge Marcgrav, que
realizaram registros da vila São
Francisco fundamentais para o estudo do forte. Frans Post, um exímio pintor
holandês, imortalizou a Penedo de meados do século XVII, vista da margem oposta
do rio, tendo já o forte na parte alta da vila. Marcgrave, por sua vez, fez
mapas de várias vilas e cidades ocupadas pelos holandeses, inclusive a vila são
Francisco. A obra destes dois artistas integra o livro de Gaspar Barléu, que
relata os feitos de Mauricio de Nassau durante sua estada no Brasil. Estas
imagens foram fundamentais para a realização dos estudos em torno do Forte
Maurício, permitindo inferir, por exemplo, o tamanho do forte, sua localização
na vila e suas partes constitutivas.
Na
época em que foi construído o forte, já não se construíam os velhos castelos
medievais. Estes estavam superados: séculos antes, um castelo era uma fortaleza
capaz de suportar um cerco de vários meses sem ser vencido. Mas tudo mudou com
a criação de uma nova e potente arma: o canhão, que tornava as altas muralhas
do castelo um alvo fácil. Era preciso um novo sistema construtivo capaz de
proteger as cidades contra esta nova arma.
Surge
assim a fortaleza moderna, com muralhas baixas e horizontalizadas, criadas para
serem quase invisíveis na paisagem. Em vez de crescerem para o alto, as
muralhas destas fortalezas desciam e ganhavam altura graças ao fosso. O Forte
Mauricio foi uma destas fortalezas: era formado de 5 baluartes, elemento de
destaque na fortificação moderna, que
substituiu as torres dos antigos castelos. Estes baluartes eram desenhados de
modo que não houvesse pontos cegos,
isto é, um soldado inimigo não teria onde se esconder junto as muralhas do forte
pois, de qualquer ponto, se tornaria alvo dos defensores.
De
acordo com as imagens do forte, este também era rodeado por um fosso. Como o
forte não podia ser muito alto, pois se
tornaria frágil ao canhão, sua muralha surgia ao ser cavado o fosso: quanto
mais profundo o fosso, mais alta também a muralha do mesmo. Às vezes a terra
tirada do fosso era já utilizada para a construção de sua amurada.
Isso
nos leva a outra questão significativa:
o material com o qual foi construído
o forte.
Ao
contrário do que se costuma imaginar, o forte Mauricio não foi construído em
pedra, mas sim de terra. A questão é: num lugar onde a pedra é tão abundante,
por que um frágil forte de terra? A resposta mais uma vez está na tecnologia:
uma bala de canhão, ao atingir uma muralha de pedra, produzia estilhaços que se
tornavam fatais ao atingir os defensores do forte. O mesmo não acontecia à
terra, que amortecia o impacto causando danos mínimos na estrutura da
fortificação e em seus defensores.
Uma
das provas da eficiência deste sistema vem da experiência do laboratório de
arqueologia da UFPE, liderado pelo arqueólogo Marcos Albuquerque. Nas
escavações arqueológicas do forte Real do Bom Jesus, em Recife-PE, foi
encontrado um projétil de canhão alojado em uma muralha de terra. Os Atos de
Capitulação do Forte Maurício, que fazem parte do Diário ou narração histórica
de Matheus van den Broeck, vêm a confirmar o material de que era composto o
forte: “as muralhas [do forte
Maurício] recentemente levantadas
acham-se arruinadas e abatidas em consequência das continuadas chuvas, de modo
que por fora é fácil galga-los. Está, pois, indicando a experiência militar,
que com tão poucas forças é impossível defender tão largas obras contra
adversários numerosos. Tão pouco não tivemos meios de cortar a fortaleza, pois
como assenta sobre pedra, dentro d'ella não se pode haver a terra necessária
para levantar outra muralha”.
Não
apenas o forte Maurício, mais vários outros fortes a ele contemporâneos, em
especial os holandeses – como o forte Orange, foram construídos em terra.
Posteriormente, para proteger as estruturas das constantes chuvas típicas do
nosso clima, os fortes eram encamisados com pedra, abrigando-os das intempéries
e aumentando-lhes a durabilidade. Daí vem os fortes que resistiram ao tempo
terem suas muralhas revestidas de pedra.
O FORTE MAURÍCIO E A DEFESA DO
TERRITÓRIO
Segundo
narrativa de Francisco de Brito Freire, na obra “Nova Lusitânia” escrita em
1675, o forte tinha capacidade para mil e seiscentos soldados.
Mas
por que uma guarnição deste porte numa vila tão pequena?
O atual território de Alagoas corresponde à parte sul da
Capitania de Pernambuco. As primeiras povoações que deram início à ocupação
desta área foram, além de São Francisco (atual Penedo), Bom Sucesso do Porto do Calvo e Santa Maria
Madalena da Alagoas do Sul, atual Marechal Deodoro. Dentro deste recorte
geográfico, a região norte, que corresponde a Alagoas do Sul e Porto Calvo,
dedicou-se à produção de açúcar, e a região sul sanfranciscana especializou-se
em atividades pastoris, com destaque à produção de gado. Mas enquanto as duas
primeiras ocupavam posições mais centrais, o fato de a vila São Francisco estar
no limite da capitania, conferiu-lhe
função defensiva.
