Covid-19: isolamento
social e emocional
Flávia Batista
Jornalista
alagoana residente na Alemanha
Não é fácil falar de dor quando ela ainda está latente. As
emoções se sobrepõem à razão e no fim das contas, a gente não consegue
transmitir exatamente o que queria. E nesses dias, onde toda sorte de
sentimentos nos toma de forma mais abrupta, ser racional tem sido um exercício
melindroso.
Desde o inicio da pandemia, uma espécie de guerra silenciosa
tomou conta de mim. Morando na Alemanha há pouco mais de um ano, por um lado eu
me senti mais segura, graças ao suporte garantido pelo Estado germânico, em
caso de contágio. Eu, marido e filho estávamos de certa forma protegidos por um
sistema de saúde eficaz e por um plano governamental que nos permitiu manter a
segurança, apesar do caos que se instalou mundialmente. Entretanto, o inevitável
pânico tomou conta de mim, já que uma vida inteira estava do outro lado do
Atlântico. Família e amigos estavam exatamente onde a catástrofe se anunciava
todos os dias e era confirmada em relatos recebidos pelas notícias que chegavam
através das mídias sociais e telejornais que voltaram a ser consumidos de forma
voraz.
A vida foi alterada na Alemanha, mas se manteve dentro de uma
segurança controlada. Em casa, o filho adolescente e eu passamos à rotina de
atividades dentro de um confinamento, enquanto o marido continuou o cronograma
laboral sob fortes regras de controle. Nossos dias estavam mediados por um
vírus. Parecíamos presos dentro de um roteiro de ficção científica sem saber
qual desfecho estava destinado para os personagens.
Enquanto isso, a vida no Brasil tomava um rumo mais
assustador a cada instante. As notícias não eram em nada eram animadoras e
todos os dias eu temia pelos meus. Os contatos diários passaram a ter como tema
central a tal doença, o medo e as intermináveis recomendações. Mas apesar de
tudo, todos parecíamos conscientes do que precisávamos fazer para nos mantermos
sãos. Mas não foi bem assim.
Depois de passar dois meses confinada em Curitiba, na casa de
uma das minhas irmãs, minha mãe, uma idosa de 70 anos, doente renal crônica,
precisou voltar para Maceió, onde tinha marcado um procedimento cirúrgico, típico
do tratamento. Saiu da capital paranaense sob protestos e recomendações do que
deveria e poderia fazer até chegar em casa. Mas em algum momento falhou. Entre
a partida, conexão e chegada, o vírus cruel a pegou. Só descobriu na mesa de
cirurgia, dias depois. Estava contagiada, tinha a Covid-19.
A notícia caiu como bomba em nossas cabeças. O chão tinha
sumido dos nossos pés. Mas ela estava forte. A cirurgia tinha corrido bem e a
doença não tinha se manifestado de forma forte. Chegou a receber alta
hospitalar para tratamento em casa, já que não apresentou os sintomas graves do
mal.
Os dias seguintes, entretanto, não saíram como o esperado.
Uma piora repentina levou dona Elba de volta ao hospital, onde ficou internada
para sair quatro dias depois, sem vida, na véspera do seu 71º aniversário.
A morte pela Covid-19 é de uma crueldade avassaladora. Foi
assim para nós. Crescemos num mundo onde fomos habituados a tratar dos nossos
doentes. Nos casos de morte, a regra sempre foi a de passar pelos rituais de
despedida, a de reunir família e amigos para o último adeus, a de nos
abraçarmos e confortarmos uns aos outros, a dividir a dor da perda. Nada disso
é permitido nesse cenário atual. Minha mãe morreu sozinha, num hospital, em
meio a estranhos. Não houve funeral. Ninguém se abraçou ou chorou sua dor no
ombro do outro. Estávamos separados e assim continuamos. Cada um sofrendo sua
perda isoladamente, aumentando o sentimento de vazio deixado pela morte
repentina.
A falta dos ritos de despedida causam um fenômeno estranho.
Talvez seja cultural, mas o fato é que sem o encerramento do ciclo, a aceitação
da morte é ainda mais difícil. Passado mais de um mês, até hoje me flagro me
preparando para telefonar e contar algo a minha mãe. Me cobro por que ainda não
nos falamos até determinada hora do dia. A mente ainda não processou
completamente a perda, o fim.
Hoje, ainda obrigada a manter distância do Brasil, devido às
regras sanitárias, tento acalentar a dor virtualmente. Não posso estar ao lado
das minhas irmãs para confortá-las e ser confortada por elas, do meu pai e de
uma legião de amigos que também sentiram a perda da minha mãe. O espaço das
redes sociais, as chamadas de áudio e vídeo ou a troca de mensagens tomaram o
terreno antes ocupado pelos abraços, mãos entrelaçadas, fatias de bolo de
xícaras de café.
Quem é
Flavia Batista é jornalista
alagoana, residente em Stuttgart, na Alemanha. Atuou como repórter, chefe de
reportagem e editora no jornalismo impresso e webjornalismo em Maceió e em
Portugal. Também tem experiência em assessoria de comunicação, atendimento a
clientes e marketing. Coordenou a política de comunicação do Instituto do Meio
Ambiente (IMA) de Alagoas, foi assessora de comunicação do Departamento
Estadual de Trânsito de Alagoas (Detran-AL) e responsável pelo departamento de
Assessoria de Comunicação da Perfil Comunicação & Marketing, onde
coordenou, editou e escreveu para jornais institucionais de diversos órgãos
públicos. Também foi editora de conteúdo no portal de notícias TNH1 e no diário
O Jornal, em Alagoas. (Elen Oliveira)
Projeto Jornalistas e a Pandemia
Memória da Pandemia
nas Alagoas
Elen Oliveira
Quando eu ingressei na Ufal, em 1991, o professor Luiz Savio
de Almeida já era uma lenda. Nos corredores do antigo CHLA, hoje ICHCA
(Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Arte), ele se postava a dar
conversa a quem se aproximasse com a mesma atenção que dedicava a palestras,
mesas de discussão e entrevistas. Entre 2008 e 2009, trabalhamos junto no
antigo O Jornal, onde ele propôs a abertura de um espaço dialógico da
universidade com a sociedade, por meio da publicação de artigos acadêmicos.
Entusiastas do debate e da pluralidade, o então diretor, Gabriel Mousinho,
e o então editor-geral, Roberto Tavares, cederam espaço ao Espaço,
nome dado ao suplemento quinzenal publicado entre setembro de 2008 e 2012,
quando o veículo foi extinto. À época editora-executiva e de Suplementos,
eu editei a publicação até 2009 com Alexsandra Vieira, que era editora do
caderno de Cultura, o Dois. Reformulado, tornou-se posteriormente Contexto,
no jornal Tribuna Independente, até materializar-se em Campus, o
suplemento semanal que é veiculado no jornal O Dia e reproduzido n’o Campus do Savio, o blog de múltiplas
falas com o qual colaboro esporadicamente.
O longo parágrafo de introdução foi escrito para contar como
chegamos a Jornalistas e a Pandemia, proposto pelo professor Savio
como parte do projeto Memória da Pandemia nas Alagoas, que ele está
a construir desde abril e que reúne relatos vindos de representantes dos povos
indígenas, artistas, intelectuais e integrantes de áreas diversas sobre o atual
momento. Ele propôs, e eu aceitei, que organizássemos uma seção para compor
essa construção feita a muitas mãos. “Quero deixar um imenso painel para um
pesquisador no futuro”, informa o pesquisador, que há tempos constrói
fundamental acervo da memória sobre Alagoas.
O blog pode discordar no todo ou em parte do material que publica