domingo, 25 de maio de 2014
Papos de bar: o poder das enchentes
Luiz Sávio de Almeida
A água de um rio quando se
apavora, explode como se fosse bomba, sobe pelos barrancos e devora tudo
o que aparece
no caminho. O rio enche e segue rompendo todas as
convenções, transformando as ruas em leito de um caudal que a tudo
derruba, suja, enverga. As águas do rio passam
sempre devagar, mas têm momentos e lugares em que se enfurecem. Quando a
água de um rio tem raiva, a gente deve ter sempre muito cuidado.
O Rio Una com raiva, em Palmares, Pernambuco |
Não posso dizer que vi muitas enchentes.
Do Rio de São Francisco, somente vi uma e ainda tenho a foto do meu pai e do
tio Lauro andando de canoa na Rua do Comércio. Deve ter sido uma cheia grande. Do Rio Una, somente vi subir pelo quintal de
nossa casa, o demais das cheias foram por notícias, até que veio a televisão e
deu-me as estrelas de presente.
Bicas |
No entanto, do Córrego de São
José (Bicas, Minas Gerais), eu sofri mesmo, acordado com as águas dentro de casa, eu nos braços de
meu pai e posto em cima de uma mesa; o medo de ambos com a possibilidade de
cobras, a ida para uma casa que ficava em um alto. Disto ou distos (que foram duas vezes) eu não esqueço, sobretudo da
água a entrar cada vez mais e o caminho que tomamos para chegar a lugar
seguro.
Não sei a razão, mas bateu na minha cabeça, os versos de uma música que era cantada por Carlos Galhardo: A pequenina cruz do seu rosário! Minha mãe era um disco de 78 rotações a
repetir:
Faz tanto tempo, já não me lembro
quando,
A vida é longa e o pensamento vário...
Mas nosso assunto é cheia,
enchente, outro tipo de problema e outro tipo de tristeza. A dor de A pequenina
cruz do seu rosário é diferente de outro tipo que a vida nos ajuda a
catalogar. Todos nós temos uma espécie de arquivo de dor e de arquivo de
alegria. Vez em quando a gente abre a gavete. Hoje eu quero as dores cívicas.
Faz tempo, deu-se uma das mais
famosas cheias do Mundaú, com as águas descendo a varrer todos os pontos
e
pontes, numa enxurrada de tudo, talvez uma enxurrada de coisas e vidas.
Passado um tempo, decidi ver os estragos, bem de perto e tomei o rumo
do Murici. Fotografei. Não era a cheia, mas resultados.
Existe uma Nossa Senhora das Enchentes?
Vou
te mostrar umas fotos. Eu estava triste; apesar da boa companhia, eu não
conseguia sorrir. Somente via perguntas em todos os rostos, como se de
tanto perguntar, as gentes de Murici tivessem sumido pelo medo das
águas. Eu não consigo viver sem amar a minha gente. Sabe menina? Eu não
consigo viver sem amar meu povo. Eu sou alucinado pelo meu povo, pelo
que ele sente, pelo que ele sofre... Meu coração, menina, guarda o mundo
das Alagoas bem dentro dele, como se eu mesmo fosse um cofre do destino
de todo o mais da gente alagoana.
Eu saí daqui, para aprender a ficar. Alagoas é minha escolha, da mesma
forma que gosto de manga rosa, sabendo que existe a manga espada. Veja
esta criança, menina. Olhe para ela, para o direto dos olhos em busca de
um horizonte... Quanto a vida remexerá neste rosto lindo, cândido e
triste? Uma calçada, muro, engrenagens... Você sabe menina, quantas
vezes ela chorarará de não-cheia e do sim-de-vida?
E o casal? Será que apenas a cheia une. O homem olha para a direita,
ela para a esquerda, o menino no braço e ela, com a mão nos queixos e
faceira, interroga o destino? Sei lá; sei apenas que ela se fez bonita
para sentar-se naquele alicerce de muro... Descansou os pés, assumiu os
brincos e quem sabe estaria pensando no dia em que sua sorte deixaria de
ser governada pelas águas do rio.
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Tá
vendo estas casas? Conversei com um morador e ele me contou a sua saga.
Era um Pastor e me disse do barulho das águas chegando e das orações
que fazia. Você sabe, menina, quem morava nestas casas? Eu não sei e
acho desnecessário saber.
É tempo de terminar a cerveja. Quer mais um copo? Garçon, vem cá!
Onde fica a arena dos gladiadores em Murici? Mostra a ela, que eu vou
ficar sentado, olhando a parede, ver as sombras e me acostumando com a
ideia: quando o tempo passa, passa mesmo. E nem deixa rastro? Não... Às
vezes o tempo se enfurece como as águas se enfureceram nos lados do
Mundaú.
Então menina? Fica com a foto deste gladiador das enchentes e até outra cerveja, outro mar e outro bar.