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quinta-feira, 9 de julho de 2020

Maria Isabel Correia da Silva. NOTAS ACERCA DA REALIDADE INDÍGENA E O COVID-19




NOTAS ACERCA DA REALIDADE 
INDÍGENA E O COVID-19


Maria Isabel Correia da Silva


Indígena da etnia Katokinn, Pariconha-AL
Assistente Social no Distrito Sanitário Especial de Alagoas e Sergipe – DSEI-AL/SE
Aluna do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Serviço Social-FASSO/UFAL

Este material deve-se à coordenação do Professor  Amaro Hélio Leite da Silva
Coordenador do Neabi, Ifal

A pandemia causada pelo novo coronavírus representa um grande desafio para o mundo e em especial para os povos originários brasileiros, devido aos fatores presentes no processo de formação sócio histórico desses povos; entre eles, destacamos as questões territoriais, sociais, econômicas e religiosas. Diante desse cenário multicultural, os povos indígenas do Nordeste apresentam peculiaridades que devem ser observadas, tendo em vista as complexas implicações para o combate à COVID-19.
Os povos originários do Nordeste sofreram e sofrem um forte processo de destruição de sua cultura e costumes, através, principalmente, da expropriação de seus territórios tradicionais durante o desenvolvimento das atividades econômicas na Colônia. O reflexo dessa política de destruição cultural e integração forçada aos costumes do não indígena, implementado pelo Estado brasileiro ao longo de 500 anos, provocou inúmeras modificações na forma de organização dos povos, principalmente nas estratégias pensadas por eles para preservar seus costumes e práticas religiosas.
Atualmente, diante desse cenário de pandemia, mais uma vez as populações originárias se veem diante da necessidade de se reorganizarem para, como antes, preservarem sua cultura, em especial aquela presente na memória dos anciões das aldeias, que nesse momento são considerados mais vulneráveis aos efeitos do vírus.
Perante a necessidade de preservação, mediante o avanço do vírus nas comunidades, na maioria das vezes as estratégias pensadas em conjunto pelas lideranças e comunidade esbarram nas dificuldades objetivas de caráter estrutural que emanam principalmente da não demarcação dos territórios tradicionais - que nesse momento representam o resguardo social seguro de cada povo e a possibilidade de um controle efetivo da circulação de não indígenas nas comunidades. Compreendemos que a não demarcação dos territórios geram inúmeros problemas aos povos e torna impossível a prática do bem viver, ampliando a vulnerabilidade das comunidades.
Desta forma, a demarcação dos territórios tradicionais implica diretamente no modo de vida dos povos e tem impacto decisivo na qualidade de vida e, como estamos falando de pandemia e os efeitos do vírus para o modo de vida dos indígenas, esses impactos negativos repercutem diretamente no quadro epidemiológico das aldeias, tendo em vista que em sua grande maioria os indígenas são acometidos por doenças crônicas (hipertensão arterial, diabetes, desnutrição, obesidade) decorrentes das precárias condições sociais, econômicas e de saúde, tornando-se alvos ainda mais fracos nesse contexto de pandemia.
Diante dessa conjuntura e da realidade de insegurança e medo dentro das comunidades, cobramos que as políticas públicas sejam mais efetivas e articuladas. Porém, observamos uma fragilidade na execução dessas políticas, pois quando são executadas se dão de forma isolada e não respeitam o contexto cultural dos povos.
Atualmente, a política de saúde que nesse momento é a mais requisitada, é executada através da Secretária Especial de Saúde Indígena (SESAI), mediante os 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI’s) espalhados pelo Brasil. Aqui em Alagoas, temos observado várias ações das equipes de saúde dentro das comunidades, porém essas ações em alguns territórios não tem logrado êxito, tendo em vista a visão etnocêntrica da medicina ocidental e a falta de preparo da equipe para entender os aspectos culturais e religiosos que permeiam o processo de saúde, doença e cura dos povos. Deste modo, a cosmologia que permeia a organização de alguns povos ainda não foi entendida pelo órgão responsável em executar a política de saúde, gerando dentro de algumas comunidades a negação do processo de doença gerado pela COVID -19 e assim contribuindo para o aumento dos casos.
