Luiz Sávio de Almeida. O virus enquanto espero o tempo passar (IV): em torno do virus, palavra e guerrilha
Luiz Sávio de Almeida
É de se perguntar
sobre o que o virus fez com o vocábulo, o que ele tem a ver com quarenta! Não
sei dizer, quantos dias... Faz tempo que o mundo – que alguns chamam de
pós-moderno – sente a necessidade dos muros d’antanho, de fortalezas abrigando partes de povos, por detrás de
imensos paredões de pedra. Tempos
absolutamente diferentes dos atuais e é interessante ver a simplicidade com que
o Diccionario de Lima e Barcelar de 1783 (1783, 187) trata a epidemia como “Doença
de muito povo”. Fica muito bem posto, que epidemia sempre exige uma coletividade,
a que os autores estão chamando de povo e que pode ser visto como um
ajuntamento de gente. Naqueles idos do
século XVIII, Lima e Barcelar consideram o indistinto do povo e a este
indistinto podemos acercar a quadraginta[UdW1] [UdW2] .
Já o Bluteau (1789),
vai dizer que epidemia se trata do “andaço
de doença”. E este termo andanço
será ligado também, em seu dicionário a contágio e corrupção dos ares. É uma
bela palavra e inclusive traz movimento, jeito de se fazer. Fica mais claro,
quando ele fala em um verbo que, atualmente, de modo raro a gente conjuga:
desinfeccionar. Fomos à procura, em nosso dia a dia de fala, da ajuda de um
outro verbo para associar ao substantivo: acabar com a infecção. Parece-me que somos mais apegados ao
substantivo, embora o verbo nos forneça a intensidade de uma ação: desinfecionar[UdW3] .
A minha casa, a
minha rua, o meu tempo devem, se desinfecionar; sei que respirar sem virus é
impossível e, na verdade, nada tenho contra ele; tenho contra a quem facilitou a sua vida. Ele
nasceu perfeito, pois até agora, pelo que sei, ainda não se conseguiu apontar
um seu calcanhar de Aquiles. Assim, ao que parece do ponto de vista da
evolução, para onde mais ele iria a não ser para mutações e nelas atuam a velha
noção de seleção natural. Pelo que sei, já sofreu quatro mutações e os nossos
vieram dos lados europeus da Itália, depois, não se pode precisar o exato
momento e que passou à transmissão comunitária e foi do Oiapoque ao Chuí, e embora sendo fisicamente o mesmo virus,
passou a ser uma pluralidade cultural no país, do mesmo
modo que seria diferente ser na periferia de New York e ser no cinturão do
milho ou mais especificamente, em Michigan, Estados Unidos.
Uma intention recta está
presente em nossa guerra e é uma guerra mais do que justa e de tão densa e
forte que nos mudará de diversas formas, especialmente nos levando a pensar em
um sistema de saúde diferente, tomado de surpresa não pelo mistério do virus, mas pelo combate
universal, numa marcha que jamais foi tão
veloz, a se pensar que há pouco tempo estava na China e de repente
estava na Europa, Brasil e Alagoas, numa velocidade que a economia criou para
si e terminou para ele. Vamos nos lembrar do Ebola, que terminou recolhido e
pensar neste que terminou em todo mundo. Se eu assumisse o que existe por
detrás da expressão, ousaria dizer que estamos diante do primeiro virus
acentuadamente pos-moderno.
O resultado foi
trágico: no dia de hoje, no Brasil, os estados estão à beira da exaustão e se
prevê para este mês entrante a ocupação a bem dizer total dos leitos
disponíveis. Não é apenas a quantidade que afeta o sistema, mas os dias de ocupação que ficam
em torno de 20, conforme matéria publicada na UOL e de autoria de Canzian
(2020). Peço desculpas a todos os entendidos, mas não confio muito em
resultados alarmantes; sei que são possíveis, mas sempre acho que haverá alguma
forma de combate. A mesma matéria de Canzian (Idem) nos fala de estudo em que
se projeta, mantida a tendência, que teremos 40.000 infecções diárias no Brasil
a partir de julho, segundo pesquisa da Federal de Minas Gerais. Sempre tomo
estes dados como alerta, mas espero que se contorne este caminho[UdW4] .
Enquanto isto, leio no Diário do Nordeste , que a polícia
prendeu um pai de santo, em cuja casa se fazia toque para expulsar o virus do
corpo de um de seus filhos. Seria uma mutação dos tempos de inquisição? Fiquei
pensando: avalie se a modo pega... O
virus seria uma entidade descida
para fazer o mal, perturbar e tinha de
ser exorcizada. Era um toque de exorcismo e de fato quando rezamos,
oramos ou praticamos atos semelhantes, estamos a exorcizar Coronas e mais
Coronas, como se estivessem abertas as portas do inferno[UdW5] [UdW6] .
Não me parece possível, ainda, de se ter uma
ideia – pelas estatísticas publicadas
pela Secretaria de Saúde do Estado de
Alagoas –, sobre como vem se processando a distribuição espacial do virus
em Alagoas. Sabemos de registros para
determinados municípios, mas não há, ainda, a possibilidade de se traçar um
perfil do movimento o que, talvez, deva-se ao fato de que ele se encontra
marcadamente situado em Maceió, o grande centro urbano do Estado, não tendo
ocorrido um marcante aparecimento nas áreas do interior, mas ela começa a
surgir nestes fins de abril, como iremos ver.
