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quinta-feira, 7 de maio de 2020

Maria Augusta Tavares. De medo também se vive. Memória da pandemia em Alagoas. (XXXVI)




De medo também se vive
Maria Augusta Tavares
Professora Doutora e vivente das Alagoas


O desconhecido costuma exercer fascínio e medo. Para o bem e para o mal nem sempre o medo predomina.
Não fossem os curiosos, os ousados, os aventureiros, os que são movidos pelo fascínio do novo, em lugar desse mundo global, onde hoje vivemos, as pessoas estariam segregadas, vivendo em pequenos grupos, isoladamente. Isso é bom ou mau? Alguém poderá listar, nesse mundo hipotético e ensimesmado, inúmeras vantagens. Provavelmente, essas vantagens tenham como  primeiro objeto o coronavírus. Nesse suposto isolamento, não haveria risco de contágio e de disseminação rápida de qualquer doença, uma vez que cada povo já vivia distanciado um do outro.
Que ideia louca! A meu favor, o tempo não está para normalidades. A minha hipótese por certo implicaria condenar cada pequeno povo ao isolamento para todo o sempre. Convenhamos que, dadas as imensas conexões promovidas pelo desenvolvimento, é impossível conceber um modo de vida com essas características. Hoje, nem os indígenas, apesar das políticas de preservação, conseguem viver completamente isolados da sociedade global.
Voltamos ao começo: apesar de todo o desenvolvimento, apesar de o mundo ter-se tornado uma aldeia global, onde as descobertas estão acessíveis a todos os que podem pagar por elas, estamos diante de um desconhecido, que a ninguém faz concessão. Não diria que pobres e ricos o enfrentam da mesma maneira, mas não vou enveredar pela discussão de classe, porque é outro o foco. Interessa-me falar do medo que esse desconhecido nos causa. Arrisco-me a dizer que a maioria – de pobres e ricos –  está com medo.
Traiçoeiramente, o que parecia conhecido sofreu mutações e ao assumir uma nova identidade colocou a humanidade diante de perguntas para as quais, até agora, não se tem resposta. O coronavírus, segundo os cientistas, é um velho mutante, uma espécie de juiz, que se torna ministro com o propósito de aumentar a abrangência de sua letalidade. Combatê-lo requer, novamente, muita pesquisa, muitas tentativas e erros, até que se descubra uma vacina, tal como aconteceu com tantas outras doenças. Mas, até lá, ou adotamos o medo como companhia ou morremos.
Covardemente, eu tenho morrido todos os dias. Há dias em que morro uma vez, há outros em que morro tantas vezes, que até confundo o personagem. A mim, o coronavírus se apresenta de diferentes formas, nunca sozinho, sempre aos bandos: a Coronamãe  à frente, a abrir caminho para milhares de coroninhas, que não pedem licença para invadir minha cama, minha mesa, minhas compras, minhas roupas, minha comida, meu corpo.
Sei que, objetivamente, não podemos culpar ninguém por essa invasão, tampouco podemos brigar com um parasita, cuja existência está condicionada à disponibilidade dos nossos corpos, para que possa encarnar-se sucessivas vezes e banquetear-se como lhe aprouver. Eu só posso ser frontal a ele, se deixar que ele exista em mim. Na melhor das hipóteses, eu posso me prevenir contra ele, embora não seja fácil, pois, como num ritual de posse do vodu africano, o coronavírus transforma o homem possuído no seu cavalo. E monta, sem pedir licença.
         O desconhecido costuma exercer fascínio e medo. Para o bem e para o mal nem sempre o medo predomina.

Não fossem os curiosos, os ousados, os aventureiros, os que são movidos pelo fascínio do novo, em lugar desse mundo global, onde hoje vivemos, as pessoas estariam segregadas, vivendo em pequenos grupos, isoladamente. Isso é bom ou mau? Alguém poderá listar, nesse mundo hipotético e ensimesmado, inúmeras vantagens. Provavelmente, essas vantagens tenham como  primeiro objeto o coronavírus. Nesse suposto isolamento, não haveria risco de contágio e de disseminação rápida de qualquer doença, uma vez que cada povo já vivia distanciado um do outro.
Que ideia louca! A meu favor, o tempo não está para normalidades. A minha hipótese por certo implicaria condenar cada pequeno povo ao isolamento para todo o sempre. Convenhamos que, dadas as imensas conexões promovidas pelo desenvolvimento, é impossível conceber um modo de vida com essas características. Hoje, nem os indígenas, apesar das políticas de preservação, conseguem viver completamente isolados da sociedade global.
Voltamos ao começo: apesar de todo o desenvolvimento, apesar de o mundo ter-se tornado uma aldeia global, onde as descobertas estão acessíveis a todos os que podem pagar por elas, estamos diante de um desconhecido, que a ninguém faz concessão. Não diria que pobres e ricos o enfrentam da mesma maneira, mas não vou enveredar pela discussão de classe, porque é outro o foco. Interessa-me falar do medo que esse desconhecido nos causa. Arrisco-me a dizer que a maioria – de pobres e ricos –  está com medo.
Traiçoeiramente, o que parecia conhecido sofreu mutações e ao assumir uma nova identidade colocou a humanidade diante de perguntas para as quais, até agora, não se tem resposta. O coronavírus, segundo os cientistas, é um velho mutante, uma espécie de juiz, que se torna ministro com o propósito de aumentar a abrangência de sua letalidade. Combatê-lo requer, novamente, muita pesquisa, muitas tentativas e erros, até que se descubra uma vacina, tal como aconteceu com tantas outras doenças. Mas, até lá, ou adotamos o medo como companhia ou morremos.
Covardemente, eu tenho morrido todos os dias. Há dias em que morro uma vez, há outros em que morro tantas vezes, que até confundo o personagem. A mim, o coronavírus se apresenta de diferentes formas, nunca sozinho, sempre aos bandos: a Coronamãe  à frente, a abrir caminho para milhares de coroninhas, que não pedem licença para invadir minha cama, minha mesa, minhas compras, minhas roupas, minha comida, meu corpo.
Sei que, objetivamente, não podemos culpar ninguém por essa invasão, tampouco podemos brigar com um parasita, cuja existência está condicionada à disponibilidade dos nossos corpos, para que possa encarnar-se sucessivas vezes e banquetear-se como lhe aprouver. Eu só posso ser frontal a ele, se deixar que ele exista em mim. Na melhor das hipóteses, eu posso me prevenir contra ele, embora não seja fácil, pois, como num ritual de posse do vodu africano, o coronavírus transforma o homem possuído no seu cavalo. E monta, sem pedir licença.



[1] Professora Doutora. Vivente das Alagoas.

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