quarta-feira, 30 de setembro de 2020
Luiz Sávio de Almeida. A Penha em Penedo: uma rua em preto e branco e suas janelas coloridas
Penha en Penedo: una calle y sus coloridas ventanas
Rua da Penha a Penedo: una strada in bianco e nero e le sue finestre colorate
Rua da Penha in Penedo: a street, black and white, and its colorful windows
Rua da Penha à Penedo: une rue en noir et blanc et ses fenêtres colorées
Um pequeno bilhete sobre uma Rua em Penedo
ALMEIDA, Luiz Sávio de. A Penha em Penedo: uma rua em preto e branco e suas janelas coloridas. Tribuna Independente. Maceió, 22 abr. 2012. Contexto
Estamos desenvolvendo um trabalho de documentação sobre
Penedo e nosso destaque é a memória da Rua da Penha. Sem dúvida, é um trabalho
que passa por nossa vida pessoal, desde que fomos criança naquele pedaço da
cidade. Contexto presta hoje, uma homenagem à cidade de Penedo e convida para esta
espécie de crisma da Rua da Penha, este ente maravilhoso do urbano penedense.
Este trabalho, graças ao Professor Sérgio Onofre, teve
condições de se desenvolver com a participação de duas alunas de turismo da
Universidade Federal de Alagoas, campus daquela cidade: Laissa Maria da Silva e
Francismara Costa Torres. Ambas são a
coluna mestra de nossa edição e merecem o nosso reconhecimento e o nosso elogio
pelo modo sério como encararam este grande exercício de evocação que anda na
fronteira entre uma etnografia urbana visual e a imagem como relação histórica
e estimulante da evocação. Este número bem poderia chamar-se Rua da Penha: evocação nº 1.
Sávio de Almeida
A Penha em Penedo: uma rua em preto e branco e suas janelas coloridas
O
que seria uma rua? O que estaria significando? Difícil conseguir uma forma de
juntar todas as possibilidades que a palavra abre, com vistas ao enfoque a dar
ao texto e às experiências vividas. Temos a rua como artéria, mas temos e densamente,
a rua como vida e experiência coletiva. Em
nosso caso, interessa uma rua que é componente da articulação do território da
cidade e que integra parte de suas áreas centrais baixas e altas. Aliás, diga-se de passagem, é pela Rua da
Penha que circulam, também, os que saem de Penedo em direção a norte e
ramificações a oeste e leste. A Rua da Penha é um tronco.
A rua e nosso lugar
Adentrando a Rua da Penha |
Desde que me entendo de gente, que a rua é uma subida e a descida sempre foi pelas Rosário estreita, a que vai desembocar no largo antes da Catedral. Isto é sinal que a cidade de Penedo é montada em partes altas e baixas. O Cajueiro Grande, de rua larga, possibilitava ser mão dupla e o trânsito pesado vindo do ou para o rio bifurca-se na praça do coreto. A Rua da Penha é uma linha que acompanha uma colina, rua plantada em corte e guardando correspondência ao Rosário Estreito e a intimidade entre ambas é testemunhada pela declividade do Beco da Preguiça, ele mesmo uma ladeira. A rua começa no oitão do Gabino Besouro e vai até a Praça, mas, na minha geografia urbana de Penedo, ela entra sem cerimônia pela Praça e para na altura do Colégio das Freiras, onde sempre demarquei o início do Cajueiro Grande.
Eu morei quase
defronte do Beco da Preguiça; entre ele e a casa dos meus pais, ficavam a
bodega do Seu Cazuza e a casa do Dr. Agnelo; na verdade, era somente atravessar
a rua e já estaríamos no Beco da Preguiça; na minha contagem, morávamos no
terceiro quarteirão, contando após a subida acentuada da ladeira em frente ao
Ginásio Diocesano que o povo chamava, não sei a razão, de Jegue Doido, na magia
de transformar o gê em ji. Vindo da parte baixa, a rua seria alimentada pelo
trânsito pesado que passasse pela frente do Jegue Doido, subisse a ladeira à
esquerda – não tinha como ir direto – e dobrasse à direita, na entrada ao lado
do Gabino Besouro; poderia vir pelo ramo do Convento, mas seria trânsito leve
de carro de passeio, como ainda hoje se dá.