O Distrito Sanitário Especial Indígena de Alagoas e Sergipe emite diariamente boletim epidemiológico com os casos confirmados, podemos observar que no último boletim publicado nas redes sociais pelo DSEI no dia 02/07, contabilizamos 08 comunidades entre elas: Kariri-Xokó, Xokó, Karapotó Plaky-ô, Karapotó Terra-Nova, Karuazu, Jeripankó, Xucuru-Kariri e Wassu-Cocal com casos positivados para a COVID -19 e a constatação de 03 óbitos.
Além dos casos confirmados, não podemos descartar as possíveis subnotificações que se dão pela ineficiência da politica de saúde e da desinformação da população que gera medo e vários mitos acerca da doença, fazendo com que em algumas comunidades uma parcela significativa da população tenha se recusado a procurar os polos base para atendimento e a realização do teste rápido.  No que tange a subnotificação em nível nacional, podemos observar que os dados publicados pela SESAI divergem dos publicados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), sendo estes superiores aos apresentados pelo órgão oficial do Ministério da Saúde, demonstrando uma disparidade que não reflete a realidade.
Constatamos através da estatística divulgada no site oficial da Secretaria Estadual de Saúde (SESAU), que o vírus tem crescido de forma exponencial no interior e que em todas as cidades de Alagoas com populações indígenas temos casos confirmados, demonstrando que se algo decisivo e continuo não for feito será apenas questão de tempo para que tenhamos casos positivados em todas as 12 etnias[1] do Estado de Alagoas.
Compartilho, enquanto indígena e profissional da saúde indígena, que precisamos unir forças para potencializar as ações de saúde nos territórios e que a maior ferramenta nesse momento é a conscientização de que devemos nos resguardar. Desta forma, creio que a SESAI, secretarias municipais de saúde, FUNAI, Controle Social, Mistério Público e as organizações indígenas presente a nível local e de abrangência regional devem articular as ações no combate ao avanço do vírus. Que as medidas pensadas devem estar em consonância com a organização interna e cosmologia de cada aldeia e, só assim, a mensagem da gravidade da COVID-19 e a presença do vírus nas aldeias serão reconhecidas e entendidas.  
Aqui não descartamos as ações e os esforços das equipes de saúde que a todo o momento buscam estratégias para atingir um número cada vez maior de pessoas com as mensagens de prevenção, também sabemos da importância de um SASI-SUS fortalecido e organizado para responder as demandas mais graves que exigem um suporte especializado na saúde de média e alta complexidade. É com o intuito de preservar vidas que as comunidades têm buscado dialogar com as instituições responsáveis pela execução da política de saúde nas bases e cobrar medidas mais incisivas e eficazes no combate à COVID-19.
Enquanto indígena, mulher, assistente social e ser humano sensível e conectada com o gênero humano busco refletir esse momento tão difícil e de muitas perdas para o mundo e para nosso povo, com a certeza de que devemos nos expressar e denunciar qualquer tipo de injustiça cometida contra as populações indígenas, entre elas a omissão, nesse momento de pandemia e afirmar que vidas indígenas importam também. Fica a certeza de que muito foi aprendido nesses 500 anos e a bandeira da resistência, principalmente dos povos indígenas do nordeste, encontra-se hasteada e mesmo com perdas nesse momento tão difícil, nosso povo buscará meios de se manter vivo, pois de resistência nós entendemos!

O blog pode não concordar, no todo ou em parte, com a matéria publicada



[1]  São elas: Jeripankó, Katokinn, Karuazu, Kalankó, Koiupanká, Xucuru-Kariri, Tingui-Botó, Aconã, Kariri-Xokó, Karapotó-Terra Nova, Karapotó Plaki-ô, Wassu-Cocal.

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