É preciso deixar
claro, que esta situação está sendo
argumentada, por nós, no dia 24/04/2020 e com base no Boletim nº 46 do Centro de Informações Estratégicas e Resposta em Vigilância
em Saúde CIEVS/AL, da Secretaria mencionada no início deste
parágrafo. Trata-se de material de bom nível e consequente por parte dos
profissionais envolvidos na sistematização dos dados. Claro que deve estar
pesando a chamada subnotificação, mas isto não é somente em Alagoas, mas no Brasil como um todo e decorre,
especialmente, da velocidade de diagnóstico que não existe, segundo leio,
e que seja confiável em curto espaço de
tempo. Existem estimativas de taxas e subnotificação, mas são baseadas em
comportamento do virus em outros países. Preciso sentir como se fará a distribuição
espacial do virus, que não pode ser confundida com área por ele ocupada.
O que nós estamos
chamando de processo de distribuição espacial, pressupõe, simplesmente, movimento, deslocamentos e isto redunda em
algo radicalmente diferente de uma
simples plotagem, de uma verificação pausada em um sistema cartesiano. Claro
que plotar é uma informação essencial, mas jamais suficiente, especialmente
quando entendermos o espaço como sendo o que é gerado no assenhoramento
da natureza. Simples, jamais poderia ser
confundido com desnecessário: sem dúvida, é preciso plotar, mas é fundamental
estudar a provável existência de caminhos e rotas e, nisto, discutir se estamos
ou não diante de possível sistematização dessas rotas, onde se pode ter uma
pergunta capital a ferir os modi operandi: de onde o virus sai e para onde o
virus vai, devendo ser notado que ele não sai e se vai sem poder ficar. É de se notar, portanto, que ligamos o virus à ideia de espaço e, assim,
estamos afirmando a possibilidade de lidar com a sua historicidade e, na
verdade, consideramos que a única possibilidade dele existir, para nós, é
estando neste complexo de situações onde tem vida humana e, portanto,
construção, historicidade. Se desejarmos ampliar a discussão, podemos afirmar
que toda a nossa análise histórica, necessariamente, vai ter de entendê-lo
dentro desta construção-espaço e, mesmo quando o tratamos como unidade
biológica, ela somente fará sentido nas velhas condições de tempo e lugar, e,
desta forma, exigindo que a categoria de análise fique clara. Neste rumo da
argumentação, poderia ser posta em evidência que o virus é a desigualdade
social, no que Alagoas é elucidativa.
A guerrilha e a virose
Numa sexta-feira, 13 de Março, era dito que
mantínhamos dez suspeitos e todos eles localizados em Maceió; deu-se a
confirmação, em pessoa vinda da Itália e aí começa, pelos menos na narrativa
oficial, o périplo do virus nas Alagoas. Jamais alguém poderá determinar ter
sido aquele virus, o pai dos virus alagoanos, mas sem dúvida deveria ser descendente dos que germinaram na Itália e
começa, no seio de nossa pobreza, a história de uma doença que veio de fora e
rapidamente se infiltrou em áreas cujas fronteiras estavam em aberto e não poderia
ser ao contrário. Vamos considerar, para
efeito destas notas que a partir daí,
ele entra em nosso espaço e assume uma determinada velocidade de
operação, o que vou considerar como sendo uma velocidade de guerrilha contra
uma defesa fadada ao convencional dos enfrentamentos, sem a capacidade
alternativa que o virus tem de estar em qualquer ponto do território e nas
circunstâncias que cabem-no dentro do espaço.
Nesta guerra que estamos vivendo, podemos ver o virus como
operando um conjunto de combatentes
magistralmente montado e conduzindo,
inclusive por ser poderosa máquina, cada
um com fantástico poder letal. Nós, ao
contrário, temos de fazer o
enfrentamento com uma parafernália instrumental caríssima e sem capacidade de
alta movimentação: estamos em rapidamente esgotáveis pontos fixos, nunca em ataque e parece estranho: sempre em
recuo. E isto é um acentuado prejuízo na luta pois o que nos resta como grande
combate é o que chamam confusamente de distanciamento social. O meliante anda
sem informar para onde vai: sem dúvida, está em Maceió e vai sair e outros
sempre estarão procurando portas para entrar e meios de ficar.
Trata-se de um guerrilheiro privilegiado, pois é invisível;
é quase como os vietcongs de Ho Chi Min que viviam debaixo da terra. E o facinosro repete a mesma tática onde quer
que esteja, apesar de ser diferente como acontece em cada lugar: quer seja em
Maceió, quer seja na Capela, o procedimento é o mesmo e o alvo é certeiro:
boca, nariz, olhos, tanto fazendo se é rico ou pobre, velho ou moço, do Penedo
ou de Piranhas. É como os dribles do Garrincha que institucionalizou o João. O
infeliz precisa apenas ter acesso e se não tem de imediato, pode demorar-se à
espera, não se sabe quanto tempo, não se sabe onde pousou para se ir morrendo
ou ser morto na atividade de drogas que têm de terminar em cida, como terminam
inseticida, formicida, germicida: coronicida.
[UdW2]LIMA,
Bernardo de. Dicionário da língua portuguesa em que se acharão dobradas do que traz Bluteau, e todos os mais
dicionários juntos. Lisboa: Oficina de José de Aquino Bulhões, 1873.
[UdW3]BLUTEAU,
Rafael. Dicionário da língua portuguesa
composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e acrescentado por Antônio de
Moraes Silva, natural do Rio de Janeiro. Lisboa: Oficina de Simão Tadeu
Ferreira, 1789.
[UdW4]CANZIAN, Fernando. Leitos de UTI do SUS devem acabar em maio na maioria dos estados UOUL030502020
Projeto Memória da
Pandemia nas Alagoas
Coordenação
Luiz Sávio de Almeida
e José Carlos Silva de Lima
O blog pode concordar
ou não, em parte e no todo, com a matéria publicada
Nosso objetivo é
deixar um painel diversificado sobre a pandemia nas Alagoas
Agradecemos a Eduardo Bastos