Cada casa é um caso
O tempo mudou
a Rua da Penha; o belo sobrado em frente à Igreja caiu; algumas fachadas sentem
o peso do desgaste do tempo, mas ela, seja como for, sempre teve o poder de
evocar, de ser uma evocação. Em que
reside e se funda este poder, a não ser na possibilidade das lembranças sobre
ela e por via delas, a rua torna-se repartida, comungada pelos que vivem e
viveram seu mundo. Na Rua da Penha existem atualidades, desatualidades e
transições. A rua pressupõe algum tipo de comunhão sobre o passado e é uma
comunhão sobre a diversidade de vidas e soluções. Deste modo, nenhuma casa
repetiria a outra ou, em outras palavras, em cada casa uma história ou cada
casa é um caso e, como sabemos, cada caso é um caso de tal modo que evocar, no
caso, exige a filigrana das particularizações.
A diversidade de vidas na rua a
transforma em um mosaico do que se costuma chamar de destino, situações
individuais de vidas, numa série de imponderáveis que obrigatoriamente irão
fazendo sentido no fracionamento e algumas vezes no conjunto. E quanto mais a vida passa pela rua, quanto
mais vidas vão se formando, equacionando, propondo. Jamais nós poderíamos pensar que um casarão
cheio de troféus do Santa Cruz fosse um dia transformado em restaurante, que
uma casa seria transformada em centro de memória e nem mesmo jamais poderia pensar,
quando morávamos na Rua da Penha, que iríamos
buscar-nos nela e ela teria o que nos responder. A rua seria cativa da memória? Esta é uma
pergunta que martela as fotografias que foram produzidas nesta andada pela
fronteira entre uma etnografia urbana visual e a imagem como relação histórica.
Também se trata de uma andada entre uma relação pessoal e o produzido por
terceiro, de tal modo que o individual entra pela descaracterização das cores e
pelos cortes, a evocação necessitando do toque de quem evoca no aprofundamento
da relação entre o sujeito e sua história.
As famílias e os casos
A Rua da Penha
demanda unidades de habitação e nelas, via de regra, estão as famílias. A casa
tem uma história, a família também e ambas são um conjunto definido. São muitas
as vidas que passam em uma casa, e muitas as casas que fazem uma rua. As
histórias das casas e das famílias podem se cruzar de modo intenso, ou apenas
superficialmente no conjunto dos seus membros ou na particularidade de alguns.
Mormente quando as amizades eram traçadas com os pais de família, tinha-se
muito mais do que apenas a vizinhança; haveria o vizinho, mas haveria, também,
o amigo das famílias. Por via dos meus pais, a grande ligação na Rua da Penha
foi com Seu Pontes e Dona Virgínia; a ramificação secundária foi com o Dr.
Agnelo e Dona Ida. Um era o vizinho do
lado direito e, por sua vez, vizinho da Bodega do Seu Cazuza: este era o Dr.
Agnelo cujo consultório funcionava na
sala da frente de sua residência. O vizinho da frente era Seu Pontes e morava
na casa que antes fora da Dona América que, ao enviuvar, foi morar mais abaixo
com seus pais.
O senso da evocação
O engraçado é
que o nome Penha me faz interligá-la a Luiz Gonzaga e à Igreja da Penha no Rio
de Janeiro. Sempre dou este salto de Penedo para o Rio de Janeiro e lembro a
virada de carro que Luiz Gonzaga sofreu, merecendo um baião composto parece que
por seu irmão Zé Gonzaga: “Luiz Gonzaga não morreu, nem a sanfona dele
desapareceu, seu automóvel na virada se quebrou, o zabumba se amassou, mas o
Gonzaga não morreu”. Disso veio o agradecimento de Luiz Gonzaga em outro baião:
“Demonstrando a minha fé, vou subir a Penha a pé, pra fazer minha oração...”.
Ligo dois elementos importantíssimos em minha formação: Penha e Luiz Gonzaga.
