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sexta-feira, 26 de junho de 2020

Bruno de Lima Fontan. Pandemia e memória



Pandemia e memória


Bruno de Lima Fontan

Médico da Família e Comunidade, membro do Fórum Alagoano em Defesa do SUS, faz parte da direção regional do SINPREV em Matriz do Camaragibe e integra a Coordenação Anarquista Brasileira


Minha avó nasceu quatro anos depois de a Gripe Espanhola acabar com milhões de vida pelo mundo afora.  Minha avó e todos da sua geração já faleceram na minha família. Sabemos da Gripe Espanhola por livros e jornais antigos, mas ela não está enraizada na memória de nosso povo. De repente, em pleno século XXI, nos deparamos com uma nova pandemia. Outras pandemias ocorreram em nosso tempo de vida, mas não do mesmo jeito. Não chegaram a ter a mesmo alcance. No caso da AIDS, que foi e continua sendo um flagelo pra humanidade, não implicaram isolamento social, fechamentos de inúmeros serviços em todo o mundo e mudança tão brusca na rotina das pessoas em todos os continentes (em apenas um semestre). A AIDS colaborou pra atrapalhar a revolução sexual, mas não provocou mudanças drásticas de rotina de maneira tão rápida e em tantos cantos.
Sendo algo novo para a nossa geração, era de se esperar que não estivéssemos preparados pra lidar com a COVID-19. O problema é que em muitas localidades não só estávamos pouco armados pra combater o vírus, como resolveram jogar as poucas armas que tínhamos fora. Apesar de existirem exemplos ruins em várias localidades do mundo, no Brasil, onde a desigualdade social é gritante, a situação está entre as piores. Um exemplo disso (existem inúmeros outros fatores) são os constantes ataques ao Sistema Único de Saúde cometido por diversos governos, a serviço de grandes empresários. O ataque mais recente foi feito em 2016, quando a Emenda Constitucional 95 foi aprovada em meio a turbulentos dias no pós-golpe jurídico-parlamentar, decretando 20 anos de congelamento das verbas para as áreas sociais, entre elas a saúde. Sem que soubéssemos, estavam pavimentando umas das estradas para a COVID-19 se alastrar da maneira como estamos vendo. Nesses últimos quatro anos, o SUS perdeu R$ 20 bilhões, uma grande parte dos recursos que se tenta (sem efetividade ainda) mobilizar para o combate da pandemia.
Trabalho na atenção primária em Matriz de Camaragibe (Litoral Norte de Alagoas) como médico de uma Unidade de Saúde da Família. Posso dizer sem dúvidas que a quantidade de casos que atendi e a quantidade de perdas que eu vi não estão computadas nos números oficiais e nem poderiam, em sua totalidade, ser traduzida por eles. Você não lida só com o vírus, mas com os traumas que ele deixa. Colegas de trabalho que estão tentando parar de ver notícias para continuar seguindo a vida; pessoas que, mesmo curadas da doença, não param de procurar atendimento por crises ansiosas pela dor por parentes que se foram.
É muito difícil também lidar com um mundo em que vários colegas médicos preferem fazer sua conduta em efeito manada, guiados mais por correntes de redes sociais do que pela ciência. Que diria Galileu ao ver em voga a ideia da Terra Plana? O conceito de terraplanismo poderá deixar de ser uma ironia para virar algo fundamentado academicamente. Quem sabe? Acredito que esse conceito não abarcaria apenas os que discordam da esfericidade de nosso planeta, mas, por exemplo, aqueles médicos que passam medicamentos cujo uso é rejeitado por diversas organizações científicas.
Como exigir que a população aja de maneira coletiva e solidária se ela foi bombardeada por décadas com valores que enaltecem o individualismo? Uma pessoa adepta das ideias da meritocracia, do empreendedorismo, da teologia da prosperidade, nascida e criada no neoliberalismo vai colocar uma máscara por causa do outro?
 E nós, como lidamos com tudo isso? Há muito a se aprender e outras lições que já foram ensinadas. Pouco antes da pandemia, o mundo via grandes movimentos populares na França, Equador, Chile, entre outros países, conseguirem arrancar de seus governos o que eles não davam. Impedir que medidas contra os mais oprimidos fossem implementadas, apesar dos comentaristas econômicos tentarem fazer a gente acreditar que devemos pagar por uma crise que não criamos. A pandemia não será para sempre. E quando for possível, são movimentos coletivos e solidários como esses que poderão nos trazer respostas e não os que, com suas ideias individualistas, ajudaram a cavar covas.
Do meu isolamento privilegiado (quando não estou trabalhando) penso em quais memórias as crianças guardarão desse período. E anseio para que o que fique na nossa memória coletiva seja pra mudar o mundo pra melhor. Afinal, a humanidade é essencialmente social. Da mesma forma que os valores do individualismo nos isolam da coletividade e destroem vidas, os valores coletivos, a solidariedade, o apoio mútuo e o desejo de mudança social profunda precisam ser fortalecidos para que possamos nos reconhecer no outro. Para que possamos nos permitir ser humanos.