É o que afirma o antropólogo Diégues Junior em seu
importante livro Banguê das Alagoas: “Enquanto na região norte a de Porto
Calvo e na região central a das lagoas: Alagoa do Norte e Alagoa do Sul o
povoamento se processou através da fundação de engenhos de açúcar, já o do Penedo
tem origens bem diferentes. Seu fundamento se baseia na defesa do sul da
capitania de Duarte Coelho. Foi-lhe dado o feito de arraial fortificado: era o
ponto mais distanciado da sede da capitania, e também o limite desta. Daí a
necessidade de constituí-lo núcleo de defesa do extremo sul, preservando
colonos mais expostos, ali que em outras partes, aos assaltos dos indígenas”.
A fundação da povoação é um dos
primeiros indícios de sua importância defensiva, uma vez que devia garantir a
posse dos limites da capitania contra as constantes ameaças de piratas
franceses. Constata-se assim, a
importância da vila São Francisco para assegurar a posse da capitania de
Pernambuco.
A vila também era um dos principais acessos à capitania de
Pernambuco no sentido sul. Segundo o Visconde do Porto Seguro, “as
viagens marítimas entre a Bahia e Pernambuco eram mais difíceis e perigosas do
que entre aquela capitania e Portugal”, o que fazia da vila São
Francisco uma importante via de acesso, o que se manteve até ano de 1972, quando a construção da ponte
rodo-ferróviária sobre o rio São Francisco
na altura de Porto Real do Colégio deslocou o tráfego para a nova via.
Durante
o ciclo do açúcar, embora não fizesse parte da região produtora, a povoação
fornecia gado para abastecimento da capitania, tanto para consumo como para
mover os trapiches dos engenhos. Segundo relatos de época, a área do rio São Francisco era uma das mais
abundantes em gado em todo o Brasil,
abastecendo deste gênero alimentício toda a capitania de Pernambuco.
Com
a invasão holandesa, se destaca a importância estratégica de Penedo para o
Brasil Holandês. A ocupação e controle deste ponto permitia tanto garantir o
abastecimento dos holandeses com gado, como também o controle do acesso à
capitania. Tornou-se fundamental a fortificação desta área, para garantir a
posse dos limites do território ocupado pelos holandeses, o que significava a
posse de todo o território pernambucano. Mas, ao contrário do colonizador
português, o que havia do outro lado do rio São Francisco não eram “vizinhos de
capitania”, mas sim seus opositores, que certamente tentariam expulsá-los assim
que possível.
Além de defender os limites do domínio holandês, a
fortificação do local permitia, também, apoiar as incursões nas áreas próximas
e na capitania de Sergipe del Rei. Os holandeses saíam do Forte Maurício,
incendiavam casas, engenhos e destruíam plantações do outro lado do rio, com o
intuito de criar uma zona devastada que impedisse a permanência de seus
opositores.
Assim, observa-se que em vez de proteger a vila, o forte
Maurício visava antes à defesa da capitania, com vista aos interesses
holandeses. Mesmo a provável feitoria, que seria de segurança para os colonos
contra os índios, também fazia parte de uma estratégia de posse dos donatários.
Ainda que essas evidências nos mostrem que a povoação, e depois vila São
Francisco, não era necessariamente o alvo destas iniciativas de fortificação,
sinalizam que sua localização era essencialmente estratégica, não apenas por
sua posição geográfica, limitada decisivamente por um curso d’água do porte do
rio São Francisco, mas também pela topografia do sítio, que favoreceu a
defesa e a visibilidade dos arredores.
A ÁREA DO FORTE NA CIDADE ATUAL
Os
estudos que se apoiaram nas imagens, permitiram mostrar que o forte construído
em Penedo foi um dos maiores do Brasil. Ele era maior, por exemplo, que o forte
Orange, existente em Itamaracá. A comparação das dimensões entre estes fortes
pode nos dar uma ideia da dimensão do forte Mauricio.
O
forte Orange ocupa atualmente uma área de 9.800m2. Com base nas
medidas do mapa, fazendo as devidas conversões da escala holandesa para o
metro, constata-se que o forte Mauricio deve ter ocupado uma área de até 12.000m2,
ou seja, ele tinha dimensões bastante expressivas, e de maiores proporções que
o forte existente em Itamaracá.
O
estudo dos mapas também permitiu constatar que o forte foi construído ao redor
da primeira capela da vila, o que foi relativamente comum na história colonial,
tendo ocorrido o mesmo em Porto Calvo e em Recife (no forte Ernesto). Porém,
nestes casos a igreja não deve ter sido
utilizada com fins religiosos, mas sim militares. O viajante neerlandês Johan
Nieuhof, em seus escritos, ao se referir à vila de Penedo, diz que “existia no forte uma igreja que transformamos em arsenal”.
