A ANTIPANDEMIA DO AXÉ
Prof. Clébio Correia – NEAB/UNEAL
Reza um itan (conto) Nagô
que orixá Iku (a morte) não sabia mais onde depositar os corpos de suas
vítimas e propôs um pacto à terra, que também reclamava de tudo produzir para
os homens sem receber nada em troca. A terra aceitou acolher os corpos humanos
tocados pela morte, todavia exigiu que, a partir de então, estes lhes fizessem
oferendas de tudo que comem, de forma que os que não cumprissem seriam cobrados
por Iku. Este aceitou, mas pediu para incluir no pacto Arun (a
doença), sua esposa, pois esta prepararia tudo para que ambos, terra e morte,
alcançassem seus propósitos.
Nesse conto há muito da
concepção de mundo dos povos de terreiros alagoanos, sobretudo em tempos de
pandemia. A doença, sob esse olhar, não é fatalidade ou punição. Ela se apresenta
como instrumento de reequilíbrio de um ciclo (o pacto) natural que fora violado,
sintetizado na expressão Nagô: “o que a terra dá, a terra come,” pois
tudo dela provém e a ela pertence, inclusive o ser humano, humus hominizado.
Na verdade, para os povos de matriz africana todos os seres estão interligados,
todos são elos de um sistema cósmico antropocêntrico que liga os homens entre
si, com a natureza, com as divindades e com os ancestrais, onde todos estão em
todos, ou como dizem os bantu, através do termo umbutu: sou
porque somos.
Essa ótica não comporta o
indivíduo absolutizado. Ao contrário, tudo que compõe o sistema flui alimentado
por uma corrente de energia vital, o Axé, que se expande eternamente, em
um fluxo constante de trocas, ou seja, de reciprocidades, onde viver significa dar
e receber. O acumular, ao romper esse fluxo, gera o desequilíbrio, a perda do Axé
que esvai toda a vitalidade, atraindo a morte, pois a vida só é gerada em
comunhão. Não há Axé de um só, todo Axé é produzido no
compartilhamento, exigindo a presença do Outro, da alteridade. Por isso mesmo, não há terreiro individual,
mas sempre de uma comunidade, uma família de Axé.
Assim, para os povos de
terreiro a pandemia é o sintoma de uma sociedade cuja reprodução se baseia na
morte, pois incapaz de produzir Axé. Nela, o ideal de humano foi reduzido ao do
indivíduo acumulador, modelo bem sucedido a ser imitado, solitário em suas
herméticas residências. Ele de tudo se apropria para consumir até o esgotamento
total. O vírus, nada mais é do que a metáfora viva dessa atomização predatória
em escala microscópica. É individualista
como o próprio ser que parasita. Para ele não há reciprocidade com o humano,
apenas a auto sobrevivência a todo o custo, inclusive da própria vida da qual
se alimenta.
O terreiro é a antítese da
necrosociedade. Nele tudo é vida porque é oferenda (ebó), é troca,
reciprocidade. Não há dicotomização pois, assim como Orixá Exu, o
terreiro tudo conecta de forma complementar, bem e mal, vivos e mortos, visível
e invisível. Por isso no terreiro não se toma mas se trocam
bençãos: mais novos com mais velhos, visíveis com invisíveis, humanos com
divindades e vice e versa. Tudo se retroalimenta de todos, numa linguagem distributiva
incompreensível ao indivíduo acumulador. O ser do terreiro o é enquanto
comunidade em todas as situações e passeia com olhos de estrangeiro no
necroterritório pandêmico, pois sua terra é fonte de vida, de fartura, de
acolhimento. Invisíveis enclaves na sociedade da escassez e da miséria, os
terreiros são terras fecundas onde não se passa fome e sua gente é “povo de
barriga cheia”, pois neles tudo começa e termina em comida, em partilha, para
que o Axé possa ser multiplicado.
Em sentido inverso, o vírus exige
o isolamento social e a pandemia – que não é o vírus, mas a insana forma de sociabilidade
que o liberou e que pretende enfrenta-lo em seus próprios termos - estabelece o
“salve-se quem puder”, acentua a individualização, estoca-se comida e relativiza-se
a vida. Os idosos tornam-se danos residuais. Enquanto isso, os povos de
terreiro, antipandemicamente, sacralizam anciãos e anciãs, curvam-se às forças
da natureza, aos ancestrais, partilham e oferendam o seu melhor alimento em
nome de toda a humanidade. Até da virótica, da qual só recebem preconceito e
desprezo.
São dois sistemas opostos e,
nessa oposição, a beleza e vitalidade do segundo não pode ser suportada pela pulsão
de morte do primeiro que, na impossibilidade de “quebra-lo”
permanentemente, opta por silenciar sua existência, na tentativa de sua morte
simbólica. Dessa forma, o necroestado continua desconhecendo os povos de
terreiros como sujeito de direito. Assim na pandemia como na história, na morte
como na vida.
Diaspóricos, os
afro-alagoanos reconstituíram nos terreiros suas aldeias ancestrais. Hoje, impossibilitados
pelo vírus de nelas habitarem, nem por isso descuidam de pagar tributo a Obaluaye
– o senhor da terra – e, generosamente, fazem de seus corpos, isolados
fisicamente, o território ancestral onde o Axé é ativado a cada vela e em cada
pipoca arriada para limpar o mundo e trazer o humano à plenitude da sua
telúrica existência, afinal a terra dá e a terra come.