“Está um
roubo!”: pandemia e mercado de drogas em Alagoas
Fernando de
Jesus Rodrigues
Introdução
É importante
destacar que a pandemia encontrou processos já em andamento no mercado de
drogas alagoano e brasileiro desde 2019. Consumidores e dependentes químicos
sem tratamento já vinham sinalizando alterações nesse sentido. A exemplo disto,
usuários sentiram a falta da maconha no final do ano passado e no carnaval
deste ano em Maceió e Alagoas. Tomemos o mercado local a partir da oferta no
período do primeiro trimestre desse ano em comparação com relatos de 2019.
Janeiro e fevereiro de 2020 já foram meses difíceis de encontrar maconha e não
estávamos sob interdição da pandemia. Em março, os suprimentos conhecem uma
pequena melhora. Em linhas gerais, o preço já vinha subindo desde o ano passado.
Portanto, no caso da maconha, é difícil dizer que a pandemia dificultou a
distribuição. Em comparação com anos anteriores, houve uma perceptível redução
da oferta no mercado local. Entretanto, se compararmos os meses de março e
abril com janeiro e fevereiro, houve um aumento da oferta. Portanto a
associação direta entre pandemia e redução da oferta requer prudência.
De outro lado, a
pandemia parece ter afetado substancialmente tanto o preço quanto a qualidade
do produto. Consumidores relatam que durante o período de interdições, durante
a pandemia, quase que encontraram apenas o sargaço, a maconha de pior
qualidade. Ademais, o preço disparou. 25
gramas de maconha saltou de 80 para 130 reais, aumento de quase 40%. Em alguns
casos, pessoas chegaram a pagar 200 reais por 25g pelo sargaço.
Mas é importante
termos em conta que a pandemia afeta de diferentes maneiras distintos grupos
que comercializam e demandam drogas.
Nas classes média
e alta acontece um fenômeno curioso, que requer atenção e afeta os circuitos de
consumo dos ricos e dos pobres. Apenas o preço da maconha subiu enquanto outras
drogas como cocaína, anfetaminas e outros opioides permaneceram o mesmo. De
acordo com interlocutores, no caso específico de uma rede de 4 (quatro)
negociantes, apenas 1 (um) ficou no ramo vendendo maconha da mesma qualidade que
circulava antes da pandemia, 2 (dois) saíram de vez do negócio e 1 (um) ficou passou
a vender maconha de pior qualidade, o sargaço.
Quando
consideramos a cocaína, que sempre teve qualidade ruim no mercado alagoano, a
oferta e a qualidade permaneceram os mesmos nos períodos anteriores e posteriores
às interdições decorrentes da pandemia. Há a percepção de que houve um aumento
dos negociantes de cocaína, diferente do que ocorreu com a maconha. Esse
fenômeno desperta muitas questões.
Uma delas se
relaciona com informações trazidas pelo relatório da UNODOC sobre em quais
países aumentaram a repressão e onde não apenas foi reduzida, mas nos quais houve
a legalização do uso da maconha para fins não-medicinais. Me faz perguntar se a
repressão à distribuição e ao consumo final – ampliada desde 2018 – é o único
fator de diminuição da oferta de maconha no mercado local, que não parece ter
relação direta com a pandemia. Será que a diminuição também está relacionada
com uma reorientação, em escala massiva, das redes de produção e distribuição
da maconha, da qual Alagoas faz parte, para mercados que legalizaram o produto?
A legalização traz mais segurança às redes de trocas e negócios, além de
atingirem públicos crescentes e bem aquinhoados. Os produtores podem ter se orientado para
mercados mais protegidos pela regulamentação da venda e do uso, evitando as
dinâmicas de violência relacionadas à criminalização dos circuitos periféricos
do comércio de drogas, associadas à criminalização dos pobres, atingindo em
cheio os grupos negros e mestiços. Há em curso uma nova segmentação do mercado
da maconha. A erva natural, sem misturas, conhecida como “camarão”, “solta”,
desaparece do mercado, afetando demandas das classes médias e altas. Estes setores
são redirecionados para a compra do hash e kunk, variações mais potentes que,
em comparação com o sargaço, é experimentada como de melhor qualidade.
Quando
consideramos as maneiras como compram drogas, os meios continuam os mesmos, mas
com algumas mudanças. As casas de shows e discotecas estão fechadas e assim,
deixaram de ter o papel de pontos de consumo. Em compensação, o delivery
acessado por comunicações digitais se torna ainda mais importante, e uma rede
de transportadores pela cidade se encarrega de fazer a entrega.