Projetando
o perímetro do forte na cidade atual, percebe-se que muitas construções
importantes também ficam dentro do espaço anteriormente ocupado por ele, como a
Casa de Aposentadoria, a Aposentadoria Nova, a Catedral e o Oratório da Forca.
Se não houvesse sido devastado, a presença da fortificação representaria uma
outra paisagem para a Penedo contemporânea, com sua parte alta não tomada por
residências e prédios históricos, mas pela própria fortaleza que ocuparia toda
aquela área.
O FORTE HOJE
O
cerco que resultou na conquista do Forte Maurício pelos portugueses durou mais
de um mês. Várias vezes os holandeses enviaram
alimentos e munição para o forte, e várias vezes os portugueses
conseguiram evitar que chegassem, o que deixava as forças defensoras da
fortaleza cada vez mais fragilizadas.
Chegou
o tempo em que seu contingente humano nem mesmo podia chegar sobre a muralha
sem ser ofendido pelas armas portuguesas. Assim se passou mais de um mês, e
finalmente, aos 15 dias do mês de setembro, os holandeses pediram uma trégua de
três dias. Um dia antes do fim da trégua, em 17 de setembro de 1645, eram
escritos os Atos de Capitulação do Forte Maurício, os quais foram justificados pela falta de munição, de alimento, a
diminuição da guarnição do forte e o arruinamento das muralhas pelas
continuadas chuvas.
Os
holandeses estiveram por oito anos na vila. Em novembro de 1646 reocuparam os
restos do forte, abandonando-o quatro meses depois, em março de 1647. Assim que
a fortaleza foi expugnada, os cidadãos locais pediram que ela fosse derrubada,
para não correrem o risco de os inimigos se apoderarem novamente dela.
Atualmente,
nada resta senão o lugar sobre o qual o forte esteve erguido, visivelmente
modificado. Seus indícios materiais podem permanecer, porém, soterrados sob a
cidade, no subsolo da praça Barão de Penedo, da Catedral e das casas por ali
existentes.
Entretanto,
pequenos monumentos em memória do forte permanecem dissolvidos, escondidos, ou
foram apenas recentemente apagados. O Beco do Forte, que deixou de existir para
que fosse construída a Praça do Forte, em frente à igreja Conventual Nossa
Senhora dos Anjos; a rua 7 de Setembro, que se originou de um caminho que
abraçava o forte, adquirindo sua forma; além das imagens e das narrativas sobre
a fortificação, que, como se viu, também preservam a memória do forte e
realizam uma abertura no “túnel do tempo”, para permitir que se tenha acesso a
pelo menos partes desse passado.
Contudo,
caso se insista nesta busca com mais afinco, deparar-se-á com outros sinais. O
famoso restaurante Forte da Rocheira, o canhão que se situou por muito tempo na
Praça Barão de Penedo, a cruz em comemoração à expulsão dos holandeses, fixada
na praça do Forte, em frente ao convento, embora não sejam originais do tempo
seiscentista, simbolizam uma vontade de relembrar ou de encontrar o forte em
meio à cidade.
A história desta fortaleza e da
presença holandesa às margens do rio São Francisco confunde-se com as lendas
e casos de grande repercussão popular.
Uma das mais recorrentes é a da “porta da rocheira”, uma abertura no paredão
formado pelo rochedo que conduziria ao interior do convento, onde os holandeses
teriam escondido ouro o que carece de sentido, uma vez que o convento começou
a ser construído após a expulsão dos holandeses. Por outro lado, tal crença
pode ter sua origem ligada à fenda referenciada na legenda do mapa de Marcgrav,
escrita em latim: “A.B. Rupes acclivis so
pedum altitus dine fobis e faxo exifis”, que pode ser traduzida como “caverna
em ladeira onde só sobe um pedestre baixo [ou abaixado] usando uma tocha”. A legenda pode aludir a alguma abertura na
pedra que talvez levasse ao interior da fortificação, e que hoje nos chega com
a feição de crendice popular.
Embora
se possa lamentar o fato de o forte já não existir, ele traz a questão de como
seria a cidade hoje se o forte permanecesse. Optar pela permanência do forte em
um dado momento da história seria optar por outra cidade, por outra Penedo.
Considerando
a hipótese da realização de uma escavação arqueológica, embora cientificamente
esta trouxesse muitas informações a respeito da fortaleza, seria, para o leigo,
uma decepção. Esperariam os moradores encontrar um forte de pedra, semelhante
àqueles divulgados nos filmes, quando provavelmente se encontrariam no subsolo
apenas cortes na pedra, ou algum resquício da muralha de terra. Que tipo de
atrativo tal achado teria?
Mas
nada impede que o Forte Maurício, atualmente convertido em memória, possa ser
apropriado pela população, e que a história se desdobre em iniciativas que o
referenciem e alimentem esta reminiscência, de modo a evitar que este momento
tão significativo da história da cidade de Penedo seja esquecido.