O sanfoneiro foi à Penha para demonstrar a sua
fé; eu vou à Penha para me encontrar no velho calçamento, um imenso sabor de
minha experiência como alagoano, numa espécie de referência teórica de que
identidade é uma construção por via de experiências vividas: identidade é uma
vivência. Na minha arqueologia pessoal, juntam-se calçamento e Luiz Gonzaga no
grande abrigo de vida que é a rua. É que tudo evoca. Estou dentro de uma arte que foi dominada por
Nelson Ferreira em dois de seus frevos magistrais, justamente chamados de
Evocação 1 e 2. Nelson Ferreira sai chamando pelos nomes: Felinto, Pedro
Salgado, Guilherme, Fenelon... Individualiza para perguntar sobre os blocos
famosos. Os nomes naquele senso imenso de carnaval estão ligados a blocos.
Todos os nomes de minha Rua da Penha estão ligados a uma determinada situação,
a uma determinada condição.
Evocar... Quem
sabe todos estes nomes que surgem são infinitamente postos na história de uma
rua, que, na verdade, em parte era o resultado de um caminho, de uma saída da
cidade que se formava. Cada nome chama o que se recorda, e a rua passa a ter
uma vida espalhada e todo um imaginário se trança por uma lógica que aquele que
evoca nem mesmo conhece e nem percebe. Há todo um imaginário da Rua da Penha
que se dilui no tempo, como se as representações que se decorrem fossem
determinadas pela coletivização de um tempo que depois vai ser evocação. É que seguindo mais de perto a discussão de
Doise ou talvez a ampliando, na ordem das representações, o tempo é o elemento
fundamental. A rede que se estabelece
numa rua, tende a ser efêmera enquanto representação e permanente enquanto
evocação. É por isso, que a linguagem popular cria uma fórmula genial para desatar
este nó teórico que nosso texto vai dando: No meu tempo...! Os tempos então se confundem: o tempo da rua
será o tempo que era nosso e, interessante, por este trabalho tenho a noção de
que continua sendo.
A rua é uma
rede, como qualquer outra, ou seja, um modo específico de relações e, neste sentido,
tudo da rua é um relativo a tudo na rua.
Como se nota, há uma matriz que se apropria ao chamá-la de minha rua,
algo bem mais forte do que a rua em que moro. Quando o tempo a destaca de mim,
quando os entrelaçamentos ficam vazios da experiência atual, quando ela se
torna uma evocação ela assume uma condição específica na linha da memória. Toda
rua tem seus Felintos; é por isso que sempre foi belíssima a pergunta cheia de
homenagens feita por Nelson Ferreira: “Cadê Mário Mello?”. A experiência atual se
acaba quando o poeta diz: “Partiu para a eternidade!”. A eternidade que pode
ser evocada. Depois, o poeta frevístico traz a resultante da evocação ou o que
vamos chamar processo de evocacionalização na fórmula do lá vem Mário. Mário
Mello foi encontrado, assim como encontro a Rua da Penha, numa das formas de
sua vida.
Cadê a Rua da Penha? O que existe de permanente na rua enquanto ela existir é a própria rua, e ela é um composto pelo tempo; quando vou à Rua da Penha, vou a uma história e viabilizo a mim mesmo nesta história. Neste passo, eu sou também a alma da rua, elemento com o qual João do Rio teve um belíssimo encontro. A rua certamente tem alma e a rua é um universo de memória. É esta mistura de arrazoado teórico e evocação, que me levou a querer documentar sistematicamente a Rua da Penha, aquela rua suave, apesar de ser uma artéria de denso tráfico, uniformemente plasmada em renda, se bem, que se diferencie de padrão nas cercanias da pobre igreja, cujo teto me fascinava nos tempos de menino, com a santa nos olhando na missa, estivéssemos onde estivéssemos.
