O amor nos tempos da Covid-19: memórias da pandemia
Maria Gabriela Cardoso Fernandes da
Costa
Esse texto foi escrito para o projeto “Tempos insulares:
memórias da pandemia” do grupo de pesquisa Literatura &Utopia. vigésima
sexta edição desse projeto.
“Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o címbalo que retina [...]. Agora, pois, permanceu a fé, a esperança e o amor, estes três; mas o maior destes é o amor”. (Paulo de Tarso, 1 Coríntios:13).
Para início de conversa
Quando a proposta/ desafio foi lançada/o
no grupo de Literatura e Utopia, há cerca de um mês, um pouco mais, talvez, de
escrevermos sobre as nossas memórias nestes tempos de pandemia, o título de um
possível texto, “O amor nos tempos da Covid-19”, logo me veio à mente.
Entretanto, o tempo foi passando, dividido entre outras atividades, e o texto
foi ficando para trás, mas não esquecido. Foi sendo trabalhado mentalmente e colocadas
em pauta as razões que me levaram a pensar de imediato no romance O amor nos tempos do cólera, de Gabriel
García Márquez, como inspirador e as
palavras de Paulo como coadjuvantes da inspiração, conforme a epígrafe que abre
estas memórias.
Publicada em 1985, essa obra do
premiado escritor colombiano, cuja ação se passa no período de transição do
século XIX para o século XX, trata de uma relação amorosa que envolve as
personagens Fermina Daza, Firentino Ariza e Juvenal Urbino e tem como pano de
fundo o cólera, evidenciando uma situação que se assemelha à que vivemos neste
momento de “convivência” com o Covid-19. De um lado, pois, na ficção, o cólera;
do outro, no mundo real, o coronavírus, ambos iniciados com a letra “c”, como uma espécie de Sibila
reveladora de tempos funestos. A distopia tomou conta do mundo assolado por
aquela doença, da mesma forma que o fez dois séculos depois, quando o vírus
passou a ser protagonista do nosso dia a dia. Se alterarmos a ordem dos
algarismos romanos XIX e XXI, podemos ver que os dois séculos interagem entre
si. Uma interação que tem como denominadores comuns o medo e a incerteza do dia
seguinte.
Vivemos,
nos dias de hoje, tentando manter o equilíbrio na corda bamba das diversas informações
que perpassam a mídia e que nos chegam também através de mensagens pelo
WhatsApp, umas apelando para a ciência, outras, não. Entre as antinomias do
“fique em casa” x “vá trabalhar”; “use máscara” x “não use máscara”; “a hidroxicloroquina
salva” x “a hidroxicloroquina mata”; entre a azitromicina, a ivermectina e sei
lá quantas mais “inas”, somos uma espécie de náufragos buscando a “ilha desconhecida”, onde, talvez, nos
seja possível encontrar certezas para as dúvidas (e os medos) que carregamos
como bagagem.
“Quarentena”, uma das palavras-chave dos últimos
tempos, foi o elemento desencadeador do relato destas memórias. Estou desde
meados de março em completo isolamento. O fato de estar só não me causou
nenhuma espécie de estresse – a palavra da moda –, nem sentimentos de desamparo
ou solidão. Muito pelo contrário: tenho procurado aproveitar este momento da
melhor maneira possível, liberta da famigerada desculpa “não tenho tempo”, que se
tornou o refrão da canção do nosso dia a dia. E o Tempo deu-me mais tempo para
olhar para mim e para os amigos e as amigas, ainda que os bons papos sejam
apenas virtuais.
Nesse tempo que o Tempo me deu, coloquei como
prioridade rememorar o passado, não numa perspectiva de retrotopia – assim
cunhada por Bauman, no seu livro homônimo –, mas na de Bobbio, de que o
relembrar é uma atividade salutar, pois, na rememoração, encontramo-nos e
encontramos a nossa identidade como uma maneira sadia de crescimento. Foi assim
que me permiti reavivar estas memórias que aqui trago ao abrigo das palavras de
Paulo, que tomei como epígrafe, e, como no romance de García Márquez, tendo a pandemia como cenário.
