Para ler ouvindo
Debaixo D’água de
Arnaldo Antunes,
na voz de Bethania
Jexoamin Mônica
Mônica Carvalho
Meu querido diário,
Soube hoje que a peste assola o mundo e
que já bate na porta de nossas cidades...(e a menina escrevia, enquanto a
mulher sorria e a febre ardia)
Ah,
o COVID-19! A princípio ele em mim surtiu um efeito devastador. Passei anos
presa em mim, anos que meu movimento era de descida, atenta a dor que me
alimentava, adoecendo espaços onde passava e pessoas próximas. Sim, pode-se
dizer que eu atingi o fundo do poço.
Como
uma boa entendedora das forças da natureza, não apenas por ser do Candomblé,
mas também por ter aquele lado Bruxa, entendo que existem ares de cura e eles
chegam. E assim eles chegaram, mas,
havia um vírus no meio do caminho e o momento dizia que eu tinha que continuar
em casa, isolada, ou seja: o movimento deveria ser de mim para mim, novamente.
Na
primeira semana de isolamento fui demitida do meu emprego, só me restava correr
para o mar, moro perto dele. Três, quatro semanas depois o decreto do governo
me tirou o mar e mais uma vez eu caí.
O
que me valia todos esses dias era um grupo de Whatsapp onde residem oito
mulheres, as conversas diárias com minha irmã e minha madrasta. Enfim, nós nos
falamos todos os dias os dias inteiros: problemas, alegrias, agonias, música,
dança, política e receitas, muitas receitas. Somos todas Bruxas. Este movimento
iniciou em mim a ebulição, o enfervercer da minha espiritualidade muito mais
forte e consequentemente da minha cura.
Quando
tudo parecia insuportável ao ponto de uma crise de ansiedade me levar às portas
da UPA com meu companheiro enlouquecido para que eu recebesse atendimento,
apoiado por vizinhos, quando tudo isso acontecia eu recebi do universo o colo,
o embalar de um ser envolto em cuidados.
A
percepção da espiritualidade, desde então, vem se aprimorando. Impossível não
entender que todo esse processo é racional. Sim, a fé é racional. Sustento esta
tese quando em mim ela se aprimora no momento em que estudo a mim mesma (neste
momento sou atendida em processo terapêutico espiritual). Explico: da mesma
forma que desconstruo o formato da mulher socialmente construída até então
buscando resolver meus medos e tomando consciência plena de quem sou, minha
força vital se aprimora e entendo cada vez mais os sinais da espiritualidade
nos rituais mais banais que possam ser desenvolvidos como passar um café, tomar
meu banho diário, varrer a casa, molhar minhas plantas.
O
isolamento social me preencheu de amor e esse tom é o tom da espiritualidade
para mim. Sou filha das águas do rio e do vento com um guerreiro voraz que
conseguiu depois de esgotar quase todas as possibilidades forjar o ouro para
sua amada. Meus Orixás são da estrada e o COVID-19, assim como a depressão, me
fez enxergar que a estrada a percorrer está em mim. Eu sou minha estrada. Meu
ponto de partida e minha chegada. O ar que eu própria respiro e a areia que
sutilmente rasga a pele de meus pés.
Hoje
direciono minhas forças junto com práticas diversas. Sim, continuo no Candomblé
e o reconheço como religião, mas paralelo as suas práticas tenho como exercício
a meditação diária, leituras sobre manifestações da espiritualidade em culturas
diferentes, expondo uma compreensão holística do universo.
Assim
caminho, descontruindo-me no isolamento e alimentando meu Orí com as pequenas
certezas de amar e achar belo tudo o que meus olhos conseguem enxergar.
Axé!
Pandemia e Cultos de Matriz
Africana se configura como um espaço democrático para a expressão das
diferentes perspectiva sob as quais os povos de terreiros e seus sujeitos
vivenciam e compreendem este momento singular de isolamento social e
enfrentamento da COVID-19.
Nesse sentido,
apresentaremos artigos escritos pelos próprio atores e atrizes sociais que
protagonizam o cotidiano dos terreiros alagoanos em suas práticas litúrgicas,
saberes e fazeres cotidianos. São Yalorixás, Babalorixás, Ogãns, e Ekedes, além
de Yaôs que trazem a público sua visão de mundo construída com base em sistemas
culturais particulares, onde a circularidade, a reciprocidade e a celebração da
vida como sagrada predominam.
Esses Xangozeiros e
Xangozeiras, dispersos por todos os rincões de nossa anfíbia terra, trazem com
suas vozes, cânticos e contos, valores e princípios que podem ressignificar a
tragédia pandêmica e nos revitalizar a esperança de dias melhores. Na ótica do
Axé, nada se esgota em si, tampouco se explica por si, pois natureza, ser
humano e sagrado se interconectam como um só. Ao desfrutar desses textos,
portanto é possível que nossos leitores e leitoras reavivam sentidos já
esquecidos para a suas existências e, talvez, aprendam com os terreiros que a verdadeira magia é o mistério renascer em vida.
Arapiraca,
Julho de 2020, ano da Pandemia
Odé
Akueran Ibadan / Prof. Dr. Clébio Correia
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