quarta-feira, 24 de junho de 2020

Itajaciara Barbosa da Silva. O EFEITO DA PANDEMIA COVID-19 NOS TERRITÓRIOS INDÍGENAS



O EFEITO DA PANDEMIA COVID-19 NOS TERRITÓRIOS INDÍGENAS

Itajaciara Barbosa da Silva

Enfermeira, Especialista em Saúde Indígena, índia Xucuru Kariri/Aldeia Boqueirão-Palmeira dos Índios 


Este material foi remetido pelo Professor Dr. Amaro Héli0o Leite da Silva

E de repente os cantos, os toantes, os torés não ecoaram mais, e as comunidades ficaram sem entender por que tudo parou, e todo modo de vida precisou ser mudado. As danças, as rodas de toré embaixo da árvore ou no centro das aldeias, os abraços apertados aos parentes que chegam nas aldeias não podem mais acontecer, e por que tudo isso? O silêncio começou a invadir os territórios indígenas e, de repente, no meio do silêncio, um choro ecoou: a notícia do primeiro parente infectado e morto por uma doença que ninguém conhece. Um choro solitário, pois precisava chorar distante, uma dor dilacerando famílias e ainda sem entender por que tudo isso estava acontecendo. E logo a notícia se espalhou e todos começaram a se resguardar, nossos anciãos não podem sair de casa,nem para fumar uma chanduca, não podem fazer uma roda com os jovens e contar suas histórias, não podem entoar um canto para iniciar uma roda de toré, pois eles são alvos fáceis para essa doença tão terrível.
A pandemia de Covid-19 é devastadora. Ela influi diretamente no modo de vida das pessoas e nas comunidades indígenas, é absolutamente impactante. Os indígenas tem seu próprio modo de vida e organização social, não é algo simples adentrar em uma aldeia e dizer que eles não podem mais sair, e que precisam permanecer dentro dos seus territórios para se proteger de uma doença onde a contaminação se dá através do contato de pessoa a pessoa, o aperto de mão, o espirro e que todos precisam usar máscaras caseiras e ficarem dentro de suas casas.
São complexas algumas determinações para as pessoas que vivem nas aldeias, quando a realidade delas diverge completamente da realidade das pessoas que vivem nas cidades. Podemos citar exemplos de aldeias onde moram em uma casa ou em uma oca famílias com mais de 11 pessoas que, caso um membro da família venha ser afetado por essa doença, ou seja, contaminado pelo coronavírus, como isolar essa pessoa dos demais membros em um quarto quando a casa possui apenas 4 cômodos ou a oca tem apenas os pilares para armar as redes e todos dividem o mesmo espaço?
No Brasil, existiam mais de 5 milhões de indígenas, vivendo tranquilamente em suas aldeias, com seus ritos e costumes, fortalecendo suas culturas, mas infelizmente outras epidemias como sarampo e a gripe, trazidas pelos invasores portugueses em 1500, dizimaram muitas dessas etnias.
Hoje, a pandemia do coronavírus está sendo mais uma dessas ameaças à cultura dos povos indígenas. Estamos vivenciando uma mudança, algo novo – um vírus que isola pessoas e que ficar longe de quem elas amam é uma prova de amor –, onde estamos percebendo as dificuldades, nas comunidades, das pessoas permanecerem distantes uma das outras no chamado distanciamento social, isolamento social ou quarentena.
 O costume das rodas de conversa nos terreiros das casas dos parentes é simples, mas prazeroso, isso faz parte do modo de vida dos indígenas. Algo preocupante também é a subsistência; ou seja, como trazer o alimento, principalmente quando uma grande parte vive do artesanato e precisa ir vendê-lo nas cidades, outros trabalham em outras cidades e estados e com essa pandemia a maioria deles está retornando para suas aldeias devido ao desemprego. Esse fator preocupa a todos, pois não sabemos se de fato esse indígena está infectado ou não, pois mesmo com a realização dos testes rápidos existe o tempo correto para a testagem positivar. 
A vulnerabilidade sociodemográfica e sanitária nas comunidades indígenas é muito grande. Os povos indígenas são altamente vulneráveis às infecções respiratórias (Ruche et al.,2009). Mesmo fora de períodos endêmicos, as infecções respiratórias são causas importantes de morbimortalidade em populações indígenas.
Os costumes tradicionais dos povos indígenas contribuem para que os alimentos ingeridos nas aldeias não ofereçam a quantidade de nutrientes necessária para que eles tenham uma imunidade adequada para combater uma doença como essa. Por isso, é necessário a adoção, por parte do governo federal, de medidas mais adequadas para apoiar os povos indígenas.
