Devemos este registro ao Professor Amaro Hélio Leite da Silva
NAS TEIAS DA PANDEMIA: DE ALAGOAS À AMAZÔNIA
Elton Elvis Gomes Leão
Médico alagoano, residente em Manaus
Era
agosto de 1987, estava eu e mais alguns colegas na Pizzaria Sorriso, da esquina
da praça Sinimbu com a rua da Praia (Maceió). Havíamos acabado de sair da
reitoria da Ufal, onde fomos dar entrada no protocolo para emissão dos diplomas
do curso de medicina. Na pizzaria, uma colega estava comentando que num jornal
tinha uma matéria sobre contratação de médicos para o interior do Amazonas.
Falava das condições e dos benefícios complementares a ser dado pelas
prefeituras. Entre brincadeira descompromissada e desejo de aventura, eu e o
colega João Rosa decidimos ir. Nosso objetivo era passar dois anos e retornar,
fazer residência médica e exercer a profissão em nossas cidades, Arapiraca e
Palmeira dos índios.
Chegamos
em Manaus no dia 14 de setembro, em pleno verão amazônico. Calor de 40°,
umidade abafante. Fomos para um hotel de trânsito do Projeto Rondon que estava
dando apoio neste projeto com o governo do Amazonas. Após um mês em Manaus,
resolvendo os trâmites e nos adaptando a região, fui para a cidade de São
Sebastião do Uatumã, no rio Uatumã; o João foi para Novo Aripuanã, às margens
do rio Madeira. Após um ano em São Sebastião, fui para a cidade de Tefé, no rio
Solimões (Amazonas), trabalhar na Fundação SESP. Um ano depois, fui trabalhar
na Petrobras, numa área nova de petróleo na Amazônia. Hoje, trinta anos depois,
estou próximo da aposentadoria.
Minha
passagem pela Amazônia foi uma grande experiência. Tudo diferente do que já
tinha visto: história, geografia, sociologia, modos de vida, culinária,
hábitos, fauna e flora, principalmente no interior. Como chegar nos confins sem
estradas? Os grandes rios, os barcos que transportam gente, mercadorias e tudo
que se possa imaginar de um canto para outro. Enfrentei a epidemia do cólera no
início dos anos 90, tratei pacientes. Fui testemunha deste quadro excepcional
que dizimou vidas durante séculos pelo mundo, principalmente os mais pobres.
Recentemente,
ganhei um livro sobre o cólera, no século XIX em Alagoas, do amigo Amaro Leite,
esposo de minha sobrinha Lucyana. O livro Alagoas nos Tempos do Cólera,
do historiador Sávio de Almeida, fala da doença, como chegou, se difundiu e
matou pessoas nos povoados e vilas de Alagoas. Do litoral ao sertão, passando
pelo agreste, dezenas, centenas e milhares de almas subiram aos céus em
decorrência do cólera. Li este livro já neste ano, início de março de 2020, e fiquei
estarrecido com os registros. Vilas com duzentas pessoas, onde morriam cem, ou
seja, cinquenta por cento da população. Imaginar esse percentual para hoje com
a Covid-19 seria uma catástrofe para os nossos dias como foi para àquela época.
A taxa hoje de óbitos é de três a seis por cento para os casos confirmados e
não para a população total, como foi na epidemia daquele século em nosso
estado. Mesmo impactado pela leitura do livro – e já sabendo da epidemia da
Covid-19 que assolava parte da China e dava sinais na Europa, principalmente
Itália, Espanha, França e Inglaterra –, não imaginei a devastação que esta
pandemia do coronavírus iria causar no mundo, não só em termos de saúde, mas na
economia, na medicina, na política, na ciência, nos costumes, na religiosidade;
enfim, em todos os aspectos da vida, inclusive no Brasil.
Conheci
a Covid-19 não só como médico, mas senti na própria pele também como paciente.
Adoeci no início da epidemia, acho que estava entre os duzentos primeiros
pacientes do Amazonas. Hoje, junho de 2020, o número de casos já ultrapassou os
60 mil, com mais de 2.600 mortes oficiais no Estado. Sofri por mais de vinte
dias. Como médico, me esforcei para não ir ao hospital, pois em se tratando de
doença nova, pouco se sabia como proceder, ainda mais eu, portador de
trombocitopenia (doença que dificulta a coagulação), ter que tomar
anticoagulantes para reduzir as consequências de um dos efeitos e principal
causa de hospitalização da Covid-19, que são as microcoagulacões pulmonares que
levam a quase asfixia dos pacientes.