O relatório da
UNODOC[1]
aponta, ainda, que o Brasil está entre os países onde desde 2018 há um maior
controle e repressão à produção e ao comércio tanto da cannabis – de onde vem a
maconha – quanto da cocaína. Neste último caso, o Brasil de 2018 foi o segundo
em apreensões em toda a América do Sul. No entanto, o Brasil continua a crescer
sua importância como lugar de partida dessa droga para a Europa e já é o
principal exportador para a África, colocando os portos nordestinos em
potenciais rotas.
De outro lado, não
há evidências de que tenha aumentado o gasto, particularmente o de treinamento
de pessoas, para lidar com dependentes químicos. Portanto, é uma política
meramente repressiva, não abrange os fenômenos sociais e psíquicos associados à
dependência química. A pandemia, assim, favoreceu o aumento do controle das
fronteiras e do fluxo de mercadorias ilegais pelas corporações policiais, mas
as questões de redução de sofrimentos sociais, psíquicos e o uso de drogas
simplesmente está fora dos mapas de percepção das autoridades.
Em outras
posições, há os vendedores e consumidores nas periferias e sistemas
carcerários. Nessa região do mercado de drogas, a realidade é mais dura,
trágica e precária. Muitos atores que fazem o “corre”, vendendo o “braite”, a
“nóia” ou a “erva”, se veem mais pressionados a sair ou mudar de ramo. Isso
significa muitas vezes alimentar um pêndulo criminal bastante conhecido. O
jovem sai do tráfico e vai pro roubo, deixa de ter um patrão para tentar a
sorte em iniciativas arriscadas e mais solitárias de “meter uma fita”, roubando
algo de valor. Os crimes contra patrimônio aumentaram. Os mais pobres e
isolados, tentam a sorte em um assalto a coletivos de ônibus, o degrau mais
baixo no roubo entre os ladrões. Com a falta de circulação das pessoas e bens,
a situação dos ladrões mais vulneráveis é a de passar mais necessidades junto
com as experiências de humilhação que isso traz. Tenho ouvido relatos de
pessoas que simplesmente não tem mais como pagar um aluguel e vão para as ruas.
Isso chega a afetar a dinâmica das redes faccionais, que estão vinculadas à
transformação do perfil da produção e consumo de maconha, cocaína e roubos em
Alagoas. Os problemas afetivos se aliam aos psíquicos. Da perspectiva de muitos
consumidores nas periferias, vive-se o abandono, o distanciamento de qualquer
rede de proteção, aumentando as chances de que experiências de sofrimento se
transmutem em problemas de dependência química, mas de substâncias de baixa
qualidade. Rufi, cola, restos do crack. Isso nos leva a outra questão. Estão
dadas as condições para um círculo de abandono. Moradia de rua, consumo de
substâncias de baixa qualidade, redes de conflito e assistência entre
vulneráveis como as cracolândias.
O mercado de
drogas ilícitas é tanto produtor de violência quanto de sobrevivência entre os
mais pobres. Se o tamanho do mercado diminui, como é o que parece estar
acontecendo, geralmente cresce o conflito para ocupar menos espaço com mais gente,
vinda também do desemprego. O consumo também é afetado pois não há controles
muito rígidos sobre a qualidade do que se consome. Nessa região do mercado,
alguns relatos falam de maconha
prensada com asas de baratas, ratos, aranhas e gazes. No caso dos mercados
ilegais como o varejo de drogas em periferias, estamos lidando com conflitos que
podem mais provavelmente ser resolvidos por pessoas armadas, associados a
outros tipos de “tretas”.
Nas prisões,
aumenta-se o consumo de ansiolíticos e psicotrópicos, os encarcerados
permanecem mais tempo “enjaulados”, intensificando uma outra rede de trocas ilegais
existente, o de medicamentos em penitenciárias e unidades de atendimento
socioeducativas. Como as visitas foram restringidas, o fluxo que alimenta
demandas e ofertas de drogas e conforto afetivo nas “cadeias” através de
familiares fica restrito, pressionando maiores negociações com funcionários.
O desemprego repercute
no aumento do abandono de crianças e adolescentes e isso acaba por contribuir
para a formação de redes de consumo de drogas entre os mais vulneráveis,
conhecidas como as cracolândias. No contexto de pandemia, entretanto, elas
parecem estar mais desarticuladas, o que leva a pergunta sem que se possa
oferecer uma resposta de para onde essas pessoas estão indo, especialmente
àquelas pessoas vulneráveis que perderam o convívio em casa e perambulam pelas
ruas, sujeitas a grupos de extermínio, às desconfianças mútuas ou com alguma
sorte, formando redes de ajuda mútua ou beneficiados por ações assistenciais de
entidades não-governamentais.
o blog pode não concordar, no todo ou em parte, com o texto publicado
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