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sábado, 6 de junho de 2020

Clébio Correia. A ANTIPANDEMIA DO AXÉ. [Memória da pandemia nas Alagoas]


                                       

A ANTIPANDEMIA DO AXÉ

Prof. Clébio Correia – NEAB/UNEAL


Reza um itan (conto) Nagô que orixá Iku (a morte) não sabia mais onde depositar os corpos de suas vítimas e propôs um pacto à terra, que também reclamava de tudo produzir para os homens sem receber nada em troca. A terra aceitou acolher os corpos humanos tocados pela morte, todavia exigiu que, a partir de então, estes lhes fizessem oferendas de tudo que comem, de forma que os que não cumprissem seriam cobrados por Iku. Este aceitou, mas pediu para incluir no pacto Arun (a doença), sua esposa, pois esta prepararia tudo para que ambos, terra e morte, alcançassem seus propósitos.

Nesse conto há muito da concepção de mundo dos povos de terreiros alagoanos, sobretudo em tempos de pandemia. A doença, sob esse olhar, não é fatalidade ou punição. Ela se apresenta como instrumento de reequilíbrio de um ciclo (o pacto) natural que fora violado, sintetizado na expressão Nagô: “o que a terra dá, a terra come,” pois tudo dela provém e a ela pertence, inclusive o ser humano, humus hominizado. Na verdade, para os povos de matriz africana todos os seres estão interligados, todos são elos de um sistema cósmico antropocêntrico que liga os homens entre si, com a natureza, com as divindades e com os ancestrais, onde todos estão em todos, ou como dizem os bantu, através do termo umbutu: sou porque somos.

Essa ótica não comporta o indivíduo absolutizado. Ao contrário, tudo que compõe o sistema flui alimentado por uma corrente de energia vital, o Axé, que se expande eternamente, em um fluxo constante de trocas, ou seja, de reciprocidades, onde viver significa dar e receber. O acumular, ao romper esse fluxo, gera o desequilíbrio, a perda do Axé que esvai toda a vitalidade, atraindo a morte, pois a vida só é gerada em comunhão. Não há Axé de um só, todo Axé é produzido no compartilhamento, exigindo a presença do Outro, da alteridade.  Por isso mesmo, não há terreiro individual, mas sempre de uma comunidade, uma família de Axé.   

Assim, para os povos de terreiro a pandemia é o sintoma de uma sociedade cuja reprodução se baseia na morte, pois incapaz de produzir Axé. Nela, o ideal de humano foi reduzido ao do indivíduo acumulador, modelo bem sucedido a ser imitado, solitário em suas herméticas residências. Ele de tudo se apropria para consumir até o esgotamento total. O vírus, nada mais é do que a metáfora viva dessa atomização predatória em escala microscópica.  É individualista como o próprio ser que parasita. Para ele não há reciprocidade com o humano, apenas a auto sobrevivência a todo o custo, inclusive da própria vida da qual se alimenta.

O terreiro é a antítese da necrosociedade. Nele tudo é vida porque é oferenda (ebó), é troca, reciprocidade. Não há dicotomização pois, assim como Orixá Exu, o terreiro tudo conecta de forma complementar, bem e mal, vivos e mortos, visível e invisível. Por isso no terreiro não se toma mas se trocam bençãos: mais novos com mais velhos, visíveis com invisíveis, humanos com divindades e vice e versa. Tudo se retroalimenta de todos, numa linguagem distributiva incompreensível ao indivíduo acumulador. O ser do terreiro o é enquanto comunidade em todas as situações e passeia com olhos de estrangeiro no necroterritório pandêmico, pois sua terra é fonte de vida, de fartura, de acolhimento. Invisíveis enclaves na sociedade da escassez e da miséria, os terreiros são terras fecundas onde não se passa fome e sua gente é “povo de barriga cheia”, pois neles tudo começa e termina em comida, em partilha, para que o Axé possa ser multiplicado.

Em sentido inverso, o vírus exige o isolamento social e a pandemia – que não é o vírus, mas a insana forma de sociabilidade que o liberou e que pretende enfrenta-lo em seus próprios termos - estabelece o “salve-se quem puder”, acentua a individualização, estoca-se comida e relativiza-se a vida. Os idosos tornam-se danos residuais. Enquanto isso, os povos de terreiro, antipandemicamente, sacralizam anciãos e anciãs, curvam-se às forças da natureza, aos ancestrais, partilham e oferendam o seu melhor alimento em nome de toda a humanidade. Até da virótica, da qual só recebem preconceito e desprezo.

São dois sistemas opostos e, nessa oposição, a beleza e vitalidade do segundo não pode ser suportada pela pulsão de morte do primeiro que, na impossibilidade de “quebra-lo” permanentemente, opta por silenciar sua existência, na tentativa de sua morte simbólica. Dessa forma, o necroestado continua desconhecendo os povos de terreiros como sujeito de direito. Assim na pandemia como na história, na morte como na vida.

Diaspóricos, os afro-alagoanos reconstituíram nos terreiros suas aldeias ancestrais. Hoje, impossibilitados pelo vírus de nelas habitarem, nem por isso descuidam de pagar tributo a Obaluaye – o senhor da terra – e, generosamente, fazem de seus corpos, isolados fisicamente, o território ancestral onde o Axé é ativado a cada vela e em cada pipoca arriada para limpar o mundo e trazer o humano à plenitude da sua telúrica existência, afinal a terra dá e a terra come.     





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