Neste ponto, vejo-me
diante de uma categoria que Graciliano Ramos ressaltou: o sentir. Ele escrevia
ao poder sentir. Isso é parte da minha fascinação pela Rua da Penha: eu consigo
efetivamente senti-la. O sentir dava longo curso à escrita do Graciliano Ramos;
desejo apenas comparar o sentir, pois qualquer outra seria descabida. Eu evoco
a Rua da Penha por poder senti-la. Tem algo a ver comigo e então eu posso
percebê-la. E a ela dou a minha dimensão pessoal. Será que eu sou a Rua da
Penha? Seguramente uma parte de mim é.
Sérgio Onofre
conseguiu duas estudantes para trabalharem e partimos para ensaiar a
documentação da Rua da Penha, começando pelas fotografias e vídeos, depois
cadastrando para realizarmos entrevistas com os moradores mais antigos da rua,
em busca de suas evocações. O trabalho tem como título provisório: Memorial da
Rua da Penha. Começamos e do material do primeiro teste que foi realizado,
escolhemos umas poucas fotos, transformando algumas em preto e branco e
realizando cortes, de tal modo que fosse traçado o contraste entre a grandeza
panorâmica sobre a rua e o detalhe das janelas das casas, considerando a janela
como um limite entre o público e o privado. É daí o nome desta matéria, que
publicamos em homenagem, à velha e querida cidade do Penedo, deixando a rua em
branco e preto e dando o tom colorido de suas casas, a partir das janelas, bem
como evidenciando a espécie de mistério entre a casa e seu caso.
É preciso
levar em conta, a espécie de alquimia que se realiza: enquanto as fotos são
produzidas na atualidade do fotógrafo, pela intervenção nas cores e na
composição, nos as desatualizamos. É uma forma de possibilitar a evocação que
sempre leva a um passado misturado com o tempo, sinal, mais uma vez, de que a
memória é um processo e não a cristalização de uma informação. A evocação vai
pinçar o traço que se torna a bem dizer fundante da busca da experiência ou da
vivência que é bem mais do que o vivido: é a circunstância do vivido. A escrita
com a luz – que é a fotografia, mas aqui com as implicações da infografia na
marcha da tecnotrônica, termo de Darci Ribeiro –, foi continuada na medida em
que tudo se desloca para o processo da evocação. O que foi produzido não tem
compromisso com a realidade, embora indique sobre ela; na verdade, o grande
objetivo seria transformar a rua num senso ubíquo com ele sendo estendido ao
tempo e relativo aos casos da própria rua. A utilização aqui e ali de casas e
casos não é um divertimento com a linguagem, mas uma indicação da singularidade
no coletivo urbano da rua que nos interessa. A rua passou a ser uma população
de possibilidades e dela retiramos a amostra da evocação. Será que a rua foi
virtualizada? A evocação necessariamente virtualiza? Ampliar a discussão seria
fugir ao objetivo deste texto que é simples: uma viagem na Rua da Penha.
As fotos transformadas
em preto e branco foram trabalhadas em contraste e brilho, visando direcionar o
olhar, pedir interrogação, dar sentido coletivo à imagem. A foto colorida
recebeu apenas o corte, procurando levar uma pergunta: se a janela fosse aberta,
que filme se iria ver, considerando que se cada casa é um caso, cada janela
abre para um processo de natureza acentuadamente misteriosa? No momento, é o
que nós temos a oferecer: Laissa Maria da Silva, Francismara Costa Torres, eu e
também e com toda razão: Sérgio Onofre.
A rua foi trabalhada
sistematicamente; foi fotografada no início e depois, em intervalos regulares
de passos, o pesquisador formava um ponto e na posição leste fotografava o
extremo oposto, olhava noroeste e passava para a posição oposta, dando-se a
mesma sequência, mudando o que deve ser mudado. Cada foto foi registrada em
ficha específica, constando a data em que foi tirada, o autor e a hora. Somente
as que fizeram parte do teste em sua totalidade foram trabalhadas; algumas
poucas janelas não pertencem a este conjunto. O primeiro resultado do projeto
está aqui. Contexto quer agradecer a
parceria do curso de turismo da Ufal, a Sérgio Onofre e, sobretudo, a estas
duas meninas que trocaram lazer por conhecer, por enfrentar o campo, exercitar
o olhar. É o começo da vida acadêmica que se esboça.
Agora, ande na
Rua conosco.