Atualmente, são 305 povos indígenas, falando 274 línguas (IBGE 2010), residindo nos mais remotos lugares, com difícil acesso ,em municípios com precária estrutura de serviços de saúde, o que exige uma articulação entre as instâncias municipal, estadual e federal para assegurar que os casos de média e alta complexidades ou de maior gravidade obtenham respostas coordenadas entre essas instâncias, com agilidade  e com aporte suficiente de recursos para a remoção do indígena para uma unidade de saúde mais bem estruturada.
Diante dos diversos desafios, um fator agravante nessa pandemia é a sensibilização das comunidades para cumprir o isolamento social: nas comunidades que não foram afetadas ou até mesmo naquelas que já foram afetadas, ainda há indígenas que não acreditam que é um vírus mortal e que pode dizimar uma aldeia inteira, caso ele adentre esse território devido à grande vulnerabilidade existente nas comunidades.
As redes sociais se tornaram a comunicação preferencial dentro das aldeias onde se consegue algum sinal de internet, e assim se acessa as orientações e as notícias de como está o comportamento do coronavírus no Brasil e no resto do mundo.
Muita mobilização está acontecendo para ajudar as aldeias em todo Brasil, os movimentos indígenas estão se articulando em todos os espaços. A maioria das aldeias realmente fechou suas entradas e saídas, isolando-se do resto do mundo. Contudo, isolar-se sem ter alimentação aumenta a possibilidade do aumento de outras doenças como a desnutrição pela falta de alimentos. A preocupação de todos que vivem nas aldeias nesse momento é manter as aldeias protegidas,evitando a entrada de visitantes, e onde a doença já estiver presente, cuidar do paciente para que seja curado e não precise ir para hospitais, pois nesse estágio a maioria dos leitos está ocupada em grande parte dos municípios e dos estados brasileiros.
Também, não podemos nos esquecer dos nossos profissionais de saúde que estão na linha de frente trabalhando arduamente dentro das aldeias: muitos estão sendo contaminados e infelizmente também estamos perdendo alguns deles, e isso implica diretamente na assistência aos indígenas, principalmente nas aldeias onde há difícil acesso. Precisamos permanecer vigilantes e adotar as medidas de prevenção preconizadas pelo Ministério da Saúde. 
As mudanças são desafiadoras, mas nesse momento necessitamos defender a saúde e a existência dos povos indígenas, povos donos de uma riqueza cultural extraordinária, povos guardiões das florestas, anciãos, parteiras, benzedeiros, todos ricos de uma sabedoria e que mantém viva sua cultura através de suas tradições.
Essa pandemia vai passar e, com fé em Deus e na força dos encantados, nossos cantos serão entoados, iremos dançar nosso toré, pisando forte e ligeiro, numa grande roda, sentindo toda a força que emana da mãe terra,  agradecendo à mãe natureza a conquista do fim dessa doença terrível no Brasil e no mundo. E mostraremos a todos que apesar de todas as dificuldades, ser indígena é ser resistência.






terça-feira, 23 de junho de 2020

Elen Oliveira. Um dia de cada vez





Um dia de cada vez



Elen Oliveira

Quando a vida normal foi suspensa, no início de março de 2020, eu tinha uma homenagem a receber no dia 26, uma pré-estreia a assistir no dia 17 e uma reunião de trabalho marcada para o dia 18. Para um pouco mais adiante, eu agendara uma viagem para acompanhar minha filha a um show em São Paulo. Havia ainda férias programadas e um encontro com amigos para comer um hambúrguer vegano e atualizar a conversa, fora a rotina de trabalho, caminhadas diárias respirando a maresia Cruz das Almas/Ponta Verde/Cruz das Almas e inúmeros abraços, que eu adoro abraçar.

Chegando em casa, na noite da sexta-feira 13 de março,  depois de um dia em que já havíamos programado uma escala de trabalho metade presencial/metade teletrabalho, vi que a vida já havia mudado no curso de algumas horas.
Estava assistindo ao telejornal noturno, quando uma notificação do Whatsapp me chamou de volta ao trabalho. Toda a agenda estava automaticamente suspensa e naquela noite, as reuniões nos grupos se estenderam até a madrugada, intensificando-se no sábado e no domingo seguintes. Era preciso reorganizar a sistemática de trabalho.

