OS INDÍGENAS KARUAZÚ E A PANDEMIA
DO CORONAVÍRUS: ESTRATÉGIAS E AÇÕES DE ENFRENTAMENTO
Carla Alves, indígena Karuazú
Professora da Rede Municipal de Ensino Básico de Pariconha-AL,
Colaboradora na luta pela implementação da Educação Escolar Indígena na aldeia
Karuazú"
Com
a pandemia do novo coronavírus, as relações sociais entre as pessoas têm sido reconfiguradas.
Hoje, “não dar as mãos” é sinal de união; “não visitar” é sinal de cuidado; “não
querer estar perto” é sinal de amor. São ações inversas do que costumávamos
fazer, mas, em tempos de pandemia, os significados dessas ações são essenciais
para um bem maior: combater o vírus, salvar o máximo de pessoas. As políticas
de ações dos governos em todo o mundo consistem no isolamento ou distanciamento
social, o uso de máscaras, a higienização pessoal etc. “Quem puder fique em
casa, enquanto não surge uma cura para este mal”. São medidas tomadas para combater
a disseminação do COVID-19.
Diante
deste cenário de pandemia, os hábitos cotidianos mais simples se tornam
complexos, por exemplo: visitar um parente próximo, sentar com os amigos para
conversar e se divertir, comemorar aniversário com festa, ir ao mercado, a
padaria, a farmácia, a consultas em clínicas médicas etc. se tornou um desafio
a nossa própria capacidade de enfrentar e superar medos e angústias, frente a
um inimigo invisível e não pouco letal que é o novo coronavírus.
Em
Alagoas, a mobilização de enfrentamento à pandemia culminou na criação de um
comitê de crise, responsável pelo controle das informações e emissão de Decretos,
conforme o avanço do vírus. Os municípios também criaram comitês de crise,
adotando ações de enfrentamento com Decretos que viabilizam juridicamente a
instalação de barreiras sanitárias nas entradas dos municípios e fechamento de
estradas vicinais, a fim de impedir o avanço do vírus em suas respectivas áreas
administrativas.
No
município de Pariconha não foi diferente: estradas vicinais que antes davam
acesso ao município foram fechadas com o intuito de estabelecer somente duas
opções de acesso à região, passando pelo controle das barreiras sanitárias
estabelecidas na divisa do município com Estado de Pernambuco e o Povoado
Marcação, divisa do município de Pariconha com o município de Água Branca, Alagoas.
Com o aumento de casos no Estado de Pernambuco, o acesso ao município foi
fechado permanecendo somente uma opção de acesso a região. As restrições nas
barreiras com respeito ao acesso de pessoas oriundas de outros Estados ou mesmo
municípios vizinhos foram intensificadas; mesmo pessoas naturais de Pariconha,
mas que moravam em outros municípios, não podiam entrar na região, salvo para
serviços essenciais. Várias medidas de segurança, de prevenção e enfrentamento
foram e ainda são tomadas para combater o avanço do vírus no município. Mas,
mesmo diante de tantas restrições e isolamento, este mal chegou à região.
Com
os primeiros casos no município, as relações sociais entre as pessoas
tornaram-se ainda mais restritivas: distanciamento social, isolamento local,
fechamento de instituições religiosas, escolas, lojas, bares; além do uso
obrigatório de máscaras, suspensão das feiras livres, fechamento de mercados aos
domingos, proibição de festas e de aglomeração de pessoas de qualquer natureza,
seja nas ruas, nas casas, em reuniões, encontros religiosos, ou em manifestações
culturais e rituais. Com essas
restrições, as três aldeias indígenas localizadas no município de Pariconha –
Jiripankó, Katokinn e Karuazú – também foram proibidas de quaisquer atividades
culturais e religiosas.
Na
aldeia Karuazú, localizada entre os povoados Campinhos e Tanque, as
festividades e reuniões foram proibidas, a exemplo das reuniões mensais da Associação
Indígena Karuajé, onde sempre se discutia e buscava soluções para as questões
da área da saúde, educação escolar indígena, processo de demarcação de terras,
toré e rituais, o “terreiro ficou vazio”. Diante do cenário de Pandemia, os
Karuazú buscam estratégias para manter a unidade e luta já antes travada pelo
direito a saúde, terra, educação e pela valorização cultural e étnica. Com
isso, uma das ferramentas utilizadas para viabilizar a continuidade das ações
de enfrentamento político, ante aos problemas enfrentados pela comunidade, é o
uso da internet, e principalmente das redes sociais, que têm se intensificado
entre os indígenas.