A guerra, o medo e a incerteza do dia seguinte
Ao ter conhecimento, pela mídia, da corrida desesperada
de pessoas aos supermercados e às farmácias buscando armazenar alimentos,
álcool em gel e outros itens, no início da pandemia, foi-me impossível não
lembrar um passado não tão longínquo que eu vivi e em que a falta já gerenciava
as nossas vidas. Em intermináveis filas diante de lojas de mantimentos, as
pessoas varavam a noite na esperança de poder comprar gás, leite, enfim, coisas
de primeira necessidade, na luta pela sobrevivência. Eram tempos de guerra. A diferença
entre o agora e o ontem é que a guerra que então se vivia, e da qual éramos
reféns, era protagonizada por seres humanos contra seres humanos, com armas
letais de um lado e de outro, lutando pela concretização de suas utopias. A guerra
de hoje tem como inimigo um vírus, desenhado como uma bolinha cheia de
pontinhos, aparentemente inofensiva. Mas, invisível que é, esse inimigo precisa
mesmo de “atiradores de elite” para pôr fim à sua ação, que se faz sem hora
marcada e sem escolha da próxima vítima. A guerra de ontem deixou ruas povoadas
de cadáveres; a de hoje invadiu hospitais. E se agora, como medida de
prevenção, as palavras de ordem são “fique em casa”, naquela época, havia apenas uma, que se
impunha pelo seu modo imperativo: “fujam”. Eu, como tantas outras pessoas, fugi.
Fugi do medo, da incerteza do dia seguinte, daquela guerra em que a morte dizia,
o tempo todo: “presente”.
As lembranças aqui evocadas não são, entretanto, as
únicas que me vêm à memória nestes tempos insulares.
Intermitências da morte (1)
Em 1971, a morte achou por bem visitar-me. Sem
convite, apresentou-se, sorrateira, e quase conseguiu levar a cabo os seus
malignos intentos. Porém, e graças à rápida intervenção de amigos que se uniram na luta contra aquela
que, sutilmente, se tinha interposto no meu caminho, ela, a morte, como no
romance de José Saramago, não conseguiu entregar a fatídica carta com o
atestado de óbito. Tal como o violoncelista, personagem do escritor português, eu
sobrevivi.
Doença? Não. Acidente doméstico. Intoxicação por gás,
no banheiro. Notícia de jornal.
Intermitências da morte
(2)
Era outubro de 2010. Os ânimos fervilhavam, em razão
do segundo turno das eleições presidenciais.
Domingo de sol. Panfletagem. Utopias ao vento.
Dor. Hospital. Cirurgia. UTI.
Turbilhão.
A morte, cujas intenções a meu respeito haviam sido
frustradas lá atrás, decidiu voltar a rondar-me, desta feita com mais
insistência, segura de que seria bem-sucedida, já que nisso havia apostado os
seus maiores esforços.
Nos 12 dias de UTI, o livro De profundis valsa lenta, de José Cardoso Pires, foi, mentalmente,
o meu companheiro. Com a ajuda dele, somada a uma enorme torcida, eu logrei,
uma vez mais, enganar a morte. Fui salva pela vontade de viver e pelo amor.
O confinamento a que a pandemia me sujeitou fez-me
trazer à tona estas memórias. Pelo seu significado. Pela sua importância. Como
reflexão. Como renascimento. E como certeza de que “sem amor, eu nada seria”.
Em tempos de Covid-19 e de cólera (não do cólera),
talvez as palavras da Legião Urbana possam ainda, e apesar de tudo, encontrar
eco: “É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”.
À guisa de conclusão
Vem-me à mente um provérbio africano, que me parece adequado
à situação que agora vivemos: “On n’est pas orphelin d’avoir perdu père et
mère, mais d’avoir perdu l’espoir” – que quer dizer, numa tradução livre, que
ninguém é órfão quando perde o pai ou a mãe, mas, sim, quando perde a
esperança.
fricanas de Língua Portuguesa. Tem publicados os livros Sobre as águas da memória atlântica - as
vozes entrelaçadas de Lueji-O nascimento de um império e Viva o povo brasileiro
(EDUFAL, 2009) e Agora sou eu que falo, eu, Gabriela (Porto: UNICEPE, 2014. Tem várias participações em eventos nacionais e
internacionais, com destaque para a apresentação do livro O torcicologologista, Excelência do
escritor português Gonçalo M. Tavares, por ocasião do seu lançamento na cidade
do Porto, em 2014. Em 2018 participou do
evento Mulheres Africanas em Trânsito-Homenagem a Alda Lara, promovido pela
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com a apresentação de um
trabalho sobre a poetisa santomense Conceição Lima. Seus trabalhos mais recentes
foram publicados nos livros Trânsitos
utópicos (EDUFAL, 2019) e Utopismos alagoanos : de ilhas, cidades e
viajantes. (EDUFAL, 2019). É
co-organizadora do livro Entre
(laços) literários, que sairá
brevemente, publicado pela EDUNEAL.