Essa
experiência como paciente, foi relatada para os meus colegas de infância do Colégio
Quintela Cavalcante (Arapiraca-AL), como se segue abaixo.
Queridos
amigos e amigas do Quintela, a emoção foi grande com as mensagens do vídeo que
me enviaram hoje. Alguns de vocês têm me enviado mensagens de apoio, fé e esperança.
Estou muito agradecido por tudo. Essa doença é uma maldição que vai levar
décadas para se entender e curar as feridas sociais, econômicas e espirituais.
Hoje,
estou no 18º dia de doença. Se eu pudesse fazer uma escala de gravidade e dizer
onde cheguei, eu diria que entre 0 (sadio) e 10 (óbito), eu diria que cheguei a
5. Aparentemente não grave, mas no conjunto geral um quadro angustiante,
desesperador. Dores por todo o corpo, dor de cabeça, em torno dos olhos,
irritação de garganta, falta de apetite, desaparecem o olfato e o paladar, você
fica prostrado. Seu corpo só pede cama, silêncio e penumbra. No meu caso,
graças a Deus não tive tosse, falta de ar ou febre alta nos 10 primeiros dias.
Eu achava que depois desses dias eu entraria para cura, engano meu, veio uma
fase silenciosa de agressão pulmonar. Comecei a cansar, respiração curta, um
pouco de tosse e ainda a prostração. Todos os medicamentos que precisava pedia
para as farmácias e tomava em casa. Passei noites e noites sem dormir, me
levantava para ir ao banheiro, respirando lentamente, trêmulo; quando voltava,
ficava sentado na beira da cama respirando mais profundamente para poder me
acalmar e tentar dormir, lembrando que estava há mais de 15 dias dormindo meio sentado,
recostado na cabeceira da cama. Dormir na horizontal me sufoca. Algumas vezes,
tomei meio comprimido de Lexotan para poder dormir. Quando percebi que meu
quadro estava saindo do controle, fui à uma clínica, realizei exame de sangue,
Rx de tórax e Tomografia que mostrou indícios de Covid-19, imagem em vidro
fosco nas bases dos pulmões. Realizei o teste específico e aguardei o
resultado.
Tenho
problemas de trombocitopenia há alguns anos. Conversei com minha médica que me
acompanha e falei que minhas plaquetas estavam em 52mil, quando o mínimo normal
é 150mil. Ela de imediato me prescreveu a medicação indicada para Covid-19, já
estava no segundo dia de tratamento. A sensação de prostração e falta de ar
diminuíram, estava me alimentando melhor... se Deus quiser com as orações que
tenho recebido, o carinho, as mensagens e os medicamentos hei de superar esta
tormenta.
Cuidem-se
e cuidem dos seus, não paguem para ver como é a doença. Como já afirmei
anteriormente, apesar de me classificar numa escala 5 da doença, isso poderia
ser banal, mas não é. Há oito dias, eu achava que estava num voo cego noturno.
Tudo passava pela minha cabeça, a baixa oxigenação me deprimia. Eu ficava
imaginando que mais três dias eu poderia estar entubado pois a evolução
pulmonar era rápida, principalmente com minhas plaquetas baixas. Imaginava que
se eu morresse não teria nem direito a velório, sairia direto do necrotério
para o cemitério. Ainda trabalhando, não estava preparado para entregar os
pontos. E minha esposa?... e filhos, ainda em formação.
Há
mais de 15 dias não vejo TV, por não poder me concentrar (o ruído) e, principalmente,
por ver o destino de milhares de pessoas. Aqui no Amazonas, mais de dez
profissionais de saúde já perderam a vida. Ainda não estou curado, ainda não
estou seguro se vou ter alguma complicação, mas me sinto melhor que há 5 dias
atrás.
Finalmente,
gostaria de dizer que se isolem, não liguem para o tédio da rotina, desenvolvam
o ócio criativo, se reinventem com as crianças em casa... a vida é bela, é doce
e merece ser vivida dentro do que Deus nos programou e não por efeitos de um
vírus inconsequente.