Não havia precedentes para aquela situação, então passamos a viver um dia por vez e aprendendo, com cada demanda que se interpunha, a lidar com ela e a programar a resposta às próximas. A primeira semana, assim como o primeiro decreto normativo do meu trabalho e do cotidiano dos demais viventes de Maceió, foram destinados à aprendizagem e à adaptação. Suspenderam-se eventos e qualquer programação que ensejasse aglomeração, enquanto recebíamos, entre o medo e o pesar, as notícias da Ásia e da Europa enlutadas.

Na segunda semana foi oficializado o teletrabalho para as atividades adaptáveis ao modelo e estabeleceram-se normas para aquelas cuja presença física nos locais de trabalho fosse imprescindível. Regras de segurança e higiene, protocolos de atendimento e funcionamento de estabelecimentos comerciais, condutas sociais, tudo foi reformatado.

O chamado isolamento social redimensionou também a vida privada. As telenovelas deram espaço ao jornalismo em tempo integral, estabelecendo uma dinâmica diferente do tempo e da vida, agora restritos ao espaço doméstico.

Nos primeiros dias, considerei racional correr ao supermercado e à farmácia, como se estivesse me preparando para um longo inverno, em pleno verão maceioense. Nas prateleiras, a clara demonstração de desapreço ao bem-comum. Grande parte dos itens recomendados à prevenção do coronavírus, o agente da pandemia, havia desaparecido. Os que restaram estavam bem mais caros. Foi necessário o poder público estabelecer regras de controle e fiscalização de preços para conter abusos e a sanha dos acumuladores. Com a situação regulada, os estoques foram restabelecidos e os preços voltaram a patamares aceitáveis.

As teleaulas também afetaram o espaço doméstico. Além de local de trabalho e espaço de moradia, a casa também tornou-se sala de aula, dispositivo de telepresença para reuniões e cultos religiosos. Os encontros pessoais também foram acondicionados às telas do celular e do computador.   

Abraços partidos, saudade manifesta, incertezas. Pelo que se observa na parte do mundo onde o fechamento e a reabertura começaram, a vida normal não voltará a ser sem novas regras e protocolos de contenção e controle.

No novo mundo que agora se descortina, a proteção envolve distância, máscaras e rigorosos protocolos de higiene pessoal e convívio social. Os encontros se darão sem apertos de mão, sem abraços, sem beijinhos. 

Durante a pandemia, vi um ex-governador partir sem solenidade. Guilherme Palmeira, em cuja biografia cabiam o deputado, o governador, o senador, o prefeito e o ministro de Tribunal Superior, partiu sob silenciosos aplausos e moções manifestos pelas redes sociais. Vivêssemos tempos normais, muitos seriam os que cancelariam agendas para lhe prestar homenagens e presenciais condolências aos familiares enlutados, especialmente ao prefeito Rui Palmeira, seu filho e gestor nesse momento distópico que se abateu sobre o mundo e o Brasil em pleno ao eleitoral.

É de incertezas que vivemos. Até aqui, todos perdemos alguém para o novo coronavírus. Seja amigo, parente conhecido ou desconhecido, há muitos milhares de pessoas a prantear. Contam-se mortos, enquanto planejamos a vida e o futuro sem nem sequer intuirmos o que será.     

Do ponto de vista do meu trabalho, a vida em tela tem similaridades com o mundo real, do trabalho presencial . No entanto, os artifícios da procrastinação são muito mais intensos, assim como as atividades paralelas. Ao mesmo tempo em que participo de uma reunião por vídeo ou audioconferência, interajo com outros grupos de trabalho e a atenção pode ser desviada a um clic para uma das infinitas janelas dos hyperlinks que tanto informam quanto desinformam e nos instigam. Nesse aspecto, os limites temporais se diluem em jornadas inacabáveis. 

No hiperconectado universo da teleinformação, estruturas como horários de trabalho são fluidas e variáveis, assim como as pontas dos dedos, que chegam a arder nos dias mais dinâmicos em atividades profissionais, vida pessoal e hiperinformação. É cansativo o mundo em tela. Há dias que ele suplanta o espaço físico, por exíguo que ele nos pareça. Tenho esperança na resposta da ciência e rezo para que se abrandem os corações endurecidos. É entre incertezas e esperança que vivemos. Um dia por vez.    
  

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