Neste período, em que as restrições impostas
pelo distanciamento social são essenciais para o combate ao avanço do vírus, a
comunidade indígena Karuazu criou grupos de whatsapp para manter a comunicação
e interação entre os indígenas: um grupo com participação de toda e/ou parte da
comunidade, com a finalidade de informar, discutir e buscar soluções referentes
a assuntos ligados a aldeia; outro grupo da Associação Indígena Karuajé para
tratar assuntos referentes à associação, já que as reuniões mensais também
foram suspensas; além dos grupos que já existiam e passaram a ser ainda mais
utilizados nesse período de pandemia.
Referente a área da saúde, os Karuazú conquistaram,
depois de muita luta, a Unidade Básica de Saúde Indígena Karuazú com prédio
próprio na comunidade, que já está em funcionamento desde o mês de junho, com
algumas precauções, como agendamento de consultas e controle do fluxo de
pessoas para evitar aglomerações. Antes, a Unidade Básica de Saúde dos
indígenas karuazú funcionava na cidade, numa casa alugada que foi adaptada para
o atendimento médico. As dificuldades eram grandes, tanto para a equipe médica como
para os Karuazú, pela distância do atendimento e falta de estrutura física. Devido
à pandemia, os Karuazú ainda não puderam festejar a inauguração de sua unidade
de saúde, conforme o costume local, mas o sentimento de orgulho por mais uma
conquista é notório na comunidade.
A
equipe médica multidisciplinar, assim como os agentes de saúde na comunidade têm
trabalhado incansavelmente para evitar que o vírus avance na aldeia. Neste sentido, as primeiras ações de combate
a pandemia na comunidade consistiram na divulgação de informações sobre o
vírus, com o objetivo de orientar os Karuazú sobre a importância do isolamento
e distanciamento social, do uso de máscaras e dos sintomas da doença. Em
parceria com a prefeitura, foram distribuídos kits de máscaras de tecido para
todas as famílias indígenas Karuazú, entre outras ações de combate e controle
do COVID-19. Infelizmente, houve dois casos da doença na comunidade, um
indígena que foi curado e uma indígena que lamentavelmente veio a óbito. Até o
presente momento não foram mais notificados casos da COVID-19 entre os Karuazú.
O
fato é que não tem como isolar a comunidade, porque as terras ainda não foram
demarcadas. Os Karuazú espalhados entre os povoados Tanque e Campinhos dividem
o mesmo espaço com os não índios, dificultando assim o isolamento da comunidade
neste tempo de pandemia. Os karuazú lutam por mais de duas décadas pelo direito
à terra, pela demarcação de seu território – um direito constitucional –, porém
negado pela má vontade política dos governantes deste país. Mesmo com a
conquista da Unidade Básica de Saúde, com prédio na comunidade, muito ainda
falta referente à demarcação de terras e a implantação da educação escolar
indígena na comunidade.
No
atual momento, as barreiras sanitárias foram retiradas, e as estradas vicinais
de acesso ao município de Pariconha estão sendo abertas; o comércio já foi
liberado; as instituições religiosas já podem funcionar com 30% da capacidade
do espaço físico; as pessoas já podem circular livremente nas ruas; no entanto,
os cuidados de proteção como o uso de máscaras, higienização das mãos e a
proibição de aglomeração de pessoas continuam. Os casos ativos na cidade
diminuíram: no boletim epidemiológico do dia 18 de agosto constam 155 casos
confirmados ao todo, 140 curados, 14 ativos e 1 óbito. Aos poucos a cidade de
Pariconha vai retomando a “normalidade”. As escolas ainda permanecem fechadas,
a proibição das feiras livres continua. Em nossa comunidade, ainda não há uma
data prevista para a realização de reuniões e das atividades culturais e
religiosas.
Em
suma, mesmo em tempos de pandemia, os Karuazú, assim como os Katokinn e os Jiripankó
permanecem resistentes, lutando pelos seus direitos e buscando novas
estratégias de enfrentamento ante aos problemas, dificuldade e incertezas.
Diante de um cenário não muito animador, os indígenas Karuazú, são capazes de
se organizar, de se adaptar (caso seja necessário), e de buscar estratégias
para sobreviver diante das adversidades – contrárias a sua sobrevivência,
enquanto etnia indígena –, de lutar e ser protagonista de seu próprio processo
histórico.