Sobre um futuro muito longe do normal
Lídia Ramires
Quando o coronavírus foi detectado, eu estava no “futuro”. Pois é, eu finalizava um período de pesquisa, após quase um ano de afastamento da rotina da Universidade, distante de casa, no sul da França. Costumava brincar que o futuro já tinha chegado lá. Isso porque o fuso horário era de mais quatro horas, por lá. Mas quando os casos se agravaram na Itália e o número de contaminados passou a aumentar entre os franceses, uma realidade completamente nova começou a se desenhar, muito rapidamente a minha frente.
Em dois dias, escolas, creches, universidades e lojas fecharam; o transporte público foi reduzido e o planejamento de retorno organizado e tranquilo foi por água abaixo. Até um telefonema de uma amiga francesa que alertava para o fechamento das fronteiras, foram menos de 12 horas de arrumação de malas e decisões do que levar para casa e do que deixar para trás.
Nas horas seguintes, correria e medo no embarque em um voo quase-fantasma, com menos de 20 passageiros, a caminho de Portugal e, de lá, para o Brasil. A previsão que pareceu alarmante para alguns amigos se concretizou em menos de 48 horas. Nenhum voo regular atravessando o Atlântico. Ainda carrego, cinco meses depois, uma sensação de fuga e de incertezas. Vindos do “futuro”, os procedimentos de isolamento com 14 dias pareciam exagerados para Maceió, ainda sem nenhum caso fatal. Não era. No Brasil, os números permanecem altos e a realidade ainda mais perversa. As cenas de valas comuns, filas de carros funerários nas portas de hospitais e crescentes casos de negação da doença não foram suficientes para sensibilizar governantes para a adoção de políticas céleres no enfrentamento da crescente pobreza e na recessão econômica que já se instala.
A experiência de quem viveu – e ainda vive – a situação com semanas à frente não parece servir de baliza para ações que minimizem o sofrimento de mais de uma centena de milhares de mortos. De lá para cá, o Brasil trocou duas vezes de ministros da Saúde e mantém um interino, não especialista na área, no cargo.
Na Educação, temos visto a defesa de entidades classistas pela retomada de atividades – mesmo que remotas. A naturalização do momento de exceção em que vivemos tenta esconder a gritante desigualdade social entre estudantes, nega o direito de docentes a estarem mais presentes nas vidas de seus filhos e parentes, nega a impossibilidade de acesso e permanência em ambientes virtuais de aprendizagem. “Porque vidas não podem parar… As pessoas não podem ser prejudicadas...” São falas repetidas que tentam silenciar as vidas para sempre interrompidas e a inexistência de futuro para as vítimas da doença.
O que estamos vivendo não pode ser classificado em nada como normal. O tal “novo normal” que se apregoa esconde a tentativa (em nada inocente) da retomada das atividades – mesmo que não haja ainda vacina, resultados conclusivos de testes apenas iniciados.
O estranhamento de viver uma realidade que muito se assemelha a roteiros de filmes de ficção científica nos mostra quão pouco despreparado o mundo está para algo de grandes proporções. Não há sinal de final épico com salvadores do planeta. Para observadores que resolvam dedicar mesmo um pouco de atenção ao que os cerca, a pandemia escancara desigualdades, acirra diferenças socioeconômicas e amplia a distância entre pessoas, classes, grupos, regiões, países...
Voltamos à Idade Média? É a pergunta recorrente em minha cabeça. Tempos de obscurantismo em que doenças matam em todos os continentes, em que se nega a ciência, em que cada vez mais pessoas se lançam em crenças a mitos (ora vejam…) e contestam dados, experiências, teorias e área de conhecimento. Até a Terra voltou a ser plana e há quem se aventure, mar adentro, para “provar” a existência da borda do planeta. O novo normal é surreal.
A nós, a esperança e a resistência. Essas duas moças que não envelhecem e nos alimentam de sonhos e vontade de seguir. Porque, mesmo entre incertezas, o futuro não está além-mar, separado por horas. Cabe a nós construí-lo, agora, a partir do tanto que já foi feito – pesquisado, estudado, comprovado – e do que ainda está por vir.
Quem é
Lídia Ramires é jornalista graduada pela Ufal. Tem mestrado e doutorado em Análise do Discurso e foi surpreendida pela pandemia, na França, na conclusão da pesquisa de pós-doutoramento, em Toulouse, sobre Gênero e Mídia, estudando mulheres jornalistas esportivas. É professora do curso de Jornalismo da Ufal, foi a primeira repórter de rádio esportivo em Alagoas, dirigiu a Editora da Universidade (Edufal) e idealizou a Bienal Internacional do Livro nas ruas do Jaraguá. (Elen Oliveira)
Esta matéria pertence ao Projeto Jornalismo e Pandemia, coordenado por Elen Oliveira para o nosso Blog.